domingo, 17 de fevereiro de 2008
A União Européia e Kosovo
Hoje a província de Kosovo decretou sua independência da Sérvia, no último capítulo da história de 17 anos de fragmentação da ex-Iugoslávia. O novo país é pequeno e pobre, mas politicamente relevante pois se trata de peça importante na estratégia da União Européia de estabilizar a zona dos Bálcãs, e de quebra enfraquecer a posição da Rússia (tradicional defensora dos sérvios) na região.
Na década de 1990 as ex-repúblicas iugoslavas – Eslovênia, Croácia, Bósnia e Sérvia e Montenegro – se enfrentaram numa série de guerras civis sangrentas, para determinar o território que cada uma obteria e o que fazer com as minorias étnicas. Só a Macedônia foi poupada. O resultado foram os piores massacres ocorridos na Europa desde a Segunda Guerra Mundial e repetidas humilhações para a União Européia, a OTAN e a ONU.
Todas as ex-repúblicas iugoslavas cometeram atrocidades nesses conflitos, mas para as potências ocidentais a Sérvia apareceu como a maior preocupação, e o ex-presidente Slobodan Milosevic adquiriu reputação comparável a de Saddam Hussein. Ao fim dos anos 90 havia um consenso entre americanos e europeus de que ele não era um negociador confiável e que seri a melhor se livrar dele e partir para uma liderança mais dócil. Quando a Sérvia começou a ameaçar a minoria de origem albanesa da província do Kosovo, o resultado foi a guerra do Kosovo, em 1999. Uma longa campanha de ataques aéreos acabou com os riscos de genocídio e contribuiu para a queda de Milosevic, um ano depois.
Na ocasião, eu estudava na Itália – cuja costa adriática fica a poucas dezenas de quilômetros da ex-Iugoslávia – e me lembro de um jantar interrompido pelo gerente de um restaurante que entrou agitado no salão, anunciando que o Parlamento de Belgrado estava em chamas. Dias depois, conversei com militares italianos que partiam em missão de paz para a Bósnia. A viagem terminou com o discurso do papa João Paulo II no Vaticano, cumprimentando os sérvios pela queda da ditadura. Eu e os demais presentes à praça de São Pedro aplaudimos entusiasmados. Foram lições importantes para mim: na Velha Europa, o espectro da guerra está sempre presente, e tem dimensão inimaginável para nós, latino-americanos.
Nestes primeiros anos do século XXI, os Bálcãs foram pacificados pela força, com 16 mil tropas internacionais mantendo a ordem pública na região. Kosovo é administrada pela ONU desde 1999, um dos governadores da província é o atual chanceler francês. A Eslovênia se incorporou à União Européia, em ampla história de sucesso econômico, e a Croácia negocia para fazer o mesmo. Bruxelas oferece acordos de cooperação e recursos financeiros à Bósnia, à Macedônia e à Sérvia. O desejo de fazer “parte da Europa” (ou do Ocidente, ou da modernidade) tem muito apelo entre a população local, em particular entre os jovens. No início de fevereiro, o candidato pró-UE venceu as eleições presidenciais na Sérvia, mas seu primeiro-ministro é pró-Russia, num instável governo de coalizão.
O tom na imprensa internacional tem sido arrogante com a Sérvia, dizendo ao país que a independência de Kosovo é o preço a ser pago pela entrada no mundo civilizado. Mas a província é o centro da cultura sérvia e, pior ainda, o local onde o país foi conquistado pelo Império Otomano, após perder uma grande batalha no século XIV. Às vezes penso que o nacionalismo é como a visão da História definida por James Joyce: um pesadelo do qual tentamos despertar.
E para uma visão da Sérvia e da Eslovênia recente, chequem o blog que meu irmão manteve durante sua viagem à região, em outubro de 2007.
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5 comentários:
Este foi, até ao momento, o texto mais interessante que li sobre o tema.
A questão é, de certa forma, como está aqui exposto no final: os nacionalismos desenfreados devem terminar para que a paz seja estabelecida, num momento da história humana em que as pessoas se vangloriarão mais pela sua cidadania mundial do que pelo amor cego à sua nação.
