quinta-feira, 31 de maio de 2007
Rasga Coração
No fim de semana assisti a “Rasga Coração”, a obra-prima de Oduvaldo Viana Jr, que está em cartaz no Teatro Glória. Eu já havia lido a peça, mas o texto ganha muito ao ser encenado. O desempenho dos atores – em especial a atuação apaixonada de Zé Carlos Machado como o protagonista – dá a dimensão da fragilidade humana a trechos que de outro modo seriam muito rígidos.
“Rasga Coração” foi escrita nos anos 1970 e é estruturada em torno do conflito entre Custódio, um militante político, e seu filho adolescente. O personagem principal é um homem de meia idade que vive a rotina estreita da pequena classe média, preso a um emprego burocrático e a um casamento acomodado, sem amor. Ele não consegue entender o filho, que flerta com o movimento hippie e questiona seu comportamento, alegando que o compromisso do pai com sindicatos e greves continua preso à mesma lógica mecânica do sistema que ele afirma combater.
À medida que se desenvolve o conflito com o filho, Custódio lembra cenas de sua adolescência na década de 1930 e suas próprias disputas com o pai, que não aceitava seu entusiasmo com a nova ordem industrial que começava a nascer. O contraponto cômico a Custódio, que às vezes funciona como sua consciência, é seu amigo boêmio conhecido como Lorde Bundinha, que tem as falas mais engraçadas da peça.
Misturar passado e presente no palco, com as situações paralelas iluminando os dilemas dos personagens, não era novidade na década de 70, Arthur Miller e Nelson Rodrigues já faziam isso há mais de 30 anos. O destaque de “Rasga Coração” é a detalhada pesquisa histórica realizada por Vianinha. Impressiona o cuidado do dramaturgo em recolher gírias, canções, palavras de ordem e outras expressões da época em que se situa a ação. O problema é que a platéia não consegue acompanhar as referências, devido ao desconhecimento que a maioria dos brasileiros temos de nossa história.
Vianinha era militante do Partido Comunista e a peça às vezes se ressente de um tom que se pretende edificante, de ensinar ao espectador qual o comportamento correto. Nesses pontos é que a atuação do protagonista faz a diferença: Zé Carlos Machado dá a medida das hesitações e frustrações do personagem, que o levam a não conseguir compreender a rebeldia do filho, julgando-o erroneamente como um conformista.
Não quero dizer que Vianinha rezasse pela cartilha do realismo socialista. Longe disso. Ele fez parte do que talvez tenha sido a mais brilhante geração do teatro brasileiro, inovando no Arena ao colocar no centro dos palcos os temas nacionais. As circunstâncias da composição de “Rasga Coração” são elas mesmas dramáticas: o autor morria de câncer e queria a todo custo completar a peça. O segundo ato foi ditado de sua cama de hospital, pois ele já não tinha forças para escrever. Curioso contraste: a emoção à flor da pele desse trecho da peça em muito supera a arquitetura metódica e cuidadosa do primeiro.
Há momentos de grande beleza em “Rasga Coração”, como instante em que um rapaz diz a Custódio que o grande erro de seus contemporâneos foi ter abdicado da dúvida. Em outro diálogo, o mesmo personagem afirma que mais importante do que o conflito entre gerações é o conflito que cada geração trava dentro de si mesma.
Vianinha não chegou a ver “Rasga Coração” encenada. A censura proibiu a peça, apesar de não haver referências à ditadura militar que então governava o país. A campanha pela liberação da obra virou uma causa importante nos meios artísticos e sua encenação em 1979, um símbolo do processo de redemocratização do país.
E, meus amigos, ver três horas de espetáculo que se propõe a discutir o país, com paixão mas sem concessões patrioteiras, faz um bem danado.
terça-feira, 29 de maio de 2007
Câmbio e Desenvolvimento
Os comentários no post anterior me estimularam a escrever um pouco mais sobre o tema do câmbio e do desenvolvimento. O Patrício chamava a atenção para o controle chinês sobre o yuan, e de fato essa política é um instrumento importante no crescimento acelerado do gigante asiático.
Como o comércio dos Estados Unidos com a China é deficitário para o primeiro país, muitos políticos americanos pressionam para a valorização do yuan. Eles pensam que com a apreciação da moeda os chineses passariam a exportar menos e importar mais, conseqüentemente melhorando a situação das empresas dos EUA.
Pode não ser bem assim, nos diz a edição da semana anterior da The Economist. Para a revista , as economias de ambos os países estão tão entrelaçadas que mudanças bruscas no câmbio prejudicariam também os Estados Unidos, encarecendo os produtos consumidos pela população, influindo nas cadeias produtivas e até na taxa de juros – o Tesouro chinês é grande comprador dos títulos do governo americano. Contudo, a Economist defende uma pequena valorização do yuan, mas por razões ligadas ao mercado financeiro chinês.
O noticiário contemporâneo tem me ajudado nas leituras que faço sobre o Brasil das décadas de 1950 e 1960, para o artigo que escreverei sobre política externa e desenvolvimento. Naquela época, a principal exportação brasileira era o café. E o país precisava importar produtos caros para impulsionar o processo de industrialização: bens de capital, veículos, máquinas etc. Isso fazia com que à medida que a indústria avançava se tornasse mais difícil lidar com o desequilíbrio da balança de pagamentos. Desvalorizar o cruzeiro era a medida habitual para lidar com a queda no preço do café, mas as pressões dos industriais tornaram essa resposta inviável.
Para fechar as contas, o Brasil adotou diversas medidas. Taxas de câmbio variáveis, que privilegiavam a importação de equipamentos para as fábricas e dificultavam a compra de produtos industrializados. Restrições, ou mesmo proibições, de importar bens de consumo. A política cambial era pensada em conjunto com preocupações ligadas à indústria, ao comércio exterior e à situação fiscal – parcela considerável das receitas do governo federal vinha dela.
Tais políticas foram executadas com criatividade e inteligência e muitas vezes fico admirado ao estudar as soluções encontradas pelos técnicos da SUMOC, do BNDE e da Assessoria Econômica de Vargas e de JK, que operavam num contexto bastante difícil. Mas a fragilidade da posição brasileira, sempre dependente do preço do café e das instáveis coalizões políticas internas, não ajudou. As oscilações da política cambial foram grandes e imagino como devia ser complicado para administradores públicos e privados lidar com um quadro cheio de vicissitudes.
