quarta-feira, 30 de março de 2011

Ditaduras e Democracias na América Latina e nos Países Árabes



As revoltas democráticas nos países árabes, iniciadas com a Revolução de Jasmim na Tunísia, em janeiro de 2011, são um dos mais importantes acontecimentos da política internacional contemporânea. Representam a chegada ao Oriente Médio e norte da África de uma onda de democratização como a que atravessou a Europa e a América Latina nas décadas de 1970-1980. Latino-americanos compartilham com árabes desafios sócio-econômicos, mas partem de experiências distintas com relação à natureza de seus regimes autoritários.

(...)

As transições democráticas na América Latina ajudam a compreender perspectivas e limites para as mudanças nos países árabes. Democratização é contagiosa e se espalha rapidamente, mas não é total, nem irreversível. Depois da Guerra Fria, Cuba continua a ser um Estado autoritário, o Peru o foi por uma década e fraudes eleitorais em larga escala ocorrem nas disputas presidenciais no México. Houve golpes, ou tentativas, em Honduras, Equador, Paraguai e Venezuela. Grupos guerrilheiros ou paramilitares dominam parcelas expressivas da Colômbia.

Lidar com os traumas do passado, como as violações de direitos humanos, também tem se mostrado difícil. Os países da América Latina avançaram bastante em valorizar a memória das lutas contra os regimes autoritários mas condenações em grande escala dos repressores ocorreram somente na Argentina e no Chile, embora punições contra os líderes daqueles regimes tenham sido realizadas também no Peru e no Uruguai.


Trechos do meu artigo publicado ontem no site Café História. Pretendo aprofundar o tema num trabalho posterior. Para o texto completo, clique neste link.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Líbia: as divisões na coalizão



A primeira semana da guerra contra a Líbia foi marcada pelos impasses políticos na coalizão liderada por EUA, França e Reino Unido. A tensão mais significativa foi a decisão da Alemanha – maior e mais rico país da União Européia – em retirar suas tropas do Mediterrâneo, para que não se envolvam nos ataques. A OTAN, aliança militar ocidental, assumiu o controle das operações militares, a partir de uma sólida redes de bases na região (imagem acima) e a coalizão conseguiu a participação simbólica de alguns aviões de países árabes (Catar e Emirados Árabes) bem como apoio logístico da Turquia, Jordânia e outras nações muçulmanas. É um esforço para descaracterizar os ataques como uma “cruzada” cristã contra um Estado islâmico.

O cerne da discórdia é a discrepância entre o que a resolução do Conselho de Segurança autoriza (uso da força militar para proteger civis) e o modo como a guerra tem sido conduzida, com bombardeios contra grandes cidades, como Tripoli, destruição de infraestrutura e ações voltadas para derrubar o regime de Kadafi, o que não está previsto no documento aprovado pela ONU. Na prática, o objetivo é debilitar o ditador ao ponto de que ele seja derrotado pelos rebeldes, reununcie, seja deposto por um golpe ou aceite negociar sua saída do poder.

Kadafi tem poucos amigos, mas todos temem o que pode acontecer na Líbia caso a ditadura caia. O mais provável seria um ciclo violento e instável de acerto de contas entre as diversas tribos, num cenário que pode levar à guerra civil ou à anarquia, como ocorreu em anos recentes em países da África e do Oriente Médio com estrutura social semelhante, como Somália e Iêmen. Caso isso ocorra, seria necessária uma força de paz em terra, para executar a dificílima missão de estabilizar a Líbia ou ao menos impor limites à violência.

O debate internacional dividiu-se rapidamente. Os países desenvolvidos evocam a doutrina da responsabilidade em proteger para justificar a guerra na Líbia como uma intervenção humanitária. As nações em desenvolvimento, sobretudo na África, pedem pelo fim das hostilidades. A Liga Árabe havia criticado os bombardeios, depois voltou atrás. As potências emergentes procuram se colocar como mediadoras e embaixadores dos BRICs se reuniram com Kadaffi para tentar criar um diálogo com a oposição.

