sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A Revolta na Líbia



Cientistas politicos somos treinados para analisar instituições formais como partidos, sindicatos e ministérios, mas o caos na Líbia no que parecem ser os últimos dias do regime de Kadafi exige um outro tipo de interpretação, que leve em conta as tradições tribais do país. A longa ditadura proibiu partidos e associações cívicas, de modo que os vínculos da família estendida são o que restaram como contrapeso ao autoritarismo do Estado.

Relatos afirmam que 90% da Líbia já estaria sob controle dos diversos grupos rebeldes, incluindo duas das três maiores cidades do país, Benghazi e Misurata. Kadafi estaria isolado na capital, Tripoli, mas com problemas crescentes por lá, pois a tribo Tarhun, a qual pertencem um terço dos moradores da cidade, abandonou o ditador.

Robert Fisk, o lendário correspondente internacional do Independent, conseguiu chegar a Tripoli e envia reportagens sobre o estado fantasmagórico da capital líbia. Segundo ele, predomina o sentimento de que Kadafi está acabado.

As Forças Armadas estão divididas e marcadas por deserções, motins e estagnação. Muitos oficiais se recusam a cumprir as ordens de Kadafi em atacar a população civil. Para além das considerações éticas dos militares, a relutância vem do fato de que essas instituições foram formadas a partir do recrutamento de líderes tribais. Em momentos de crise aguda como este, as lealdades familiares falam muito alto. Não é a primeira vez, na década de 1990 a tribo Warfala tentou um golpe militar contra Kadafi.

Ao contrário de Mubarak (Egito) ou Ben Ali (Tunísia), Kadafi nunca foi homem da confiança do Ocidente e nas décadas de 1970-90 era um adversário odiado por seu apoio a grupos radicais. Tentou se reinventar nos últimos anos, oferecendo a isca de lucrativos contratos econômicos, mas as boas relações foram temporárias. As declarações das autoridades dos Estados Unidos e da União Européia estão um nível acima na crítica a Kadafi do que foram com seus colegas ditadores.

A rejeição internacional se intensificou com a deserção de vários diplomatas líbios na ONU, EUA e Europa, que pedem intervenções do Conselho de Segurança, com a decretação de uma zona de exclusão aérea que proíba os bombardeios contra a população civil. Isso foi feito no Iraque de Saddam Hussein, para proteger os curdos no norte do país. Tenho dúvidas se é boa idéia na Libia, pois uma ação estrangeira contra Kadafi poderia detonar uma onda de nacionalismo xenófobo na região, com consequências imprevisíveis nestes meses de revoltas.

12 comentários:

Israel disse...

Bom texto prezado Maurício.

Tenho uma questão.

Quando Kadafi cair, provavelmente haverá uma ação das monarquias no Oriente Médio, pois fica claro que nem os regimes mais opressores conseguem reprimir o povo. Com uma mudança política no Oriente Médio, provocará um novo mapa político que afetará o Ocidente. Assim, diferente da Tunísia e do Egito, o mundo mudará pós Kadafi?

Abraços

Maurício Santoro disse...

Salve, Israel.

Penso que o impacto mais imediato no mundo árabe será a necessidade de adotar reformas democráticas, como ampliar os poderes dos parlamentos e limitar a duração de mandatos presidenciais, além de combater a corrupção. Também há o peso da situação econômica, em particular o desemprego entre os jovens.

Nenhuma dessas questões é de fácil resolução e acredito que ainda teremos muitos conflitos violentos pela frente.

abraços

Anônimo disse...

Jogador,

A mais surpreendente do dia para mim foi descobrir através da FP que o Kadafi tinha um prêmio internacional de direitos humanos:

http://www.gaddafiprize.org/

http://blog.foreignpolicy.com/posts/2011/02/25/was_turkish_pm_erdogan_the_final_recipient_of_the_qaddafi_human_rights_prize


Só faltou laurear o Kim Jong Il...


abs,

Helvécio.

Maurício Santoro disse...

Caro,

Pois é, e o filho-herdeiro de Kadafi teria feito um doutorado sobre "sociedade civil e democratização das instituições globais" ! Derrubou o prestígio da London School of Economics, onde o rapaz estudou!

abraços

Mário Machado disse...

Dr (cade vez televisivo, daqui a pouco um merecido convite para o Globo News Painel do Waack virá),

Excelente texto. Quais são as regras de licenciamento desse blog? (estou produzindo hoje uma série de textos não "autorais" em minha página para suprir meus leitores já que Líbia não é minha área de conhecimentos)

Mário Machado disse...

A pergunta foi pq eu devo ser um dos último que ligam para direitos do autor antes de transcrever um texto em minha página.

Maurício Santoro disse...

Salve, meu caro.

O mundo anda sumamente interessante, o mínimo que posso fazer é tentar contar um pouco do que penso sobre ele.

Não se preocupe com as normas, cite o que quiser, basta citar a fonte.

abraços

Mário Machado disse...

Obrigado.

Tudo será citado com os devidos links. Gosto das coisas assim certas.. afinal já basta desses chupa cabras que roubam nossos textos e nem o nome deixam...

Abs,

Unknown disse...

Prezado Maurício, tenho acompanhado o seu blog com certa frequência. Ficam os merecidos elogios pela lucidez.

O que estamos presenciando nesse início de década pode, sim, ser chamada a "Primavera dos Povos Árabes". Ainda que os novos governos no Egito e na Tunísia não sejam considerados democráticos "strictu-sensu", o fato é que o povo árabe se levantou em defesa, não de um governo fechado e islâmico, mas, sim, por melhores condições de vida, emprego, e democracia.

Fico feliz de ser testemunha desses fatos históricos!

Um abraço.

Maurício Santoro disse...

Salve, Petrus.

Obrigado, também estou fascinado em acompanhar estes acontecimentos marcantes. É um momento extraordinário para os países árabes.

Abraços

Unknown disse...

Maurício, eu andei pensando aqui com os meus botões: Quando o G4 apresentou a proposta L.64 de Reforma da ONU que incluia 4 assentos permanentes (P4) com direito a veto, mais 6 rotativos (6R) a União Africana, capitaneada por Kadafi, se reuniu em Ezulwini, Suazilândia, para consensuar que não aprovaria qualquer proposta que não incluisse 2 vagas permanentes com direito a veto para países africanos.

O projeto L.64 não previa direito a veto para africanos, mas mesmo assim África do Sul, Nigéria e Egito se mostraram simpáticos

O Consenso de Ezulwini inviabiliza a Reforma do CSNU e, sem Kadafi, a África ficaria mais confortável em aceitar menos (o não veto).

O que você me diz?
Bom, não podemos esquecer que a China não simpatiza com o G4 (Japão) e a Rússia não declara apoio ao Brasil...São potenciais vetos à qualquer proposta.

Você não acha que o CSNU assistindo TV demais, ao invés de agir??

Cadê o capítulo VII??

Maurício Santoro disse...

Salve, Petrus.

A proposta inicial apresentada pelo G-4 previa novas vagas no CS com direito de veto, mas ela foi rejeitada de maneira tão dura que o grupo preparou uma segunda versão, prevendo que nos primeiros 15 anos não haveria esse direito, e após esse tempo ocorreria uma discussão para decidir o tema de forma definitiva.

Sou cético com relação à ampliação do CS no curto prazo e creio ser praticamente impossível a extensão do direito de veto a novos membros.

Com relação ao CS na Líbia, é meu tema do post de hoje, mas considero um erro intervir militarmente no país, dado o histórico da região e a enorme rejeição que isso provocaria no mundo árabe.

abraços