O Brasil não tem a capacidade de manobra econômica da China e nem há espaço hoje para as políticas heterodoxas implementadas nos anos desenvolvimentistas. A lição que tiro desta história é apenas a de que o câmbio é um instrumento muito precioso para o crescimento da economia, e portanto não pode flutuar ao vento. É necessário que ele seja objeto de políticas públicas adequadas, que levem em conta os efeitos monetários, para o comércio exterior e para a indústria. As atuais decisões de simplesmente comprar dólares para tentar conter a a desvalorização da moeda americana frente ao real são insuficientes. Aliás, têm impacto negativo sobre a dívida pública.
segunda-feira, 28 de maio de 2007
O Pileque do Dólar Barato
O dólar finalmente caiu abaixo de R$2, algo que não acontecia desde a década de 90. A moeda americana se desvalorizou em todo o mundo, mas a queda foi particularmente brusca no Brasil, por duas razões: o boom nas exportações e os juros altos. Ambas inundaram nosso país de dólares e fizeram o real se valorizar em excesso.
O dólar barato é uma espécie de embriaguez, na qual os efeitos de curto prazo são agradáveis para o consumidor – fica mais fácil importar e viajar ao exterior – mas em pouco tempo aparece a ressaca para a economia. Em especial para o setor industrial, cujas dificuldades aumentam tanto para competir com as manufaturas estrangeiras quanto para disputar mercados internacionais.
Outro impacto negativo é que as indústrias brasileiras começam a substituir seus fornecedores. Em vez de comprarem aqui mesmo, passam a importar, para diminuir custos. O resultado é um efeito cascata de empresas nacionais prejudicadas.
O economista Dani Rodrik, um dos mais importantes especialistas em desenvolvimento econômico, está justamente escrevendo um artigo sobre câmbio e crescimento, no qual afirmará que os países têm melhor desempenho quando subvalorizam a moeda, como fazem China e Índia.
Entre nós, quem fez a proposta mais interessante foi o economista Luís Carlos Bresser Perereira. Ele avalia que o Brasil sofre da chamada “doença holandesa”, ou seja, a moeda sobrevalorizada em função de um surto exportador de produtos primários (na Holanda, isso ocorreu com o gás). Bresser sugere um imposto sobre a agroexportação, conjugado com redução de juros e controle de entrada de capitais.
Países como Chile, Venezuela e Rússia enfrentam o problema pela criação de fundos de estabilização dos preços das commodities, que taxam parte dos lucros e usam o dinheiro para investimentos no mercado financeiro ou no setor produtivo. O Brasil poderia fazer o mesmo, canalizando esses recursos para serviços públicos essenciais (educação, saúde) ou apoio à indústria.
Não faltam boas idéias. A dificuldade é contrariar os interesses do agronegócio. Até que chege este dia glorioso, me viro como posso: aproveitei o pileque e fiz uma grande compra de livros na Amazon, o pacote deve chegar pelos próximos dias.
sábado, 26 de maio de 2007
A Nova Onda do Movimento Estudantil
No início do ano, o governador de São Paulo, José Serra, baixou cinco decretos reorganizando o sistema de ensino superior do estado, de longe o melhor do país. As medidas foram acusadas de ferir a autonomia universitária na gestão financeira, garantida pela Constituição, repassando o controle de recursos no governo estadual. Conclusão do jornalista Paulo Henrique Amorim: “a reforma para centralizar nas mãos do presidente eleito José Serra toda verba disponível e dirigi-la a obras que tornem inevitável a posse (já prevista) de Serra na Presidência da República, em 2010. “
Teoria conspiratória? Vamos à notícia publicada na Folha de São Paulo (25/05/2007: “O governo José Serra (PSDB) pretende, a partir de 2008, deixar de publicar no "Diário Oficial" do Estado, a cada trimestre, o valor dos repasses mensais previstos e efetuados para as universidades estaduais. Com isso, caso o texto enviado por Serra não seja modificado pelos deputados, fica comprometido o acompanhamento do repasse e de eventuais contigenciamentos (bloqueios) de verbas para as instituições no próximo ano.”
Ou seja, concentra verbas e esconde sua distribuição. Com certeza, tudo será para o bem do Brasil.
As atitudes de Serra detonaram uma onda de mobilização nos estudantes da Universidade de São Paulo. A reitora se recusou a recebê-los e no início de maio os alunos reagiram ocupando a reitoria. Professores e funcionários da USP entraram em greve, o mesmo ocorreu também na Unicamp. O impasse continua desde então: a justiça deu ordem para desocupar o prédio, mas como a Polícia Militar só bate em pobre, e não nos filhos diletos (ainda que rebeldes) da classe média e da elite paulistana, está todo mundo negociando.
A ação dos estudantes rompe com padrões antigos do movimento estudantil e tem desorientado parte da imprensa. Os alunos que ocuparam a reitoria não agem em nome de partidos políticos ou da UNE, fazem rodízio entre suas posições de liderança, adotam autogestão do espaço, estão perfeitamente entrosados com as novas tecnologias (chequem o blog da Ocupação) e questões como a preservação do jardim parecem ter tanta importância quanto a agenda de oposição aos decretos de Serra.
O que acontece em São Paulo reflete mudanças que tenho observado no movimento estudantil em outras partes, em particular na Europa, no México e no Uruguai. Estamos diante de novas formas de ação política, que passam pela recusa a estruturas hierárquicas e estabelecem uma relação mais forte com o local, com o território, além do aproveitamento inteligente das tecnologias de comunicação.
As dificuldades também me parecem as mesmas, a maior é estabelecer um diálogo com a população. Isso é especialmente complicado no Brasil. Com menos de 10% dos jovens na universidade, aqueles que lá estão são vistos pela opinião pública como privilegiados. Como romper esse isolamento e convencer as pessoas de que a mobilização dos estudantes também diz respeito a elas?
sexta-feira, 25 de maio de 2007
Istambul
Ela havia sido a capital de grandes impérios e por seus palácios que se estendem por dois continentes passaram os dignatários romanos, bizantinos, otomanos, cruzados em busca de Jerusalém, mercadores que sonhavam com as especiarias da Ásia, artistas atrás de aventuras exóticas no Oriente e militares para quem seus estreitos eram peça fundamental em guerras quentes e frias. Os gregos a chamavam Bizâncio, os romanos, Constantinopla. Os conquistadores otomanos adotaram a corruptela grega da expressão “na Cidade” - para eles, só uma pólis era digna do nome - e a nomearam Istambul. Ohran Pamuk, o escritor turco que recebeu o Nobel de literatura deste ano, a transformou no personagem principal de seu fascinante livro “Istambul: memória e cidade”.
