sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Terrorismo no Rio
Vivo no Rio de Janeiro há mais de 30 anos e já vi um impressionante catálogo da violência: chacinas, arrastões, atentados a prédios públicos, ataques aleatórios à propriedade privada, epidemias de sequestros, proliferação de grupos armados ilegais e o desenvolvimento de uma cultura da morte e da agressão junto a uma geração de jovens que cresceram em meio à crise de segurança pública da cidade. Mas nada se compara ao que experimento nesta semana, com os sucessivos atos terroristas lançados (aparentemente) por uma coligação das facções do tráfico de drogas, em represália à instalação das Unidades de Polícia Pacificadora em 13 das principais favelas cariocas.
O terrorismo é o uso da violência em massa contra alvos civis com o propósito de difundir o medo para alcançar objetivos determinados. A maior parte dos atentados ocorre em resposta a ocupações militares estrangeiras, mas também há casos de atentados perpretados pelo crime organizado, visando a deter a repressão governamental contra suas atividades. Isso ocorreu na Colômbia da década de 1990, quando Pablo Escobar e outros traficantes lançaram ataques desse tipo, entre outras razões para tentar impedir as autoridades colombianas de deportá-los para os EUA. As ações de uma facção mafiosa em São Paulo, há quatro anos, também se enquadram nessa categoria, bem como os atentados da máfia italiana contra a Operação Mãos Limpas.
O mesmo vale para o Rio, embora a metáfora mais usada por estes dias seja a de "guerra civil". As comparações bélicas são perfeitamente compreensíveis, quando vemos imagens como a dos blindados da Marinha, acompanhados por fuzileiros navais, ocupando uma das favelas que se tornaram refúgio para os bandidos que fugiram das comunidades onde foram instaladas as UPPs. Ou quando assistimos aos repórteres de televisão transmitindo com coletes à prova de balas, como correspondentes no Afeganistão. A própria escala da ação dos criminosos - a TV mostrou centenas deles correndo das tropas policiais e militares - reforça a imagem da guerra.
Contudo, um conflito civil pressupõe grupos que disputam o Estado, que tem projetos políticos distintos para a sociedade. Não é o caso. O que temos no Rio são quadrilhas criminosas querendo a continuidade de sua situação de impunidade e reagindo a uma política pública que, embora com defeitos, eliminou o controle territorial de grupos armados ilegais sob vários bairros pobres, onde vivem cerca de 200 mil pessoas. O tráfico não tem organização política, quando muito adota um vago discurso demagógico de denúncia das injustiças sociais.
As imagens das Forças Armadas ocupando favelas perigosas têm um apelo poderosíssimo para a população do Rio de Janeiro. Os militares brasileiros provaram que sabem realizar esse tipo de operação, com a experiência adquirida no Haiti. Há inclusive uma brigada do Exército especializada nessas situações. Mas todos os oficiais com quem conversei sobre o assunto, no Exército e na Marinha, são extremamente cautelosos quanto ao envolvimento das Forças Armadas, em caráter permanente, nesse tipo de missão. Temem o efeito corruptor do tráfico e o desvio da missão dos militares. Em geral, esses oficiais afirmam que as intervenções devem se limitar a ocasiões especiais, como grandes eventos esportivos e convenções internacionais.
Me parece, no entanto, que a pacificação do Complexo do Alemão será um desses casos. A existência de uma grande quantidade de traficantes armados e de obstáculos físicos como barricadas torna necessário o emprego de uma força que provavelmente as polícias não são capazes de colocar em prática. E a própria presença dos militares é um elemento poderoso de dissuação aos criminosos. Novamente, a analogia com o Haiti é muito forte, em especial a ocupação de Cité Soleil, o equivalente ao complexo do Alemão em Porto Príncipe.
Décadas de insegurança tornaram a população do Rio sedenta por demonstrações de força governamental, e ansiosa por míticos banhos de sangue que eliminem os bandidos da cidade. Traficantes são cruéis, mas em geral não são burros. Nenhum líder de quadrilha vai esperar ser aniquiliado pela cavalaria blindada. A tendência é que, ao serem ameaçados de cerco, migrem para a região metropolitana e para o interior do estado, como aliás já tem ocorrido. O xadrez da segurança vai continuar, mas ao menos desta vez parecem ser os bandidos que estão em xeque.
P.S. - O Google divulgou um mapa atualizado da violência no Rio, e o coloquei neste post em substituição à imagem anterior.
