quarta-feira, 17 de novembro de 2010
De Thomas Jefferson a Michael Moore
Assisti ao DVD de “Capitalismo: uma história de amor”, o documentário mais recente de Michael Moore. Superficialmente, é um filme com as características que o fazem adorado ou detestado: um panfleto ácido e bem-humorado com lógica conspiratória, que explica a crise econômica dos EUA como o resultado de um complô das elites empresariais, financeiras e governamentais, propondo como alternativa a mobilização popular para retomar o sonho americano. Mas o documentário pode ser interpretado de outro modo, como a manifestação mais recente de um padrão recorrente na história dos EUA, desde os tempos de Thomas Jefferson - a desconfiança que os defensores da democracia mantêm das grandes organizações econômicas. Moore repete, talvez sem perceber, argumentos presentes nos debates mais controversos do início da República, como a polêmica que opôs Jefferson aos federalistas pela criação do Banco dos Estados Unidos.
O banco foi idealizado por Alexander Hamilton, secretário do Tesouro. Seria de propriedade privada, mas negociaria com a dívida pública e estimularia o desenvolvimento econômico. O modelo era o Banco da Inglaterra, a bem-sucedida instituição que financiou de forma brilhante a expansão do império britânico. Mas Jefferson e seus seguidores acreditavam que o banco significaria a captura do Estado por parte de grandes interesses privados, que sem supervisão adequada desviariam os recursos públicos para seus próprios fins. Qualquer semelhança com os debates sobre a atuação do Tesouro, do Fed e do Congresso nos recentes mega pacotes de ajuda financeira não é mera coincidência.
Jefferson desconfiava de grandes burocracias e preconizava a importância de pequenos fazendeiros, autônomos e com espírito crítico, para fiscalizar a ação do Estado. Moore é um filho da prosperidade do século XX, seu modelo, como retratado no filme, é a sólida situação que sua família viveu durante sua juventude, com um pai que trabalhava na General Motors e um pacote de benefícios generosos, entre privados (plano de saúde) e públicos. Em suma, algo mais próximo ao Estado de Bem-Estar Social do que da utopia agrária de Jefferson.
O paraíso de classe média de Moore também está bastante distante da experiência contemporânea dos Estados Unidos. Nos últimos trinta anos, o país se tornou o mais desigual entre as nações desenvolvidas, como analisado em recente livro de Paul Pierson e Jacob Hacker. O 1% mais rico saltou de 8% da renda (1979) para cerca de 25% (2009). São os piores índices desde a Depressão da década de 1930. Os profissionais com menor qualificação tiveram piora considerável da renda. Em grande medida, a transformação reflete a guinada da economia industrial para serviços, como tecnologia da informação e finanças, que exigem instrução mais avançada, mas a concentração de renda também foi agravada por políticas públicas que beneficiaram os ricos, como redução de impostos.
Pierson é um dos mais respeitados especialistas na crise do Estado de Bem-Estar, na Europa e em sua versão mais modesta, dos EUA. É curioso, no entanto, que ele trate tão pouco do aspecto internacional. Será coincidência que as desigualdades sociais tenham aumentado tanto nos Estados Unidos quando a Guerra Fria acabou? A rivalidade com o comunismo e o medo da URSS foi um fator fundamental para o estabelecimento das grandes coalizões políticas das décadas de 1940-1970, que implementaram as abrangentes políticas sociais do período. Essa aliança foi rompida e nos EUA muitos conservadores inclusive repudiam as reformas do New Deal e dos anos 60.
No filme de Moore há o lamento do cineasta de que o socialismo nunca tenha sido uma ideologia política forte nos EUA. Na Europa, claro, a história foi outra, o que ajuda a explicar a permanência de boa parte dos Estados de Bem Estar naquele continente. Moore trata pouco das causas do caso americano, mas aos interessados recomendo “The Broken Covenant”, de Robert Bellah. Suas hipóteses: a fragmentação étnica dos trabalhadores americanos, dificultando a ação coletiva, e uma cultura política de matriz puritana, centrada nas virtudes do espírito individual de iniciativa, e cética diante de projetos coletivistas e de amparo governamental.