Esta é uma obra cuja criatividade desafia as separações usuais entre os gêneros. Os capítulos misturam memórias de infância e adolescência (“Eu”, “A minha avó”, “Primeiro amor”, “Uma conversa com minha mãe”), comentários sobre o ambiente urbano (“Explorando o Bósforo”, “Ahmet Rasim e os outros colunistas da cidade”, “A turquificação de Constantinopla”) e ensaios a respeito dos escritores franceses que visitaram Istambul, como Flaubert, Nerval e Gautier.
O que une a miscelânea de textos é o tema da hüzün, a melancolia coletiva que os habitantes da cidade sentem por viverem o período de decadência de Istambul, quando ela não é mais o centro de um império multicontinental, e sim apenas mais uma metrópole do terceiro mundo, superpovoada, pobre, assolada pelo desemprego e pelas ruínas de um passado glorioso que se esfregam como ofensa aos moradores atuais, que não conseguem viver à altura de seus ancestrais.
A família Pamuk é parte da narrativa do declínio. À época do avô do escritor eram prósperos industriais, parte da elite de modos europeus da cidade. À medida que o menino Pamuk cresce, precisa lidar com a incompetência financeira do pai e do tio, com as constantes lamentações da mãe e com a avó que rege o clã como matriarca. Não faltam as cenas de humor, em particular com os esforços dos Pamuk para continuar a freqüentar a alta sociedade, ao mesmo tempo em que criticam a falta de cultura dos novos ricos.
Embora a saga familiar seja interessante, o que me motivou a ler “Istambul” foi o entusiasmo dos meus alunos com relação ao debate se a Turquia irá ou não entrar na União Européia. Um dos grandes temas do livro de Pamuk é exatamente o esforço frustrado da República turca de enterrar o passado otomano e abraçar a modernidade ocidental.
Com freqüência essa política de redefinir a identidade nacional pela ação do Estado culminou em perseguições e massacres das minorias étnicas e religiosas (armênios, gregos, curdos, judeus) fazendo com a que cidade perdesse seu caráter cosmopolita. A elite a qual pertence Pamuk adotou superficialmente os hábitos da Europa ou dos EUA, mas permanece a sensação de mal-estar e de inautenticidade, como se fossem atores mal-interpretando um papel.
A questão não é uma querela acadêmica ou um recurso poético, pois muitos dos maiores impedimentos à entrada da Turquia na UE vem das atrocidades do Estado contra as minoriais e das disputas políticas para reprimir o Islã – o Exército, guardião do secularismo da República, volta e meia intervém por meio de golpes ou intimidação para afastar políticos islâmicos.
Pamuk é um dos críticos dos desmandos dos governos turcos e por conta das ameaças de assassinato que sofreu, teve que deixar Istambul e hoje vive nos EUA. Imagino que imerso em hüzün e com saudades agridoces de sua pólis sem igual.
quarta-feira, 23 de maio de 2007
Pensar o Nacionalismo
Desde março minhas noites de quarta-feira são dedicadas ao estudo do pensamento nacionalista brasileiro dos anos 50 e 60, em curso ministrado por meu orientador no IUPERJ. Já terminei meus créditos e não preciso da disciplina, mas a faço pelo simples (e essencial) prazer de aprender. Também é uma despedida do instituto, em poucos meses completarei o doutorado.
O pensamento da época foi muito desvalorizado após o golpe de 1964, tanto pelos militares quanto pela esquerda. O foco da crítica era parecido: identificação entre nacionalismo e populismo, termo que só então ganhou a carga pejorativa que conserva até hoje. A primeira parte do curso foi exatamente o estudo de como se construiu o conceito de populismo e como atualmente ele é retrabalhado pelos historiadores, em particular aqueles vinculados à UFF, como Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira.
Em seguida passamos para os textos dos autores mais representativos do período, os que foram membros do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB): Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier, Álvaro Vieira Pinto. O livro que mais gostei foi “O Nacionalismo na Atualidade Brasileira”, de Jaguaribe, obra de 1958 com uma das mais brilhantes análises da política externa brasileira que já li. As discussões que ele levanta a respeito das possibilidades diplomáticas do Brasil são incrivelmente contemporâneas.
Me surpreendi com a atenção que os autores do ISEB dedicavam ao mundo afro-asiático, que então estava no início de seu processo de descolonização. Por outro lado, foi assustador notar a ausência de referências à América Latina, com exceção de Jaguaribe, que muito trata do tema. A desatenção impressiona porque havia muitas idéias interessantes sobre integração regional circulando na Argentina e no Chile da década de 50, para não falar da CEPAL que então estava no auge de sua influência.
Outro ponto que me espantou foi a freqüência de citações a autores que eu não associaria com nacionalismo, como Hegel, Sartre (e os existencialistas de maneira geral). Elas contrastam com a notável falta de interesse demonstrada diante de Keynes, List, Hamilton e outros economistas que eram muito estudados pelos tecnocratas que conduziam o processo de industrialização por substituição de importações.
Ainda assim, há elementos muito saudáveis no pensamento nacionalista da época, como a ênfase na nação com um projeto, como algo que se desenvolve na história. A visão é o contraponto a toda a tradição do “ensaio de interpretação da realidade nacional” que buscava a “essência do ser brasileiro” e quase sempre concluía pelo fatalismo de nosso atraso e pobreza. Algo que segue bastante difundido no senso comum.
Minha idéia é que o ensaio que terei que escrever ao fim do curso verse sobre nacionalismo, desenvolvimento e diplomacia. Quero analisar como os debates sobre a industrialização levaram à guinada rumo à “política externa independente” do início dos anos 60. Acredito que possa explicar melhor esse processo partindo da ação da Assessoria Econômica de Vargas e de órgãos como o BNDE, a SUMOC e a própria CEPAL. Levou quase dez anos até que as teses desenvolvimentistas fossem assimiladas pelo Itamaraty, embora tivessem sido encampadas por um grupo de jovens diplomatas que haviam participado de conferências e missões importantes durante a Segunda Guerra Mundial - o de maior destaque entre eles é Roberto Campos.
