terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Energia, o gás da integração


“No mundo contemporâneo, só as regiões se desenvolvem. Continentes integram-se através de processos político-econômicos como na Europa. Conjuntos de países articulam-se em redes de cadeias produtivas, como o Japão e os “gansos” do leste da Ásia. Estados de porte colossal, com milhões de quilômetros quadrados, como EUA, China e Índia, valem-se desses recursos para levar adiante seus projetos de crescimento. A América do Sul precisa seguir a mesma direção para superar o impasse que seu modelo de desenvolvimento enfrenta desde os anos 80.”

Esse é o primeiro parágrafo do meu ensaio “Desenvolvimento como Integração”, premiado pelo Itamaraty em 2005. O tema da energia ilustra de maneira clara o ponto que quero destacar: no atual estágio da economia mundial, para prosperar os países precisam pensar numa escala mais ampla do que a dos mercados e recursos naturais nacionais. Nos últimos dias, a questão esteve nas manchetes por conta das negociações da Argentina, da Bolívia e do Brasil com relação ao abastecimento energético – por gás, energia nuclear e hidrelétrica.

A Bolívia exporta muito gás para o Brasil e algo para a Argentina. O país dos Kirchner enfrenta séria crise de abastecimento, e vários problemas no relacionamento entre o governo e as empresas do setor energético, que se recusam a rever contratos para lá de vantajosos assinados na era Menem. Na queda de braço, os investimentos escassearam e a Argentina, apesar de rica em gás, teve que tomar medidas controversas, como violar tratados internacionais e praticamente cortar o fornecimento ao Chile, que não gostou nada da história.

Os bolivianos propuseram ao Brasil romper o contrato e desviar para a Argentina parte do gás exportado para cá. A Casa Rosada acrescentou que uma negativa por parte do governo brasileiro implicaria na necessidade de medidas de racionamento contra o maior consumidor de energia argentina – as instalações da Petrobras no país. O Brasil temia que a quebra contratual estabelecesse um precedente perigoso, e fincou pé nessa recusa, embora tenha oferecido cooperar com a Argentina em outras áreas.

O acordo mais interessante é a criação de empresa binacional dedicada ao enriquecimento de urânio, que será fundamental na construção do submarino nuclear brasileiro. É excelente decisão que retoma o espírito dos célebres tratados atômicos dos anos 1980. A perícia técnica dos cientistas argentinos é muito conhecida e certamente ajudará muito o projeto militar. Na realidade, um ex-dirigente diplomático do governo Menem certa vez se queixou comigo de que havia proposto algo semelhante a Fernando Henrique Cardoso, mas sua oferta fora rechaçada. Pudera: o Brasil era muito cauteloso diante das “relações carnais” existentes entre Argentina e EUA naquela época.

Além da retomada nuclear, o Brasil também anunciou projetos para a construção de quatro hidrelétricas binacionais: duas com a Bolívia, duas com a Argentina.

Como diz mestra Maria Regina e o amigo fraterno Marcelo Coutinho, entramos em novo período da integração sul-americana. Ficou para trás o “regionalismo aberto” dos anos 1990, baseado na abertura comercial, e começou a se concretizar um paradigma diferente, calcado na valorização da cooperação em infra-estrutura (energia, transportes, comunicação). A geografia, o local, ganharam importância.

De fato, a distribuição dos recursos energéticos na América do Sul é muito propensa à integração. As maiores reservas de gás e petróleo (Venezuela, Bolívia) complementam as necessidades das maiores economias (Brasil, Argentina, Chile) e há possibilidades interessantes também no Peru, com o gás de Camisea. A América Central já criou organismo regional para lidar com o tema da energia, talvez seja esse o caso num futuro nem tão distante para este continente.

5 comentários:

Anônimo disse...

Olá Santoro, existe alguma bibliografia sobre esse assunto?

IcaroReverso disse...

Que boa notícia, parecem boas novas. Tomara que sejam. Abraço.

Patricio Iglesias disse...

Caro Maurício:
Bom artigo, Maurício. Espero que a integraçäo da América Latina cheve a melhores nivéis de vida pra nossos povos e que superem-se as velhas rivalidades.
"O país dos Kirchner". Acaso näo é de todos os argentinos? HEHEHEHE
Saludos portenhos

Patricio Iglesias

Patricio Iglesias disse...

O submarino teria uma utilidade näo militar?

Maurício Santoro disse...

Caro anônimo,

além dos textos linkados no post, recomendo o excelente artigo de Ricado Sennes e Paula Pedroti sobre integração energética na América do Sul:

http://www.foreignaffairs-esp.org/20070701faenespessay070305/ricardo-sennes-paula-pedroti/integracion-energetica-regional-viabilidad-economica-y-desafios-politicos.html

Salve, Ícaro.

Sim, parece que as coisas avançam.

Hola, don Patricio.

Me olvidé que hablo con la joven esperanza de la UCR (risas). Pero tienes razón, el país es de todos, y no solamente del matrimonio Kirchner, aún algunas personas en oficialismo no concorden con nosotros.

Pero es impresionante como nuestros países estan dejando para el pasado las rivalidades y disputas. Muy buenas noticias.

Sobre el submarino, los reatores nucleares también tienen implicaciones para la producción de energia eléctrica para civiles. El reator que será utilizado en el submarino puede iluminar una pequeña ciudad, de cerca de 25 mil personas.

Abrazos