No campo militar, os rebeldes avançaram bastante, sobretudo no fim de semana e recuperaram as cidades que haviam perdido. A rapidez de sua marcha mostra que as tropas leais a Kadafi estão desertando ou recuando para Tripoli, abandonando muitas posições sem luta.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Direitos Humanos: mudança de rumo



A promessa da presidente Dilma de mudar a política externa para direitos humanos começa a mostrar seus primeiros resultados – e suas limitações. Na visita à Argentina foi destaque a reunião com as Mães e Avós da Praça de Maio e agora o Brasil mudou sua posição tradicional no Conselho de Direitos Humanos da ONU (foto), votando a favor da nomeação de um relator especial para investigar o Irã. Nas revoltas árabes, no entanto, o governo brasileiro tem mantido postura cautelosa, sem condenar a repressão brutal desecadeada pelos ditadores da região e expressando apenas o desejo de que sejam encontradas soluções por meio de negociações pacíficas.

A mudança mais expressiva é o Irã. Os diplomatas brasileiros com frequência afirmam que pressões a países violadores de direitos humanos são contraproducentes e que o melhor é trabalhar em silêncio, procurando cooperação em temas como libertação de presos políticos. Também é praxe no Itamaraty a crítica ao modo como certos Estados são escolhidos para serem punidos, enquanto outros violadores seguem impunes. Digamos, como se pressiona o Irã, mas não aliados ocidentais como a Arábia Saudita, grandes potências, como a China e, evidentemente, a apatia da ONU diante das atrocidades que os Estados Unidos cometem em suas guerras.

Muitas dessas observações são válidas, mas em crises recentes houve declarações presidenciais que foram, na prática, apoio a regimes ditatoriais em sua repressão aos dissidentes. Lula comparou os presos políticos em Cuba a criminosos comuns, classificou como “choro de perdedor” a Revolução Verde em protesto contra o autoritarismo e as fraudes eleitorais no Irã e abraçou Kadafi, chamando-o de “irmão”. Há excelentes razões pelas quais é importante ao Brasil manter boas relações com esses países, mas é preciso fazê-lo de modo sóbrio e equilibrado. A democratização brasileira é a principal conquista política das últimas décadas e seria bom vê-la conquistar mais espaço na política externa.

As revoltas árabes oferecem importante oportunidade para isso, que aliás, já foi observada pelos próprios países do Oriente Médio. A emissora Al-Jazeera convidou o ex-chanceler Celso Amorim para dar uma palestra sobre esse tema, e outros analistas internacionais têm se manifestado de maneira parecida. É compreensível o receio brasileiro diante do turbilhão político em curso na região, em particular quando envolve guerra, como na Líbia. Mas o futuro oferece potencial rico, o Brasil pode cooperar com sua experiência em políticas públicas, construção de instituições (como Justiça Eleitoral) e sua extraordinária tradição de tolerância religiosa.

Só não contem à comunidade internacional sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal em adiar a aplicação da Lei da Ficha Limpa. Pode dar muitas idéias malignas para os corruptos de outros países.

quarta-feira, 23 de março de 2011

No País dos Homens



Antes da eclosão da revolta líbia, muitas pessoas imaginavam Kadafi como uma figura cômica, por conta de suas roupas espalhafatosas e de seu discurso ideológico exaltado. A extensão da violência na guerra civil mostrou a verdadeira face do regime e se você quiser uma dimensão artística sobre os dramas daquela nação, a disca de leitura é o romance “No País dos Homens”, de Hisham Matar (foto), que conta a história de um menino que descobre o mundo quando seu pai se envolve na oposição à ditadura. Publicado em 2006, foi aclamado internacionalmente como uma das expressões mais destacadas da literatura árabe contemporânea.

Há toques autobiográficos na ficção de Matar, pois sua família também passou por dificuldades por conta da resistência a Kadafi. Tiveram que fugir para o Egito, onde viviam vigiados pela política política de Mubarak, até o dia em que os dois ditadores chegaram a um entendimento e os egípcios sequestraram o pai do escritor, entregando-o à repressão líbia. Nunca mais foi visto.

O romance é narrado em primeira pessoa por Suleiman, o filho único de um casal de alta classe média na Líbia da década de 1970. Seu pai é um empresário bem-sucedido que organiza um movimento político contra Kadafi, com a ajuda de amigos intelectuais, do meio universitário. A ditadura estava no poder há dez anos e ainda havia vestígios da monarquia líbia e da presença colonial dos italianos no país, ao mesmo tempo em que a violência e o medo do novo regime se espalhavam rapidamente.