Campos será o tema da aula desta quarta e para os que se surpreendem com sua inclusão, esclareço que nos anos 50 ele tinha um pensamento desenvolvimentista, embora não fosse um entusiasta do nacionalismo. Foi só mais tarde que se tornou o neoliberal que minha geração conheceu de artigos nos jornais e polêmicas no Congresso.
Para as próximas semanas, teremos aulas sobre a ideologia da segurança nacional, o papel político dos militares e sobre a UDN.
segunda-feira, 21 de maio de 2007
Água, Desenvolvimento e Pátria Contratista
Uma das alegrias do noticiário brasileiro é descobrir quem a Polícia Federal irá prender na operação da semana. A mais recente, Navalha, capturou políticos importantes e acusou o ministro das Minas e Energia de receber R$100 mil para favorecer a construtora Gautama no projeto de eletrificação rural. O ministro é um dos principais defensores das obras bilionárias das hidrelétricas no Rio Madeira, que provocam oposição de cientistas e técnicos especializados.
A proposta do governo é construir duas usinas, Jirau e Santo Antônio, no estado de Rondônia, próximo à fronteira com a Bolívia. Gerariam 6,5 mil MW, o que as tornaria a terceira maior fonte de energia hidrelétrica do Brasil, atrás apenas de Itaipu e Tucuruí. A idéia é que num segundo momento o projeto possa ser expandido para a Bolívia, com uma usina binacional nos moldes da parceria paraguaia em Itaipu. A eletricidade seria usada para fomentar um pólo de agronegócio.
Por que os cientistas se opõem ao projeto?
1- O custo de construção das usinas é muito alto e elas beneficiariam somente os grandes grupos empresariais, sem trazer benefícios para a maioria da população.
2- A experiência com outras hidrelétricas, como Tucuruí, mostram que elas provocam intensa favelização das cidades vizinhas, porque durante seu período de construção (previsto para quase 10 anos) atraem para o local milhares de trabalhadores, que depois ficam na área em condições precárias. No caso do Madeira, isso significaria problemas de crime, consumo de drogas e prostituição para a capital de Rondônia, Porto Velho. As represas também deslocarão a população ribeirinha, que possivelmente terminará se favelizando.
3- A construção das usinas significaria desmatar uma região rica em biodiversidade, considerada pelo Ministério do Meio Ambiente como uma das mais importantes do país.
A proposta dos cientistas é abandonar as grandes hidrelétricas e investir na modernização das usinas já existentes. Há estimativas de que sua produção de eletricidade poderia aumentar em até 40%. Contudo, o governo está atrelado ao modelo do “grande projeto” típico da ditadura militar brasileira. Meu colega de IBASE Carlos Tautz faz um balanço da situação:
“De toda forma, já está clara a opção pela volta dos megaprojetos de infra-estrutura na Amazônia como modelo de ocupação do território. Ela ratifica um crescimento econômico que até hoje só concentrou brutalmente a renda e favoreceu a emergência, naquela região, de uma Estado pouco republicano e que volta e meia ganha as manchetes nacionais por sua vinculação com o crime organizado. (...) Se para presidente Lula desenvolvimento significa a construção de grandes obras, exatamente como na década de 1970, um fantasma típico daquele tempo pode voltar a nos assustar: projetos que beneficiam pouco a sociedade e são um fim em si mesmo.“
Na Argentina, usa-se a expressão “pátria contratista” para definir as grandes empresas que vivem de negócios com o Estado. Ora, R$20 bilhões é muito dinheiro, suficiente para fazer a felicidade de muitas empreiteiras, ministros, governadores, mensaleiros e outros exemplares da fauna exótica que cresce serelepe por este Brasil.
As usinas do Rio Madeira são parte de um debate sobre água e desenvolvimento que abarca também os projetos faraônicos do governo federal de transposição do Rio São Francisco, da usina de Belo Monte no Rio Xingu e creio que futuramente algo será feito com relação ao Aqüífero Guarani.
Haja trabalho para a Polícia Federal!
sábado, 19 de maio de 2007
Entre os Irmãos
“Afinal, Maurício, qual é sua nacionalidade?”, me perguntava o colega paraguaio. Dei uma risada porque a pergunta reflete algo que tenho buscado: fugir dos limites estreitos impostos pelas fronteiras e pensar as questões internacionais de perspectiva mais ampla.
Ao longo das duas últimas semanas tive muito trabalho na organização e realização do seminário da pesquisa sobre juventude e integração sul-americana, minha principal atividade profissional neste ano. O encontro destes dias reuniu as equipes dos países do projeto, para discutir a metodologia do estudo, as situações que serão examinadas e o cronograma.
A sensação geral é a mesma que experimentei ao mergulhar na história argentina: muito do que eu julgava particular e exclusivo ao Brasil é uma realidade comum a maior parte dos países da América do Sul. Há variações locais e cada nação tem sua própria tradição de lutas políticas, mas o que nos une é muito mais forte do que aquilo que nos separa.
Desde o primeiro momento em que comecei a trabalhar na pesquisa, disse a meus colegas que nosso projeto não é simplesmente um estudo comparativo entre países como, digamos, China, Arábia Saudita e Alemanha. Abordamos a realidade social de nações que são vizinhas e estão engajadas num amplo processo de integração regional, portanto é necessário que sejamos capazes de dialogar com essa iniciativa e alimentá-la, fermentá-la.
Chamei a atenção para os espaços instituticionais existentes no Mercosul que facilitam nossa tarefa: a Reunião Especializada em Juventude, o recém-criado Parlamento (e sua Comissão de Direitos Humanos) e os programas de treinamento para funcionários do bloco, que também iniciaram recentemente. Com todos os problemas, há um clima favorável ao entendimento com a sociedade civil por parte dos governos da região. É uma excelente oportunidade que pode não durar muito.
