sexta-feira, 11 de julho de 2008

A Distância entre Nós



Ontem à tarde tivemos uma reunião de planejamento aqui no trabalho e disse que gostaria que discutíssemos mais a fundo o tema da desigualdade, para examinar as transformações que estão em curso no Brasil (como a ascensão da classe C). Afirmei também que estávamos muito presos ao formato acadêmico tradicional, de leitura de artigos especializados, e que deveríamos buscar inspiração em outras fontes, sobretudo na arte. Muito da minha opinião veio da leitura do romance “A Distância entre Nós”, da escritora indiana Thrity Umrigar.

O enredo soa dolorosamente familiar para qualquer brasileiro e não por acaso o livro chegou a ser best seller por aqui: é a narrativa da relação entre duas mulheres, uma dona de casa de classe média alta e sua empregada doméstica. Ambas convivem diariamente há mais de 20 anos e desenvolveram uma intensa confiança e admiração mútua. Mas o abismo da desigualdade que as separa está sempre presente e traz conseqüências trágicas para ambas.

A narrativa se divide entre as famílias das duas mulheres, tendo como pano de fundo a turbulenta, multicultural e caótica cidade de Mumbai (a tradução brasileira optou pelo nome antigo de Bombaim, que não é mais usado na Índia). Sera é a filha de cientistas que se casou com um executivo do Grupo Tata, o mais poderoso império industrial do país. Eles tiveram uma vida confortável financeiramente, mas marcada pelas difíceis relações de Sera com a sogra, e por violência conjugal mais do que ocasional por parte do marido. Quando o romance começa, Sera ficou viúva há poucos anos, e se divide entre alívio e saudades de seu falecido esposo. O que realmente a deixa feliz é o convívio com a filha, grávida do primeiro filho, e o genro. Os dois jovens representam a nova geração, bem educada, com experiência no exterior, próspera e moderna.

A contraparte de Sera é Bhima, sua empregada de muitos anos. Ela teve uma vida razoavelmente estável até a maturidade, com um casamento feliz e dois filhos. A guinada negativa aconteceu quando seu marido sofreu grave acidente de trabalho, que resultou em desemprego, alcoolismo e numa intensa decadência econômica, que levou à fragmentação da família e à mudança de um apartamento modesto para uma favela. A esperança de Bhima é sua jovem neta, Maya, adolescente brilhante que conseguiu entrar na universidade, mas corre o risco de perder tudo por uma gravidez indesejada. O contraste entre sua situação e a da filha de Sera é a tensão que move o romance.

Sera e Bhima se apoiaram mutuamente em muitos momentos difíceis, superando juntas situações de violência, doença e problemas econômicos. Como empregada fiel de muitos anos, Bhima é “quase da família” - uma amiga americana que estuda relações raciais no Brasil certa vez me disse que quando ouve essa expressão, tem certeza de que a pessoa à qual ela se refere não é branca... É o caso do romance. A distância que separa as duas mulheres é social, de casta e até religiosa – Sera é uma parse, seguidora de Zoroastro, e Bhima é hindu. Embora a família de Sere se orgulhe de seus hábitos modernos e cosmopolitas, mantém várias tradições arcaicas relacionadas a tabus sociais que impedem contato físico e compartilhar talheres e móveis.

“A Distância entre Nós” me lembrou muito “O Deus das Pequenas Coisas”, de Arundhati Roy, que também se concentra nas desigualdades sociais, tendo como pano de fundo um amor trágico entre uma mulher da elite e um homem pobre, no estado de Kerala, talvez o mais progressista da Índia e um bastião histórico tanto dos cristãos quanto do Partido Comunista. Curiosamente, Roy e Umrigar têm a mesma mensagem pessimista: a de que modernização do país não eliminou os entraves mais profundos à liberdade e à dignidade humana, em particular das mulheres.

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