Suleiman vê seu mundo começar a ruir quando o pai de seu melhor amigo é preso (“Sumiu feito um grão de sal na água”) e seu próprio pai se ausenta cada vez mais em misteriosas “viagens de negócios”. Homens do comitê revolucionário, a política política, rondam sua casa e às vezes lhe abordam com conversas insinuantes para que ele os ajude. Sua mãe cai em depressão e recorre à bebida. Os telefones emitem estranhos ecos, quando são grampeados.

“Quero olhar para baixo e ver meu país feito um mapa distante, reduzido a linhas, reduzido a uma idéia”, diz a mãe, que sofre com uma dupla opressão: a da ditadura e o papel submisso que se espera das mulheres líbias, um destino que ela sonhou romper quando jovem, quando frequentava cafés italianos e imagina uma vida à base de capuccinos. A família de Suleiman começa a pensar em emigrar, como fez um tio poeta que foi para os Estados Unidos, ou os amigos egípcios que seus parentes têm no Cairo.




À medida que o ciclo da repressão se aperta, a família precisa recorrer à ajuda de vizinhos influentes no regime autoritário (“Posso sentir as reverberações distantes daquele dia, foi minha estréia na arte escura da submissão”), com o pano de fundo das atrocidades de Kadafi: os enforcamentos de dissidentes transmitidos pela TV, a guerra contra o Chade, os confiscos econômicos para destruir a independência da classe média.

Todas as ditaduras se parecem e o romance de Matar tem enredo e detalhes facilmente adaptados para a realidade da América Latina – poderia dar um excelente filme argentino, nos moldes de “Kamchatka”, de Marcelo Piñeyro. A proeminência literária de Matar o tornou o maior símbolo da oposição líbia, de seu exílio em Londres. Ele tem sido bastante ativo na denúncia a Kadafi e seu novo livro, “Anatomia de um Desaparecimento”, será lançado em breve no Brasil. O tema é a investigação a respeito do sequestro de seu pai.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Até Paranóicos Têm Inimigos: a guerra contra Kadafi



Na imprensa internacional, a visita de Barack Obama ao Brasil foi posta de lado por conta do início da intervenção estrangeira na guerra civil da Líbia. Sem auxílio externo os rebeldes seriam derrotados, mas o ataque cria também problemas de difícil solução: é a terceira guerra simultânea de países ocidentais contra uma nação muçulmana, expõe as contradições dos EUA e da União Européia para o mundo árabe e reforça o discurso xenófobo dos ditadores que acusam as rebeliões democráticas de serem conspirações fomentadas do exterior.

O debate sobre a intervenção havia se concentrado na decretação de zona de exclusão aérea, mas a resolução aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU vai além disso e abarca a autorização de uso da força para proteger os civis líbios em qualquer circunstância. Isso significou rodada inicial de bombardeios tendo como alvo o setor de controle-comunicação-comando das Forças Armadas e o sistema de defesa antiaérea. Muitos inocentes serão prejudicados, com a decisão de atacar com mísseis de cruzeiro Tripoli, uma cidade de um milhão de habitantes e a destruição de infraestrutura que também serve à população civil, como aeroportos.

A abrangência dos ataques levou a uma fratura na coalizão de apoio à guerra, com a declaração da Liga Árabe de que havia solicitado apenas a zona de exclusão aérea. Embora os líderes regionais tenham abandonado Kadafi à própria sorte, tampouco querem ser envolvidos numa intervenção estrangeira tão violenta. A relutância também foi expressada pelas potências emergentes: Brasil, Índia, China e Rússia abstiveram-se na votação do Conselho de Segurança. É tradição brasileira não apoiar ações militares contra outros governos, mas apenas forças de paz para mediar conflitos. A companhia dos membros dos BRICs tornou essa posição mais confortável, o Brasil a manteve mesmo diante dos esforços de reaproximação com os Estados Unidos.

China e Rússia têm poder de veto no Conselho de Segurança e poderiam ter proibido a intervenção da ONU, mas optaram por jogar sobre os ocidentais o fardo de lidar com Kadafi, e sofrer o desgaste junto à opinião pública árabe. Embora o ditador líbio seja de longe o mais feroz na repressão às rebeliões democráticas, regimes autoritários na Arábia Saudita, Bahrein e Iêmen (todos importantes aliados americanos no Golfo Pérsico) também atacam com selvageria manifestantes que revindicam liberdade.