Para as próximas semanas, terei bastante trabalho. É preciso alterar os instrumentos metodológicos e documentos da pesquisa, para incorporar as sugestões que apareceram no seminário. Levantar dados e estatísticas dos governos nacionais, da Comissão Econômica da ONU para a América Latina e da Organização Iberoamericana de Juventude. Ler estudos especializados preparados pelos parceiros e supervisionar o trabalho de campo.
Lá para junho e julho devo cair novamente na estrada e fazer algumas viagens pelos países da pesquisa, para acompanhar as atividades dos parceiros e a preparação dos relatórios nacionais. Ainda não sei quais me caberão.
Além do seminário, outra coisa importante da semana foi a visita ao Brasil da minha orientadora na Argentina. Ela veio dar palestras no Rio de Janeiro e aproveitei para vê-la na PUC. Foi muito bom reencontrá-la e participar novamente de um debate com ela. Meu orientador brasileiro e eu a convidamos para estar na minha banca de defesa e ela foi extremamente gentil. Agora é preciso completar a tese, claro, mas o trabalho caminha bem.
O que me preocupou no debate da PUC foi que a discussão praticamente se restringiu a nós, professores. Os alunos pouco participaram e fizeram perguntas ruins. Isso contrastou com o papo depois da palestra, onde algumas das mestras da casa estimulavam os estudantes a se dedicarem às relações internacionais para ganharem uma perspectiva mais ampla do mundo, lembrando a eles que serão a elite brasileira de amanhã.
Tudo isso está certo, mas me causam apreensão as deficiências de formação dos alunos que chegam à universidade. Pouca cultura geral, problemas de interpretação e redação de textos, atitude provinciana em relação aos grandes temas da atualidade. O retrato da classe média brasileira acuada diante de transformações sociais que não consegue compreender, e sem bagagem intelectual para romper sua bolha de isolamento.
quarta-feira, 16 de maio de 2007
Hércules 56
Curioso como nas últimas semanas ando mergulhado em filmes e livros sobre a ditadura militar no Brasil. Não foi nada planejado, mas há uma bela oferta de atrações culturais ambientadas no período. A mais recente é o documentário “Hércules 56”, primeiro dirigido por Sílvio Darin, que aborda com inteligência e bom humor um dos atos de maior impacto da esquerda armada brasileira: o seqüestro do embaixador dos EUA, trocado pela libertação de 15 presos políticos.
Darin reconta essa história de uma dupla perspectiva: reunindo numa mesa redonda ex-militantes dos grupos que executaram a ação (MR8 e ALN) e entrevistando os presos libertados graças ao seqüestro. Do primeiro time, destaca-se o jornalista Franklin Martins, atual ministro da Comunicação Social, que dá um show de brilhantismo e lucidez. Na segunda equipe, o realce é do jornalista Flávio Tavares, que se revela um excepcional contador de histórias, capaz de recriar com maestria personagens e tensões daquela época.
Há muitas discordâncias políticas tanto entre os grupos que executaram o seqüestro quanto entre os presos libertados em troca do embaixador. Alguns acham que a luta armada se justificava em função das difíceis condições da ditadura, outros pensam que ela foi uma opção errada desde o início. Também divergem sobre a avaliação do seqüestro, muitos afirmam que ele teve efeito contraproducente, detonando uma onda de repressão de amplitude trágica, que culminou no assassinato de Marighella (episódio narrado em “Batismo de Sangue”).
O melhor é que “Hércules 56” une bom humor à discussão política, qualidade incomum nos filmes sobre a ditadura, que em geral são excessivamente sérios. O grupo que executou o seqüestro é particularmente divertido: o encontro de um bando de coroas grisalhos e meio gordinhos lembrando às gargalhadas das aventuras de juventude.
Memória e identidade caminham lado a lado, o que lembramos é um elemento fundamental daquilo que somos. “Hércules 56” é a melhor resposta às falsidades e deturpações de “O Que É Isso, Companheiro?”, versão do seqüestro narrada pela ótica de Fernando Gabeira – pena que ele não participe deste filme, seria interessante ver como corre o debate com seus ex-colegas.
segunda-feira, 14 de maio de 2007
Cinzas do Norte
“A obediência cega ou a revolta”
Garimpei na feira do livro o romance “Cinzas do Norte”, de Milton Hatoum. Gostei muito – é sem dúvida um dos melhores da literatura brasileira contemporânea. Trata-se da história de uma revolta profunda, em meio à devastação que a ditadura militar executa na Amazônia.
O romance é narrado por Olavo, que conta sobre seu amigo Raimundo, filho de um dos empresários mais ricos de Manaus. Mundo, como é chamado o rapaz, é introvertido e tímido, sonha em se tornar artista plástico e enfrenta a fúria do pai, que deseja que ele assuma a todo custo os negócios da família, centrados na exportação de juta. Os núcleos desse mundo são o palacete que possuem na capital e uma imensa plantação à beira da ilha de Parinstins, a Vila Amazônia.
Olavo é uma espécie de “primo pobre” da família e cresce à sombra da dinastia. Seu tio Ranulfo, um boêmio meio rebelde, meio vagabundo, é o grande amor da mãe de Mundo, Alícia, uma mulher que está no centro de uma rede de teias de paixão, ciúme e intriga.
O romance começa em 1964, quando Olavo e Mundo se conhecem na escola e termina em 1985, com o fim da ditadura. A revolta de Mundo contra o pai e contra o que ele representa se torna cada vez mais dolorosa, com expulsões de colégios, surras e brigas intermináveis, que levam Mundo a fugir de Manaus e viver num semi-exílio no Rio de Janeiro, em Berlim e em Londres, tentando sem sucesso se estabelecer como artista. Simultaneamente, Olavo progride, mas de maneira medíocre, formando-se em Direito e trabalhando como advogado de porta de cadeia.
O contraponto aos amigos é Arana, um artista de talento duvidoso e oportunismo comercial que de mentor do jovem Mundo vira uma espécie de especialista em exotismos para turistas e para as empresas estrangeiras que se instalam na Amazônia, enquanto defende uma suposta “arte nativa autêntica” e zomba dos intentos do ex-discípulo em se vincular às vanguardas européias.
“Cinzas do Norte” é um romance amargo, da desilusão e do desencanto. O retrato da decadência de Manaus é impressionante, com a cidade se tornando um pólo inchado de miséria e a agroexportação servindo de fonte para negociatas entre o regime autoritário e seus capangas empresariais locais.