O real motivo da independência do Kosovo parece ser Bondsteel. Copio aqui comentário feito no sítio do Azenha: "Marcos (17/02/2008 - 21:47)
Azenha, comprei e li, em 2007, o livro 'As Aflições do Império', de Chalmers Johnson (é excelente... recomendo a leitura) onde ele revela importantes informações sobre a Base de Bondsteel, no Kosovo (o livro foi publicado em 2002... as informações a seguir foram retiradas das páginas 168 a 173 do citado livro). Lá vai: 1) Ela foi a maior e mais cara base americana desde a Guerra do Vietnã, custando US$ 36,6 milhões e são necessários US$ 180 milhões, anualmente, para mantê-la funcionando; 2) É tão grandiosa que os piadistas do Exército dos EUA dizem que somente 2 objetos na Terra podem ser vistos do espaço: a Muralha da China e a base de Bondsteel; 3) ela foi construída logo após o fim da Guerra da Iugoslávia e, para isso, foram confiscados, pelos EUA, milhares de hectares de terras pertencentes a proprietários particulares; 4) Próxima à base de Bondsteel foi construída uma outra, menor, mas também muito luxuosa, chamada 'Camp Monteith'; 5) A empresa que construiu Bondsteel foi a 'Kellog, Brown & Root', pertencente à Halliburton (da qual Dick Cheney foi Diretor-Executivo); 6) A 'K, B & Root' faz tudo em Bondsteel: manutenção das casernas, se encarrega da comida, varre o chão, transporta os suprimentos, opera os sistemas de água e esgoto. A empresa emprega cerca de 1000 ex-militares dos EUA e 7000 albaneses, fornece 2,27 milhões de litros de água diariamente, eletricidade suficiente para iluminar uma cidade de 25 mil habitantes, lava 1200 sacos de roupa suja, prepara e serve 18 mil refeições por dia. A base tinha tanto excesso de pessoal que os escritórios eram limpos 4 vezes por dia, e as latrinas, três vezes. Soldados de serviço em Bondsteel contam que a única etiqueta que falta em seus uniformes de camuflagem é a de Patrocinado por Brown & Root. A empresa fornece serviços semelhantes a outras bases militares localizadas no Kuwait, Turquia e no Uzbequistão; 7) Dick Cheney era Secretário de Defesa (no governo de Bush pai) quando a 'Brown & Root' começou a fornecer serviços logísticos ao Exército. Cheney é o pai da idéia de que as operações de logísticas dos militares deviam ser privatizadas, procurando recompensar o setor privado. Entre 1995 e 2000 Cheney atuou como o principal Executivo da Halliburton. Sob sua direção a empresa 'Brown & Root' recebeu US$ 2,3 bilhões em contratos do governo, quase o dobro do que havia recebido nos 5 anos anteriores da sua chegada à empresa. Em 1999 a Halliburton tornou-se a maior empresa não sindicalizada dos EUA... só foi ultrapassada, depois, pela Wal-Mart. Quando Cheney foi diretor-executivo da Halliburton ela pulou da 73o. lugar para o 18o. na lista das principais firmas contratadas pelo Pentágono; 8) Agora, veja só que interessante: a base de Bondsteel fica localizada acima da estrada do previsto (obs: o livro é de 2002... não sei se foi construído) oleoduto transbalcânico conhecido como AMBO (Albânia, Macedônia, Bulgaria Oil),um projeto de US$ 1,3 bilhão que bombeará PETRÓLEO da bacia do Mar Cáspio transportado por navio-tanque de um oleoduto terminal, através do Mar Negro, para o porto petrolífero búlgaro de Burgas, de onde será levado através da Macedônia para o porto albanense de Vlore, no Adriático. Dali, superpetroleiros o carregarão para a Europa e os EUA, evitando, assim, o congestionado estreito de Bósforo, atualmente a única rota de saída do Mar Negro por navio, e no qual é proibida a navegação de petroleiros de mais de 150 mil toneladas. O primeiro estudo de viabilidade do oleoduto AMBO foi feito em 1995 pela... 'Brown & Root', que o atualizou em 1999. Bondsteel parece ser uma base ideal para defender os interesses do 'complexo militar-petrolífero' (expressão cunhada por James Galbraith, da Universidade do Texas) do qual Dick Cheney é o padrinho. Em Fevereiro de 2003 os EUA começaram a construir 2 novas bases militares em Burgas. O porto de Burgas é onde fica a maior refinaria da Bulgária e fornece todo o combustível de que a aviação americana necessita. Na Romênia, no porto de Constanta, os EUA estavam construindo (em 2003) outra base semelhante. Constanta é o... centro da vasta indústria petrolífera da Romênia. A guerra no Afeganistão e a segunda guerra com o Iraque revelaram ser excelentes oportunidades para os EUA consolidarem sua estratégia petrolífera para os Balcãs, da qual o primeiro estágio foi Camp Bondsteel"
Olá, Sam. Obrigado, mas há coisa muito mais interessante na imprensa européia, em particular na britânica.
Olá, Patrick.
Li o livro do Johnson e acho uma análise muito boa da política de bases americanas no exterior. Contudo, os Bálcãs não são uma área estratégica para os EUA - eles foram arrastados para lá contra a vontade, basicamente pela incapacidade dos europeus em resolverem a situação.
Ainda hoje, Kosovo é algo que diz muito mais à União Européia, embora os EUA também tenham um naco considerável no bolo.
Abraços
Olá,Maurício!!Gostaria de te fazer uma pergunta,mesmo sabendo que o tópico não encabeça mais o blog: Esse desmembramento do Kosovo da Sérvia(entre outras coisas,por possuir em seu território grupos étnicos e religiosos que são minoritários no país,mas maioritários na região),a contra-gosto da mesma,e tão rapidamente legitimado por muitos da comunidade internacional,não pode acabar por abrir precedentes de tentativas de separatismo ao longo do globo?A Espanha se mostrou surpresa e receosa em relação a essa resolução,por saber que tem em casa duas questões separatistas(Catalunya e País Basco)que julga ter amansado fazendo uso de federalismo(dando certas autonomias para frear o ímpeto fragmentador dos locais).Além da Espanha,sabemos que no Canadá,Quebèc já tentou muitas vezes se tornar um país a parte,alegando ter construído sua identidade e cultura "quebecòis" totalmente distinta do restante do país,isso sem falar na Rússia, que enfrenta a questão da Chechênia em seu território.Sei que cada caso é um caso e todos têm suas especificidades,mas...Essa separatismo kosovar não pode acabar abrindo precedentes para que grupos separatistas novamente crescam e tentem mudar as fronteiras do sistema internacional??
Um abraço.
Salve, Rafael.
De fato, alguns países europeus com minorias étnicas significativas (Espanha, Romênia) se mostraram bem menos entusiasmados com o Kosovo do que, digamos, a Alemanha.
A Rússia também é opositora tenaz desse tipo de desmembramento por temer o efeito cascata sobre os mais de 70 grupos étnicos que a compõem.
Isso para não mencionarmos outras situações explosivas, como a dos curdos e dos palestinos.
Contudo, não acredito que Kosovo terá um efeito tão amplo, simplesmente porque o apoio da UE e dos EUA a novos países é muitíssimo seletivo - a regra é privilegiar a estabilidade, a não ser em casos nos quais os ganhos políticos e econômicos sejam significativos.
Abraços
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