segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
O Último Coronel
As ditaduras árabes aprenderam com o sucesso das revoltas na Tunísia e no Egito e apertaram o cerco da repressão, desde o início. Em países como Bahrein e Líbia, o Exército aceitou fazer o trabalho sujo de atirar nos manifestantes, ao contrário do que ocorreu nas duas outras nações. O caso líbio é bastante particular. No poder desde 1969, o coronel Muhamar Kadafi é o último representante da geração de militares que depôs as monarquias árabes nas décadas de 1950-60 (Egito, 1952, e Iraque, 1958, foram os demais exemplos) e defenderam um projeto modernizador liderado pelas Forças Armadas. Kaddafi foi um expoente do terceiro-mundismo nos anos 70, foi bombardeado pelos EUA nos anos 80 e no pós-11 de setembro fez um notável esforço de se reaproximar dos europeus, sobretudo da Itália, França e Reino Unido.
As ambições internacionalistas de Kadafi foram alimentadas pelo boom dos choques petrolíferos, pois a Líbia é rica em hidrocarbonetos. Expulsou do país os italianos, ex-colonizadores. Ele interveio em diversos conflitos internos africanos, no Chade, Serra Leoa, Libéria, Marrocos. Financiou o Setembro Negro, o grupo terrorista palestino que assassinou atletas isralenses nas Olimpíadas de Munique, em 1972. No início, sua ideologia estava mais próxima ao socialismo árabe de Nasser, mas com o correr do tempo foi virando uma mistura que incluía em doses crescentes traços do Islã e o apelo às crenças tradicionais africanas. Ele chegou mesmo a se coroar "rei dos reis" da África.
O patrocínio de Kadafi ao terrorismo lhe trouxe sanções econômicas internacionais e até um ataque aéreo dos EUA, em 1986, que matou uma de suas filhas. O caso de maior repercussão internacional foi sua decisão de abrigar os terroristas que explodiram um avião comercial na Escócia. Em outro incidente, Kadafi aprisionou enfermeiras da Bulgária que faziam trabalhos de caridade na Líbia, acusando-as de injetar o vírus HIV em crianças do país.
Neste novo século, Kadafi tem se aproximado da União Européia, basicamente motivado pelo péssimo estado da economia líbia, fora do setor de hidrocarbonetos, e pelo medo ser incluído nos Eixos do Mal pós-11 de setembro. Abriu seus programas militares às inspeções internacionais (eram consideráveis nas áreas química e biológica). Assinou um importante acordo com a Itália, pelo qual o governo Silvio Berlusconi lhe paga uma indenização por ter colonizado o país, e em troca a Líbia se compromete a controlar a imigração para a Europa - o problema tem se agravado após a revolta na Tunísia, com muitos jovens chegando ao sul italiano. Os franceses também estão presentes no país e o presidente Nicholas Sarkozy afirmou que na África Kadafi não era visto como um ditador, firmando com ele um tratado de cooperação nuclear. Os negócios para as petrolíferas britânicas são tão promissores que elas até conseguiram fazer o governo libertar o único terrorista preso no caso do avião escocês, enviando-o em liberdade para a Líbia. As empreiteiras brasileiras também desfrutam das benesses do regime, construindo o aeroporto da capital e um anel rodoviário em torno da cidade.
Kadafi sendo Kadafi, sua abertura ao ocidente nunca foi ortodoxa. Em visitas à Europa, conclamou os habitantes locais a se converterem ao Islã. Ensinou a Berlusconi técnicas de dança executadas por seu harém, reproduzidas com sucesso nas festas do premiê italiano. E, como todo ditador contemporãneo que se preze, procurou reproduzir a fórmula de chinesa de reforma econômica com fechamento político. Falou até em legar o poder para seu filho, mantendo o trono na família como na Síria e como Mubarak tentou fazer no Egito. O rapaz discursou na TV estatal líbia no domingo, elaborando uma teoria da conspiração que culpava estrangeiros e mídia pela revolta.
As manifestações anti-Kaddafi explodiram na cidade de Benghazi, na qual os laços de solidariedade tribais são muito fortes e funcionam como contraponto à pressão do Estado autoritário. A capital, Tripoli, tem se mantido fiel ao regime e houve mesmo desfiles de homenagem a Kadafi, nos quais o próprio participou. A sociedade líbia é uma das mais fechadas do mundo e o ditador proibiu a presença da imprensa internacional, derrubou a Internet e baniu a Al-Jazeera. Os movimentos de oposição líbia, ainda assim, têm conseguido usar a rede para divulgar sua revolta contra o regime, mas a repressão tem sido muito violenta, com uso de armamento pesado.
Pós-escrito: estive à tarde no Jornal da Globo News, falando sobre a crise na Líbia, com o bombardeio à cidade de Tripoli, e abordando também a situação no Bahrein e no Iêmen.
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10 comentários:
Segundo a Al-Jazeera, o Kadafi tem contrato mercenários para fazer o trabalho sujo (desculpe, não tenho o link agora).
Olá, prezado Mauricio.
Acho que foi o texto mais “triste” que você já escreveu no blog (rsrssr), pois só há uma conclusão, o regime político da Líbia continuará autoritário e matando os manifestantes porque existe uma conivência do Ocidente.
Salve, Marcos.
O rumor sobre os mercenários têm circulado com frequência, se for verdadeiro indica falta de confiança de Kadafi no Exército.
Olá, Israel.
Segundo a imprensa, já são mais de 200 mortos, e não sei se Kadafi consegue manter o domínio do país. A situação pode realmente se descontrolar para ele.
abraço
Mauricio você já leu na FSP:
"Aviões atacam manifestantes antigoverno em Trípoli, diz TV".
A coisa tá feia mesmo.
Jogador,
Imagine como deve ser uma reunião entre Kadafi e Berlusconi...hehe Tire as crianças da sala.
Berlusconi deve ter ensinado a parte de como organizar orgias em troca das habilidades de dançarino do Kadafi.
Bem que essa onda de revoltas poderiam se expandir um pouco ao norte pelo mare nostrum até a bota. Capisce?
abraços.
Helvécio.
Caros,
Acabo de falar na Globo News sobre o bombardeio a Tripoli, e das relações entre Berlusconi e Kadafi. Vou postar o link.
abraços
Prezado Mauricio,
Na Libia ao meu se joga a estabilidade democrática da região, Muhammar Gaddafi é um dos maiores financiadores dos piores tipos na África, Europa (Berlusconi) etc...a queda dele abre uma janela de oportunidade gigantesca...
Salve, Marcelo.
Se Kadafi cair, nenhum outro ditador árabe estará seguro. O caos líbio dos últimos dias mostra que o regime era bem mais frágil do que se pensava.
abraços
No Twitter, @SultanAlQassemi postou que oficiais militares executaram 185 soldados que se recusaram a abrir fogo contra uma passeata em Benghazi.
Salve, Pedro.
Estou levantando informações sobre motins tribais no Exército, aparentemente os oficiais, no momento da crise, estão privilegiando os laços familiares à lealdade a Kadafi.
abraços
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