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6 comentários:
Mestre,
minha contribuição. Essas quadrilhas não tem um projeto político para o país, o estado ou a cidade. Mas eles têm a ambição de controlar territórios da cidade, que funcionam na prática como "áreas libertadas", similar às cidades que abrigavam os piratas nos séculos 16 e 17. Se essas quadrilhas querem ter o monopólio da força sobre determinados territórios, onde estão abrigados, elas têm algum tipo de projeto político (complementado por uma cultura específica, músicas, etc). Se elas saírem desses territórios, as quadrilhas ficam enfraquecidas.
Essa ação não segue uma lógica policial, que iria simplesmente correr atrás dos criminosos que incendeiam carros. A ocupação de Vila Cruzeiro tem uma lógica diferente: tenta mostrar uma vontade inflexível do Estado, para fazer as quadrilhas reverterem as ordens de incendiar carros. São tempos interessantes mesmo.
O que falta nesse combate? Prender mais. Não dá pra achar que é só recuperar território é impor a lei.
Meu problema com a participação do exército é que além do que você apontou de problemas há a questão do "afrouxamento" das tropas.
Abs,
Salve, Bruno.
É isso mesmo, as quadrilhas se comportam no Rio como os piratas da Somália, usando as vias expressas como linhas de navegação e os morros como bases de refúgio.
O grande "senão" da operação de ontem foi ter deixado centenas de traficantes armados fugirem. Sabemos que eles voltarão.
Salve, Mário.
Em algum momento, em breve, vamos ter que começar a discutir a questão das prisões. Inclusive temas como mais presídios federais, um regime de segurança máxima que realmente funcione etc.
Abraços
Gde Mauricio.
Aqui em SPcity, a todos que me perguntam sobre a situação eu digo que não poderia ter acontecido coisa melhor para o Rio...
O pacto de convivência entre as partes foi deixado pra trás (coisa que não aconteceu em SPcity, onde a "paz" reina) e agora, elas estão em conflito. Se antes reinava o "não mexe aqui que eu não mexo aí", esse reinado acabou, para o bem da cidade.
Acho que será uma ótima oportunidade de depurar as polícias, já que a perda desses territórios significa prejuízo, em dinheiro e em poder para ambas as partes, bandidos e corruptos.
Daqui a pouco, poderemos estar debatendo todos os efeitos da UPP´s, assunto muito mais legal e cheio de possibilidades.
Abcs !
Ps: pode me chamar de chato com o meu off topic de sempre, mas esqueceram mesmo de Honduras. O pessoal da resistencia ao golpe continua sendo assassinado, e o país, fora da OEA e das principais instâncias diplomaticas ... Pobre Honduras ...
Salve, Athalyba.
Também avalio que, ao fim, o que acontece agora é um duro rito de passagem para o Rio. É melhor o conflito e o enfrentamento do que os acordos clandestinos feitos pelo governo paulista.
Infelizmente, acho que antes de melhorar, ainda vai piorar um pouco por aqui. Tudo aponta para um conflito longo e sangrento.
Abraços
Quem se importa com Honduras? Todos sabem que as melhores ondas estão na Nicarágua, Costa Rica e Panamá!
Lembram como há um tempo atrás todos que se consideravam progressistas eram contra a idéia de ter as forças armadas entrando nas favelas? Pois bem, a polícia do Rio de Janeiro passou a usar armamento tão pesado que essa discussão perdeu o sentido - se PMs usam fuzis e caveirões, e não pistolas e carros, eles agora são mais militares que policiais. Quando eles usaram tanques nessa quinta-feira, essa fronteira se mostrou ainda mais tênue.
Nessa sexta-feira o exército propriamente dito entrou na briga - os soldados ocuparam pontos na entrada do Morro do Alemão, para evitar fugas, e trocaram tiros.
Agora cabe à OAB criar vergonha na cara e parar de defender mecanismos que ajudam o crime organizado, como as visitas íntimas e sigilo nas conversas entre advogados e presos (incluídos os que estão em presídios de segurança máxima). As esposas do Marcinho VP e Elias Maluco têm casas mais do que confortáveis, bem acima da renda que declaram ter, e atuas como as "donnas" da máfia italiana, atuando como embaixadoras dos maridos presos. Por que as coisas aqui não são como nos presídios americanos, que vemos nos filmes, em que o preso perigoso só pode falar com sua visita através de um vidro, por interfone? Que fique claro: garantir a Marcinho VP e Elias Maluco o direito a visita íntima e sigilo na correspondência se traduz em prejuízos par as vítimas de atentados e assassinatos.
Mas, para isso, precisamos de deputados discutindo de maneira inteligente a revisão de uma lei que não garante a construção de pontes ou estradas para suas "bases" eleitorais. Ou seja, só depois da próxima visita do cometa Halley teremos o Congresso votando uma lei que impeça as visitas íntimas.
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