A excelente crítica de Vinícius Jatobá situa Hatoum como o “último grande modernista”, porque sua obra é “uma amorosa carta de despedida a um romance que vai se tornando estrangeiro ao gosto do público, aos desejos intranqüilos das novas vozes, e até à imagem que o Brasil quer ter de si mesmo“. Aliás, visitem seu blog, “Outra Babel”, repleto de suculentas resenhas sobre os autores que quero devorar quando terminar minha tese.
De fato, Hatoum segue a tradição dos “cronistas da casa assassinada”, como os chamou Sérgio Miceli, os romancistas que abordam a decadência das famílias de grandes proprietários rurais, que perdem espaço ou se modificam diante das transformações econômicas do Brasil do século XX.
sábado, 12 de maio de 2007
Quo Vadis, Domine?
A visita do papa Bento XVI ao Brasil demonstra o grande afastamento existente entre a Igreja Católica, o Estado e parcela considerável da opinião pública em nosso país. Teríamos que retroceder aos conflitos durante a ditadura militar, ou mesmo à Questão Religiosa durante o Império, para encontrar uma situação comparável.
O Vaticano insiste por um tratado diplomático que outorgue privilégios fiscais à Santa Sé, o chanceler brasileiro sequer recebe o papa. O governo quebra a patente de medicamentos para combater a AIDS e inicia um tímido debate sobre o aborto. A Igreja radicaliza suas posições e equipara as meninas que “ficam” a prostitutas, ao mesmo tempo em que ameaça excomungar políticos que defendam o direito a interromper a gravidez. O endurecimento do discurso reflete o medo do Vaticano de sofrer no Brasil derrotas como as que experimentou recentemente em Portugal e na Cidade do México.
A América Latina concentra 40% dos católicos do mundo e o Brasil é o maior país do continente. Contudo, entre 65% e 75% dos brasileiros se declaram católicos (varia conforme a pesquisa, os dados que cito neste post saíram de reportagens na Carta Capital, Valor, Globo e Estado de São Paulo), enquanto no México e na Argentina o percentual está em torno de 90%. Os evangélicos avançam e a Igreja contra-ataca imitando-os, como na Renovação Carismática.
Diz o teólogo e ex-frade fransciscano Leonardo Boff: “A Igreja não soube se renovar institucionalmente, nem na linguagem, nem nas celebrações. Deveríamos ter cerca de 120 mil padres e temos somente uns 16 mil.” O déficit de sacerdotes é um problema crônico na América Latina. Os teólogos da libertação enfatizaram o ponto e defenderam mais poder aos leigos, criticando a arrogância da hierarquia. A ala conservadora não deixou por menos. Eis o balanço do arcebispo da Paraíba, dom Aldo Pagotto: “As antigas comunidades eclesiais de base só faziam crítica social e desaguaram em quê? Nestes movimento sociais que temos hoje, que só promovem invasões e fazem baderna, nada mais.”
E os católicos? O que pensam e sentem a respeito dos conflitos dentro da Igreja? Menos de metade dos brasileiros sabem o nome do papa. Quase 90% defendem o uso da camisinha e a maioria aceita o aborto em caso de risco à vida da mãe (76%) ou estupro (70%). Nas reportagens sobre a visita de Bento XVI, mesmo as pessoas que esperavam sob a chuva para ouvir-lo falar manifestavam a discordância, ou a ignorância das posições que ele sustenta. Parecia platéia à espera de um ex-Big Brother, não um grupo de fiéis empenhados em renovar sua fé. A própria cobertura televisiva destacou o aspecto trivial da visita, como o tipo de comida que será servida ao papa.
quarta-feira, 9 de maio de 2007
Batismo de Sangue
Falei mal do cinema brasileiro na semana passada, agora é hora do merecidíssimo elogio a “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton, adaptação do livro autobiográfico de frei Betto sobre o envolvimento dos dominicanos na resistência armada à ditadura militar. Relutei em assistir ao filme: trabalhei com pessoas que participaram dessa história e receava as cenas em que eles são torturados.
De fato, o sentimento de angústia que tive ao vê-las foi muito forte. Não são mais cruéis do que as imagens em filmes anteriores sobre a ditadura, como “Cabra-Cega” e “Ação entre Amigos”. Mas minha identificação com os protagonistas tornou-as insuportáveis. Os próprios atores disseram que choraram ao filmá-las.
A trama se passa entre 1968 e 1974 e acompanha cinco jovens frades dominicanos – Tito, Fernando, Ivo, Betto e Oswaldo – que se aproximam de Carlos Marighella, o lendário líder comunista que durante a ditadura se afastou do partido e tentou criar uma guerrilha contra o regime. Os freis ajudam com informações, apoio logístico e auxiliam na retirada de perseguidos políticos do Brasil. Contudo, a polícia os descobre e tortura os três primeiros, que acabam traindo Marighella, assassinado numa emboscada pela equipe do delegado Fleury. Os frades são presos, mas Tito – o que foi mais barbarizado pelas selvageria da repressão – é libertado em troca do embaixador suíço. Ele segue para o exílio na Europa, mas não consegue escapar do pesadelo psicológico da tortura, e comete suicídio.
A história é muito conhecida na esquerda, mas acredito que as pessoas sem envolvimento político nada sabem a respeito dela. Talvez o filme jogue muitos fatos na tela sem contexto. Por exemplo, mostra a operação policial contra o congresso da União Nacional dos Estudantes em 1968, sem explicar que a organização tinha sido proscrita pela ditadura.
“Batismo de Sangue” tem momentos de grande beleza, como a missa que os frades celebram nos cárceres do DOPS, ou as cenas nos conventos dominicanos de São Leopoldo (Rio Grande do Sul) e La Tourette (França). Também recria de modo interessante o ambiente no Presídio Tiradentes, onde foram presos vários ativistas políticos e existiu uma intensa vida intelectual e cultural – tinha até ateliê de pintura!
O elenco é muito bom, com destaque para Caio Blat, que interpreta frei Tito – o protagonista do filme. É impressionante a fragilidade que ele empresta ao personagem, muito diferente de seu papel em “Proibido, Proibir”. Caio faz bela carreira, olho nele. Daniel de Oliveira também dá um show como frei Betto. Aliás, confiram a ótima conversa dos dois com o escritor dominicano.