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9 comentários:
Ironicamente, nos tempos pós-guerra fria uma pessoa pode se declarar como de "esquerda" nos Estados Unidos sem atrair muito ódio ou suspeitas. Não consigo imaginar um filme como o de Michael Moore em uma época em que os Estados Unidos estivessem combatendo comunistas no Vietnã ou Coréia. No mínimo ele seria chamado de espião estrangeiro. Isso se repete em outros países, como o Brasil: o Partido Comunista controla ministérios e cidades e ninguém se espanta.
Ao mesmo tempo, a direita americana parece ter cada vez radical: quando achávamos que nada poderia ser mais inclinado à direita que W Bush, aparece o Tea Party.
Salve, Bruno.
Os dois fenômenos estão ligados, a Guerra Fria era uma espécie de cola que pressionava os extremos políticos nos EUA rumo ao centro, em nome da disputa contra os comunistas.
Quando esse cenário de confrontação internacional chegou ao fim, na década de 1990, houve mais espaço para dissenso político. O próprio Bush pai perdeu as eleições de 1992 em grande medida porque Ross Perot concorreu como independente e dividiu o voto conservador.
Abraços
Acho que os motivos do Bellah atraentes, mas também é preciso lembrar a ferocidade com que se combateu o movimento operário nos Estados Unidos. Não à toa o 1o de maio nasceu lá após a morte de trabalhadores que se manifestaram.
Salve, João.
Sem dúvida. Mas os sindicatos também foram reprimidos com muita força no Velho Mundo, o dia do trabalho poderia ser, muito bem, para lembrar o massacre de Peterloo na Inglaterra, ou algo semelhante em outros países europeus. Há uma questão cultural forte nos EUA que difere dos socialismos europeus.
Abraços
Meu caro:
Creio (como muitos outros antes do que eu, claro) que o espírito da imigração e a organização das primeiras colônias foi muito forte à hora de determinar uma mentalidade mais centrada no "indivíduo". Não é o mesmo dizer "meus pães foram camponêses dista localidade, meus avôs foram camponêses dista localidade, etc." que "meus pães vinheram da Europa e com muito trabalho lograram progressar".
Abraços
Patricio Iglesias
Salve, meu caro.
Sim, e também a disponibilidade de terras, a fronteira aberta, e a possibilidade de o indíviduo "começar de novo" mais a Oeste.
Abraços
Grande mestre,
no primeiro comentário eu não fui muito extenso, e você tocou em um ponto importante da cultura americana. O país é muito vasto, com diversos centros econômicos. Se algo não der certo na sua vida, é sempre possível recomeçar a vida no ´Oeste´, seja na Califórnia mesmo ou em outra fronteira econômica (como o Alasca que nada em petróleo).
O fato do país ter sido fundado por minorias religiosas que eram perseguidas na Europa também deve ter sido importante para o socialismo nunca ter frutificado nos EUA. No século 16 eles queriam leis que garantissem liberdade religiosa e impedissem o surgimento de uma burocracia como as da Igreja Católica ou Anglicana. No século 19 e 20 essa mentalidade favorecia a liberdade econômica, e tornava todos descrentes da burocracia estatal (e do Estado de bem-estar, por conseqüência).
Espero que essa mentalidade volte a imperar nos Estados Unidos, e eles parem de se meter em todo conflito armado no exterior, como fizeram ao longo do século 20. A corrente majoritária do Tea Party adora falar em Estado mínimo, mas desconversa quando o assunto é acabar guerras no Oriente Médio ou Ásia - e até critica o Obama quando ele fala nisso.
Por isso tudo, apesar do Tea Party e Fox News, ainda acho que as discussões nos Estados Unidos e sobre os Estados Unidos são muito importantes para um futuro pensamento de esquerda (ou liberal, progressista, etc).
Socialismo nunca teve chance de vicejar nos EUA porque os EUA foram o primeiro país do mundo a educar as massas.
Com as massas alfabetizadas e educadas, fica difícil – quase impossível - vender as idéias socialistas.
Lourival
Salve, Bruno.
O Tea Party se divide em termos de política externa, há uma corrente mais intervencionista, do tipo "guerra ao Irã" e outra isolacionista, que quer fechamento de bases no exterior e o fim das aventuras bélicas no Oriente Médio. É um dilema do movimento.
Salve, Lourival.
Os países europeus têm uma população mais educada do que os EUA e a maioria deles possui partidos socialistas fortes.
A questão cultural é que me parece a mais importante, os valores sociais nos EUA estão muito voltados para a iniciativa individual, ao passo que a Europa tem abordagens que priorizam o aspecto coletivo.
Abraços
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