sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Irmandade Muçulmana



Os manifestantes no Egito batizaram este dia como a “Sexta-feira da Partida”, na esperança de que o grande protesto que marcaram para hoje convençam Mubarak a renunciar à presidência. O ditador se apega ao cargo e lançou capangas armados (policiais à paisana e outros defensores do regime) contra ativistas democráticos, jornalistas e representantes de ONGs de direitos humanos. O Exército às vezes assistiu à violência sem intervir e em outros casos procurou separar os grupos em conflito, mas não reprimiu diretamente os manifestantes, o que mostra que os militares não estão dispostos a patrocinar um banho de sangue em defesa da ditadura, como ocorreu na China em 1989 e no Irã em 2009. Mesmo os aliados internacionais de Mubarak nos EUA e na União Européia clamam por sua renúncia e o argumento que restou ao ditador é afirmar que sem ele o Egito cairia no caos, sendo dominado pelos fundamentalistas da Irmandade Muçulmana. Hora de analisar o movimento.

A Irmandade foi fundada em 1928 e passou a maior parte de sua história na clandestinidade. Ela nasceu no contexto do colapso do colonialismo – do Império Otomano e das potências européias – no Oriente Médio, e da ascensão do nacionalismo árabe e dos anseios de modernização social e econômica na região. Sua receita era outra: o abandono dos projetos de reforma ocidentais e o retorno às raízes muçulmanas para assegurar uma sociedade ética e justa. Ela não foi fundada por pessoas ignorantes e isoladas do mundo, seu principal teórico, Sayyid Qutb (foto), havia se formado numa universidade dos Estados Unidos, e voltado horrorizado com o que viu por lá, inclusive a discriminação racial que sofreu.

Bandeiras religiosas estavam fora de moda no Egito da primeira metade do século XX, que seguia um modelo de modernização semelhante ao adotado pela Turquia: militares depondo a monarquia e iniciando um programa de reformas sociais autoritárias. Excluída do Estado e com seus militantes perseguidos e torturados, a Irmandade refugiou-se na Arábia Saudita, onde a Casa de Saud, em sua luta contra a dinastia hashemita, abraçou o wahabismo, uma versão hiper-puritana do Islã, como meio de conquistar legitimidade política para ser a guardiã dos locais sagrados em Meca e Medina.

No Egito, a Irmandade trabalhou sobretudo na área social, procurando “islamizar a sociedade”, já que não conseguia dominar o Estado. Fundou hospitais, clínicas, creches e posicionou como uma alternativa ética a uma oligarquia militar cada vez mais corrompida e desacreditada, pelas derrotas militares diante de Israel e pelo fracasso de seus grandes projetos de desenvolvimento em gerar empregos aos jovens da nova geração, que não viveram o auge da luta pela independência e autonomia egípcias, e conheceram apenas o declínio do regime dos militares.

Os choques do petróleo na década de 1970 deram à Arábia Saudita musculatura financeira para patrocinar o islamismo radical em escala global, e a Irmandade Muçulmana foi fundamental nesse processo, ajudando a recrutar as brigadas internacionais que combateram a URSS no Afeganistão, e auxiliando na criação do Hamas para lutar contra a ocupação isralense dos territórios palestinos. Cerca de metade dos terroristas envolvidos com os atentados de 11 de setembro eram egípcios, o que mostra a influência do país nessas redes políticas.

Nos últimos anos a Irmandade envolveu-se numa série de acordos de bastidores com Mubarak, nos quais o arranjo básico era uma espécie de pacto de não-agressão, pelo qual a Irmandade concordava em não tentar derrubar o governo em troca de permissão para expandir sua influência, embora continue oficialmente proibida. Segundo a maioria dos relatos, a organização enfrenta um período difícil, com muitos militantes desgostosos deixando-a, desiludidos com a conivência com o governo corrupto.

A Irmandade é forte demais para ser excluída de um futuro governo de transição no Egito, mas certamente irá procurar assegurar ministérios-chave para seu projeto político, como Educação ou Cultura, e tentará ganhar espaço com as inevitáveis frustrações que se seguirão em temas como o papel egípcio no conflito árabe-isralense.

PS - Fui entrevistado hoje à tarde no Jornal da Globo News e falei do longo caminho que vai do 11 de setembro às revoltas democráticas, como as do Egito. Clique no link para ver o vídeo.

8 comentários:

Israel disse...

Muito bom o texto.