Encerro com uma pequena crítica ao filme. Ele poderia terminar de modo esperançoso. O suicídio de frei Tito foi trágico, mas os outros frades seguiram adiante e deram contribuições importantes para o Brasil, como religiosos, como professores, como autores de livros. Inclusive a minha obra favorita de frei Betto, “Cartas da Prisão”, foi escrita no Presídio Tiradentes.
A Ordem Dominicana foi muito visada pela ditadura, ficou anos sem admitir membros por receios de que eles fossem perseguidos pelos militares. Uma das sessões mais emocionantes do filme foi realizada para 60 dominicanos, que relembraram aquela época de trevas e falaram com ânimo da renovação das atividades da Ordem.
No fim das contas o delegado Fleury perdeu.
Nunca é demais lembrar.
domingo, 6 de maio de 2007
Futebol e Política na Argentina
Virei o gigolô da Argentina, ganho a vida desnudando o país para meus compatriotas. Encontrei uma mina de ouro, pois é enorme nosso desconhecimento até dos fatos básicos sobre nosso parceiro econômico mais importante na América Latina. Nas minhas palestras e artigos tenho destacado os aspectos cotidianos da vida argentina, estabelecendo suas relações com a política. Foi o caso do texto sobre a memória com relação à ditadura. E também o da palestra que dei na sexta-feira, “Futebol e Política na Argentina”, no âmbito da Semana de Esporte e Sociedade do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes.
Como sou professor da casa, estava entre compadres. Falei na mesa sobre “diplomacia dos gramados”, dividindo o palco com João Daniel, amigo de longa data, e figura mitológica no meio carioca das relações internacionais. Há cerca de um ano Daniel e eu escrevemos um artigo sobre futebol e política externa brasileira, texto que ele apresentou com muito brilho e bom humor. Não nos víamos desde minha partida para Buenos Aires e foi o reencontro feliz de dois irmãos de armas.
Coube a mim a exposição sobre a Argentina, mas disse ao público que falaria menos de diplomacia e mais das relações do futebol com a política doméstica no país vizinho. Me concentrei nos governos de Perón e na ditadura militar de 1976-1983, discutindo as tramas de poder e clientelismo entre as autoridades e os clubes mais importantes. Claro que o ponto mais importante foi a realização da Copa do Mundo de 1978 e o modo como os militares a transformaram num grande instrumento de propaganda para tentar legitimar o regime autoritário.
Ressaltei a coincidência macabra de que o Estádio Monumental do River Plate, onde ocorreram os jogos mais importantes, fica a cerca de 800 metros da Escola de Mecânica da Armada, o pior centro de torturas (os argentinos dizem “campo de concentração”) do período. E isso num momento em que a repressão estava em pleno andamento. Recomendei o excelente romance de Martín Kohan, “Duas Vezes Junho”, que utiliza o futebol como metáfora das crises argentinas e é ambientado nas Copas de 1978 e 1982.
O trecho da minha palestra que provocou o maior interesse do público foi minha comparação entre Maradona e Pelé. Abordei a eterna rivalidade entre os dois pela perspectiva do mito: qual a imagem pública que os dois assumem? Disse que Pelé simboliza o lado conciliador da política brasileira, tendo atuado inclusive como mediador internacional na guerra civil da Nigéria. É um negro que jamais aborda a discriminação racial e que usou seu prestígio de atleta para desenvolver uma bem-sucedida carreira empresarial. Foi até ministro de Estado. Maradona, por contraste, é o gênio irreverente e rebelde, amigo de Chávez e de Fidel. Mas seu talento convive com uma pulsão autodestrutiva quase incontrolável, ainda que balanceada pela capacidade de recomeçar do fundo do poço e reinventar-se. Qualquer semelhança com a história recente da Argentina não deve ser mera coincidência.
Lembrei a contribuição de Maradona para a teoria das relações internacionais, por sua celébre declaração: “Fiz o gol de mão contra os ingleses porque eles nos roubaram as Malvinas”. Isso na Copa de 1986, apenas quatro anos depois da guerra e num momento que as relações diplomáticas entre a Argentina e o Reino Unido ainda estavam rompidas.
Falei ainda sobre as torcidas organizadas argentinas, as barras bravas e o papel que desempenharam na rede clientelista do peronismo na Grande Buenos Aires. Terminei chamando a atenção para a figura de Maurício Macri, um rico empresário que virou presidente do Boca Juniors e agora quer presidir a República. Sim, ele se inspira em Berlusconi. Pobre Argentina. Mas até aí, quem somos nós para lamentar, com nosso Eurico Miranda?
O evento foi muito divertido para mim, e acredito que os alunos também tenham aproveitado. Mais do que tudo, faz parte de uma perspectiva que trabalho com carinho: aproximar a ciência política do cotidiano e pensá-la como um conhecimento alegre, do mundo da vida.
Ah, sim. Encerrei com um episódio que aconteceu comigo e com uma amiga num café de Buenos Aires, no qual havia duas bandeiras entrelaçadas, da Argentina e do Brasil. Perguntamos ao garçom o porquê daquilo e ele nos respondeu que elas foram colocadas durante a Copa de 2006 e os clientes gostaram, de modo que foi decidido que elas ficariam por ali: “Além disso, somos irmãos”. É verdade, e isso é o que basta.
quinta-feira, 3 de maio de 2007
Por que o cinema brasileiro está tão ruim?
No feriado assisti a "Proibido Proibir", de Jorge Durán, que parte da crítica saudou como a obra-prima sobre ser jovem no Brasil. Me decepcionei. O filme tem méritos, mas seus defeitos são bastante ilustrativos dos problemas do cinema brasileiro atual. Ok, o Durán é chileno, mas vive aqui há décadas e foi roteirista de clássicos das telas nacionais, como "Lúcio Flávio, passageiro da agonia".
"Proibido Proibir" começa como um triângulo amoroso entre três estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Paulo (Caio Blat) cursa medicina e parece não acreditar em nada, a não ser sexo, drogas e... samba antigo (o rock´n roll morreu). Ponto para Blat que está muito bem no papel. Divide apartamento com Léon (Alexandre Rodrigues), que estuda sociologia e junta preocupações sociais com a vontade de aproveitar o que a vida tem de bom, como a namorada Letícia (Maria Flor), bela, rica e algo mimada aluna de arquitetura.