Um caso curioso é o do Líbano, que votou a favor da intervenção. Kadafi é um inimigo histórico dos xiitas libaneses, pois há 30 anos prendeu e matou seu principal líder religioso, o imã Musa Sadr, com quem disputava influência junto aos palestinos. Sadr rompeu com o domínio das famílias tradicionais de proprietários de terras xiitas e criou importantes movimentos desse grupo, como a milícia Amal. Após a invasão israelense do Líbano, já depois da morte de Sadr, dissidentes da Amal fundaram o Hezbolá, que hoje é a mais influente força política do país.

As Forças Armadas da Líbia são frágeis e tiveram dificuldades mesmo em intervenções em países como o Chade. É difícil imaginar que Kadafi tenha como se opor à ação militar do Ocidente. Os riscos são políticos, o de que tropas da ONU acabem arrastadas para um conflito terrestre, tendo que mediar entre as tribos líbias. Emaranhados étnicos semelhantes, no Congo, Líbano e Somália, acabaram mal.

sexta-feira, 18 de março de 2011

A Visita de Obama



Obama havia criado grande expectativa em torno do discurso que faria em praça pública, na Cinelândia, no Rio de Janeiro. A decisão repentina de cancelá-lo, substituindo-o por um evento fechado no Theatro Municipal, é um desastre de relações públicas. Alimentou o imaginário da população apenas para frustá-lo.

O fato mais importante sobre a visita do presidente americano, Barack Obama, ao Brasil é a própria visita, um sinal de que os dois governos querem reaproximar-se após as fricções dos dois últimos anos, que culminaram na divergência sobre o programa nuclear do Irã. Existe espaço para maior cooperação entre Obama e Dilma, quando mais não seja porque o Brasil é um interlocutor global importante para os Estados Unidos, num cenário de declínio de seus aliados tradicionais (União Européia, Japão) e ascensão da China. No entanto, dificilmente a passagem do presidente americano por terras brasileira resultará no anúncio de alguma grande conquista. O mais provável é que as mudanças levem tempo.

O desafio de Obama é superar o padrão histórico das divergências entre os dois países - Brasil em busca de reconhecimento e apoio dos EUA à sua agenda internacional cada vez mais abragente (que às vezes preocupa Washington por posições autônomas no Oriente Médio, África etc) e os Estados Unidos à procura do auxílio brasileiro em suas empreitadas regionais na América Latina, quase sempre recebidas com pouca simpatia em Brasília (livre comércio, militarização do combate ao tráfico de drogas e ao terrorismo, modo de lidar com governos de esquerda em Cuba e na Venezuela etc).

No campo político, a principal especulação é que Obama possa anunciar o apoio à candidatura do Brasil ao Conselho de Segurança da ONU, como ele fez em sua viagem à India, em 2010. Não há sinais de que isso vá ocorrer. As declarações mais recentes da secretária de Estado, Hilary Clinton, são de que os EUA querem o "engajamento construtivo" sobre o tema com o governo brasileiro, "durante e após" a visita presidencial. É um avanço com respeito à postura dos mandatários anteriores, que não quiseram debater o assunto (Bill Clinton) ou afirmaram "não se opor" às ambições brasileiras (Bush).

A crise econômica e a fragilidade do Partido Democrata, ainda abalado pela derrota eleitoral de novembro (a pior em 60 anos) impossibilitam concessões nessa área, apesar das muitas queixas brasileiras pelos subsídios agrícolas americanos e os contenciosos com etanol, algodão, suco de laranja e carnes. Obama segue em seu esforço de vender os F-18 para a Força Aérea Brasileira mas não há sinais de que iria garantir a transferência de tecnologia, até porque isso depende do apoio do Congresso.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Violência em Manama, Medo em Benghazi



Terremoto, tsunami e catástrofe nuclear no Japão deslocaram as crises árabes do centro do noticiário internacional, mas os acontecimentos seguem a grande velocidade. Os fatos mais importantes dos últimos dias foram a intervenção militar da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes no Bahrein (foto acima, monarquias sunitas ajudando seus aliados da família al-Khalifa a conter a revolta dos xiitas) e o avanço da contra-ofensiva de Kadafi no leste da Líbia, que chegou às portas da capital rebelde, Benghazi. A Liga Árabe abandonou o ditador e pediu ao Conselho de Segurança da ONU a decretação de zona de exclusão aérea, para ajudar a oposição - algo que pode ocorrer em breve, talvez nesta quarta.

