terça-feira, 27 de março de 2007

Rodolfo Walsh: a sangue frio



Reza a lenda que Truman Capote inventou o “Novo Jornalismo”, isto é, o romance de não-ficção misturando técnicas de reportagem com literatura, ao escrever “A Sangue Frio”. Deu até filme premiado com o Oscar. Mas nós, latino-americanos, sabemos que o verdadeiro precursor do gênero é o argentino Rodolfo Walsh, com sua “Operación Masacre.”

Publicado dez anos antes da obra-prima de Capote.

Nesta semana se completaram 30 anos do assassinato de Walsh pela ditadura argentina de 1976-1983. O jornal Página 12 dedicou a esse jornalista e escritor uma edição de seu suplemento cultural, o Radar. Um dos prazeres dos meus domingos portenhos era lê-lo sem pressa nos cafés de Palermo, sempre me maravilhando com o nível dos debates intelectuais.

Voltemos a Walsh. Em 1955 Perón foi deposto por um golpe militar. Meses depois houve uma tentativa de contragolpe dentro do Exército e a repressão que se seguiu foi brutal. Vários oficiais peronistas foram fuzilados sumariamente – algo que não ocorria na Argentina desde as guerras civis do século XIX. A barbárie também atingiu civis suspeitos de envolvimento com o levante peronista. Contudo, essa segunda leva de fuzilamentos foi mantida em segredo pelo governo.

Walsh era na época um ferrenho opositor do peronismo, mas ouviu num bar em La Plata uma frase que mudaria sua vida. “Hay un fuzilado que vive”. Ele foi atrás dos sobreviventes e escreveu um estupendo romance-reportagem sobre o massacre, contando os gestos de heroísmo, de covardia e as mentiras do governo. Há cenas inesquecíveis, como o soldado moribundo, abandonado pelos colegas e gritando de madrugada: "Hijos de Puta!". Os homens não morrem dando vivas à pátria, observa Walsh.

Foi o início de um processo de transformação política para Walsh, que terminaria como militante da extrema-esquerda, nos Montoneros. Na véspera de sua morte escreveu sua última obra, a Carta Aberta à Junta Militar, denunciando com incrível lucidez o sistema de torturas estabelecido pela ditadura que havia tomado o poder um ano antes.

Walsh foi ao correio e enviou cópias do texto para amigos. Meia hora depois foi capturado e morto pelos militares. A sangue frio. Numa terrível simetria com Operación Masacre, o escritor tornou-se sua própria obra. Lutou até o último dia.

Discordo de muitas das posições políticas de Walsh, mas conheço poucos exemplos de tanta coragem cívica e integridade ética. Na bela canção La Memória, inventário das injustiças e heróis esquecidos da história argentina, o compositor León Gieco a ele se refere com a expressão dignidad de Rodolfo Walsh.

Na edição que li de Operación Masacre estava incluída, como anexo, parte do roteiro para uma adaptação do livro ao cinema. Na seqüência final, Walsh lia um belíssimo texto em off, sobre a tomada de consciência política, enquanto as imagens mostravam cenas de conflitos sociais argentinos posteriores, como o Cordobazo, a grande rebelião operária e estudantil contra a ditadura militar de 1966-1973. De arrepiar.

3 comentários:

Anônimo disse...

O ano passado o noticiário de Canal 13, Telenoche, fiz uma investigaçäo sobre o famoso "fusilado que vive" pelos 50 anos dos fusilamentos de José León Suárez. Falando da ditadura, na semana passada, no ato no colegio sobre os 31 anos (imagino que no Brasil näo devem fazer atos em memória da ditadura, hehe) expuse a cançäo Angélica que conheci por vocë, assim que obrigado novamente.
Um abraço do sul

Maurício Santoro disse...

Salve, Patricio.

Fico feliz que um eco de Angélica tenha chegado a sua escola. Por coincidência, hoje é o aniversário do golpe militar de 1964, mas em geral não lembramos da data no Brasil.

Sobre o Walsh, ninguém falou nada. Pena, estamos muito isolados dos hermanos.

Abraços

Daniel J. M. Catino disse...

Me chamo Daniel e sou Argentino residente em São Paulo. Leio Walsh ha muito tempo, estudei em La Plata e conheci muitas coisas sobre Argentina e sua historia terrível política e Walsh foi é e será a grande referência, não somente pela sua incrível lucidez jornalística e ingenio literario, senão pelo seu generoso sentido de sacrificio cívico nesse ato final, quase único no mundo das ditaduras, en vez do exilio escolhe o sacrificio, uma escolha de guerrero, como Guevara.
Eu não acho que foi só ele que inventou a novela ou policial noir na Argentina ou coisa parecida, só que ele era o mais expressivo e o fato realista de ser um investigador nato o tornava mais poderoso.
Ele encarbava o espíritu própio dos seus precursores Dashiel Hammet ou Ambrose Bierce. Casualmente foi Walsh quem traduziu umas obras de Bierce para o espanhol, ninguém mais apropriado!
Obs: Walsh não foi morto meia hor a depois de enviar sua Carta Aberta a Junta Militar aos seus amigos, as cartas que enviou foram dirigidas a Casa Branca, ao presidente Francês e aos prtopios militares e não foi utilizado correio comum, depois enviaram um esquadrão no dia seguinte, e ainda há controversias sobr eseus ultimos momentos, mas sabe-se que viram seu corpo no Vesubio (porão da ditadura arg). Existem boatos de que o Almirante Massera temia que se transformasse num mártir e o queria vivo.
Bem, parebens pelo criterio do site, "Todos os Fogos o Fogo" foi outro acerto citando ao mestre Cortázar.