O filme seria excelente caso se concentrasse nesse núcleo de personagens, fazendo a crônica de lugares que pouco aparecem no cinema, como o campus da UFRJ na Ilha do Fundão e o bairro da Penha. Mas parece que baixou o sentimento de culpa na equipe e a história envereda pela denúncia social, envolvendo os estudantes de classe média com moradores de favela ameaçados por grupos de extermínio e policiais corruptos. Soa falso. O roteiro erra a mão e cai em várias incoerências e falhas.
O povo é retratado como bom e puro, só que ingênuo, precisa ser guiado pelos intelectuais da zona sul do Rio de Janeiro. Um xarope que já era difícil de engolir nos anos 60 e é muito decepcionante que os cineastas continuem a tratar dos pobres por essa perspectiva populista, mesmo depois de tantos movimentos sociais importantes terem aparecido no nosso país.
Talvez pela tradição do cinema social dos anos 60, os artistas contemporâneos sentem-se obrigados a retratar as mazelas do país. A questão é que Glauber Rocha e cia sabiam do que falavam. Quando Glauber misturava o sertão nordestino com o os cânones do Velho Oeste e fazia uma maravilha como "Deus e o Diabo na Terra do Sol", criava a partir de sua experiência pessoal, da realidade que conhecia. O bang bang urbano de muitos cineastas contemporâneos soa apenas uma versão mal-editada do noticiário das 19h. Como diz a crítica Ivana Bentes, minha ex-professora de história e teoria do cinema, passamos da estética da fome à cosmética da fome.
Também me frustra o baixo nível dos roteiros, em particular os diálogos. "Proibido Proibir" repete piadas sobre drogas ou clichês sobre como ninguém faz nada pelo Rio de Janeiro. A degradação da linguagem é igualmente a corrupção do pensamento. Sempre. Influência da TV? Falta do hábito da leitura? Péssima qualidade da educação? Contrasta com o alto nível poético de tantas letras de música no Brasil, da MPB ao hip-hop.
Não entro pelas dificuldades de arranjar financiamento, porque não trato de grandes produções. Falo sobre boas idéias, projetos simples. Basta pensar, por exemplo, nos excelentes filmes britânicos recentes, como "A Rainha" e "Notas sobre um Escândalo". Produções modestas, mas bem realizadas, que divertem e botam o espectador para pensar. Mas reconheço que mesmo conseguir um baixo orçamento é difícil, um profissional do prestígio de Durán ficou 20 anos sem filmar.
Mestre Antônio Candido - o melhor crítico literário deste país - escreveu que a literatura brasileira era um arbusto secundário no jardim das musas, mas era ela, e não outra, que nos expressava. O mesmo pode ser dito a respeito de nosso cinema, mas me surpreende o constraste entre um país cheio de histórias à flor da pele, onde cada esquina guarda uma tragédia e uma comédia, e a má fase dos filmes nacionais.
terça-feira, 1 de maio de 2007
Memória e Democracia
Uma das coisas que mais me emocionaram na Argentina foi o modo como país cultiva a memória da resistência à ditadura militar de 1976-1983. Contraste com o Brasil. O desconhecimento da nossa própria história é chocante em todas as classes sociais e níveis de escolaridade e tem muito a ver com a fragilidade de certos aspectos da nossa democracia. Lembrar não é apenas um exercício intelectual, é uma forma de participação na vida coletiva, na experiência compartilhada de um povo. Na América Latina, a memória caminha ao lado da democracia, a recordação dos crimes cometidos pelas ditaduras militares é a garantia do “Nunca Mais”.
No domingo, o jornal “O Estado de S. Paulo” publicou em seu suplemento cultural um pequeno ensaio sobre memória e democracia escrito pela historiadora Janaína Telles e por mim. Tratei dos trechos relativos à Argentina, ao Chile e ao Uruguai, destacando o quanto o tema está presente nas artes e na própria cultura de massas – por exemplo, na telenovela argentina “Montecristo”, que adapta a trama de Alexandre Dumas para o cenário do terrorismo de Estado dos militares. Minha co-autora aborda a situação no Brasil, a partir de seu trabalho acadêmico e de sua trajetória pessoal como filha de presos políticos. Reproduzo o parágrafo inicial:
Está em curso na Argentina, no Chile e no Uruguai uma nova onda de valorização da memória histórica sobre as ditaduras militares dos anos 70 e 80. A discussão ultrapassou os círculos políticos e acadêmicos e alcançou, de modo contundente, o cotidiano e a cultura popular. O processo se insere em um quadro político mais amplo: a ascensão às presidências sul-americanas de governos de esquerda, nesta primeira década do século 21, e os debates sobre o aprofundamento da democracia. No Brasil, passado mais um “31 de março”, é de se perguntar: e nós?
Há poucos dias dei palestra sobre “Sociedade Civil e Direitos Humanos no Mercosul” na semana de relações internacionais do Centro Universitário La Salle, em Niterói. Falei sobre vários aspectos do tema, mas me chamou a atenção como a maioria das perguntas foi a respeito da ditadura militar na Argentina – por coincidência foi na noite em que se decretou a prisão perpétua do general Videla. Os estudantes queriam saber porque o movimento da memória é tão forte no país vizinho.
Causa alguma surpresa entre os hermanos as posturas brasileiras, sobretudo do nosso governo, de jogar a poeira para debaixo do tapete e evitar falar sobre determinados temas. Quando Pinochet morreu, Lula chegou até a elogiar a ditadura militar do Brasil, que não teria sido tão ruim quanto a chilena.
Ora, minha senhoria era uma exilada do regime de Pinochet e comentou comigo as declarações do nosso presidente: “Sei que você me disse que várias pessoas de classe média têm preconceito contra Lula por ele não ter cursado a universidade, mas opiniões como essa mostram que lhe falta formação política”. Talvez, mas quem sabe fosse só oportunismo político, dizer aos militares brasileiros que não precisavam temer investigações sobre o terrorismo de Estado que cometeram entre 1964-1984, ao contrário de seus colegas de Cone Sul, que viram sua impunidade desaparecer.
Imagem: La Memoria, pintura do artista argentino Luis Felipe Noé.
Assinar:
Postagens (Atom)