Não há bandeiras ligadas ao islã (de grupos islâmicos) nos protestos, mas do Egito. O Egito, na sua história contemporânea é marcado pela laicização do Estado. O medo do Ocidente (EUA) em perder seu aliado no norte da África para um grupo islâmico é menos provável do que se pensa ou se divulga por aí.


Acredito que um outro problema (diplomático) significativo é com relação aos EUA:

A) Se usar sua influência no Egito, será acusado de intervenção em problemas internos do país e,
B) Se ficar sem fazer nada terá o dedo em riste da comunidade internacional, acusando-o de negligenciar os Direitos Humanos.

Por último, é mais um pedido do que uma reflexão. Você tem mais informações (pode ser bibliográficas) sobre o movimento 6 de abril?

Abraços

Anônimo disse...

acabei de ver sua entrevista na globonews jogador. Ela também se mostrou por dentro do assunto.

Altos papos depois que os créditos subiram hein...hehe

abraços,

Helvécio.

Maurício Santoro disse...

Salve, Israel.

O Egito tem, de fato, uma forte tradição de Estado laico, mas também é o berço do fundamentalismo islâmico. É um legado conflituoso, difícil de lidar.

Sobre bibliografia a respeito do 6 de abril, creio que o mais próximo que tenho disso é a análise do declínio de Mubarak:

http://www.lrb.co.uk/v32/n10/adam-shatz/mubaraks-last-breath

Helvécio, meu caro.

Pois é, gosto muito dos debates com a Leila, vou disponibilizar o link para o vídeo.

Abraços

Mário Machado disse...

Dr.

Mais uma boa participação, apesar d'eu ter achado que a Leila (de quem tem uma inveja pelo belo alemão que fala) trocou muito bruscamente os rumos da conversa.

É interessante vi pela internet uma certa repercussão da sua entrevista. Mas, a falta de argumentos de um que lhe critica não vale nem a menção que ainda assim fiz.

Abs,

marcelo l. disse...

Prezado Mauricio,

Gostei tanto do texto como da entrevista, mas o Hamas ao meu ver teve claro influencia da irmandade, mas já se distanciou a muito tempo desde que Israel e Arabia Saudita financiaram-no para contrapor a OLP, hoje é algo bem diferente que a sua primeira geração

E claro os egipicios são importantes para 11 de setembro, mas todos eles atacam a irmandade por dizerem que foi corrompida, e é mais importante para os grupos extremista a guerra do Afeganistão que com dinheiro americano e saudita conquistaram muitos membros para luta contra a antiga URSS e o Egito que não havia esperança de nada com isso atraiam muitos egípcios no recutramento.

Claro que involuntariamente ao meu ver, o Wahabista por diversas razões e a guerra do Afeganistão serão os catalizadores do terrorismo de 11 de setembro, já os outros movimentos são mais influenciados na luta anti-colonial no mundo, nessa vertente está a Irmandade.

Maurício Santoro disse...

Salve, Mário.

São sempre muitos assuntos para discutir no tempo curto da TV e os apresentadores trabalham com um ponto, de modo que às vezes as guinadas nas conversas vêm por conta das sugestões dos editores, que não aparecem nem para o público, nem para o entrevistado.

A entrevista gerou uma certa discussão entre meus amigos e alguns acham que fui muito duro com a Irmandade Muçulmana, que o discurso fundamentalista estaria sendo exagerado pelos EUA. É sempre uma possibilidade, mas realmente penso que há riscos grandes de radicalização.

Caro Marcelo,

Sem dúvida o Hamas mudou muito, inclusive por conta das transformações regionais e do fracasso nas tentativas de paz.
Existem muitos relatos de ex-membros da Irmandade, no Egito, que se desiludiram com ela, sobretudo por conta dos acordos clandestinos entre a organização e o regime Mubarak. É díficil prever como ela se comportará num governo de transição, é provável que esteja em meio a intensas discussões internas sobre como aproveitar a crise atual.

abraços

Mário Machado disse...

Dr,

Claro que discordar é parte da atividade intelectual honesta. Contudo, ver alguém rotular como "ignorante" e ainda meio que fazer troça com os cargos e títulos acadêmicos me parece fora de lugar. Tenho desprezo pelo ad hominem é possível discordar veementemente sem se comportar como um boçal.

Só toquei no assunto por que me irritou ainda mais por que quem fez tem um site com algum trafego e por isso deveria ser responsável.

Abs,

Maurício Santoro disse...

Caro,

Quem está na chuva é para se molhar!

Abraços