O Bahrein é uma pequena ilha com cerca de 700 mil habitantes, mas sua importância política é grande: rico em petróleo, localizado estrategicamente no Golfo Pérsico, maior base naval dos Estados Unidos e uma bomba-relógio de violência sectária, com 70% da população formado por xiitas, discriminados pela aristocracia sunita e proibidos de assumir cargos importantes no Estado.

As conservadoras monarquias da região entendem a ameaça que uma rebelião que misture democracia e xiismo representa para seus regimes, por isso enviaram dois mil militares para auxiliar os Al-Khalifa a reprimir os revoltosos. O caso é particularmente grave para a Arábia Saudita, que tem expressiva minoria xiita nas províncias petrolíferas à beira do Golfo, e que enfrenta ela mesma protestos dos clérigos locais contra a dinastia Saud. Os Estados Unidos pressionam o rei do Bahrein para iniciar reformas políticas, até agora sem sucesso. Em reação à intervenção militar estrangeira, os manifestantes intensificaram suas ações, reprimidas com extrema violência pelo governo. Há chances de um banho de sangue na capital, Manama.

Kadafi continua sua contra-ofensiva no leste da Líbia, com mais vitórias militares. Está agora bastante próximo da capital rebelde em Benghazi. Os revoltosos pedem ajuda do Ocidente e a Liga Árabe faz o mesmo. Não é a primeira vez que a organização abandona um governante da região: isso aconteceu nas duas guerras dos EUA contra Saddam Hussein, quando a Liga autorizou a intervenção da Síria no Líbano (mascarada de operação multinacional pela presença minoritária de tropas de outros países) e até certo ponto pela missão da ONU no Sudão, que culmina atualmente com a secessão do sul do país.



A Liga suspendeu o governo Kadafi da organização, mas não reconheceu oficialmente os rebeldes como representantes do governo da Líbia. A situação do país continua instável, pendente do xadrez tribal que o ditador maneja com habilidade. Ele tem conseguido manter fora da rebelião a maior tribo nacional, os Warfala, que sozinhos são quase 20% dos líbios. O grupo tentou um golpe contra Kadafi em 1993 e foi duramente reprimido, seus líderes pensaram duas vezes antes de embarcar em outro ataque contra o regime autoritário.

Um cerco a Benghazi é iminente. Nas condições atuais, é improvável que os rebeldes consigam derrotar Kadafi sem ajuda estrangeira e a captura de Benghazi detonaria uma crise humanitária, com os opositores líbios fugindo do país para escapar da vingança do ditador.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Salazar



Acabou ser lançada no Brasil “Salazar – a biografia definitiva”, do historiador português Filipe Ribeiro de Menezes. É um trabalho excepcional que ajuda a compreender a longa ditadura sob a qual Portugal foi governado no século XX. Menezes é professor na Irlanda e o livro foi escrito em inglês, para o público estrangeiro, por isso dá destaque aos aspectos internacionais do regime salazarista, como seu envolvimento na guerra civil da Espanha, a atitude ambígua na Segunda Guerra Mundial, as longas revoltas anti-coloniais na África e a inserção relutante no processo de integração da Europa.

António de Oliveira Salazar chegou ao poder na década de 1920, mas com uma trajetória atípica na comparação com outros ditadores europeus do período. Não era líder militar, orador carismático ou chefe partidário, mas um embrião de tecnocrata – um pacato professor de Coimbra, de origens humildes e forte fé católica, que ascendeu como reformador da economia numa época da crise política e consolidou sua posição como o fiel da balança numa série de grupos da direita portuguesa: militares, católicos, monarquistas, republicanos conservadores e fascistas.

Oficialmente, era apenas primeiro-ministro (cargo que acumulou com frequência com outros ministérios, como Finanças, Guerra e Relações Exteriores) servindo sob as ordens de três presidentes, todos oficiais-generais das Forças Armadas. Na prática, um ditador extremamente centralizador com um aparato repressivo que se estendia por três continentes.



Educado num seminário, Salazar abandonou a possibilidade de uma carreira na Igreja pela vida acadêmica em Coimbra, então a única universidade portuguesa, com apenas 500 estudantes. Muito jovem, tornou-se professor de Direito por lá, e destacou-se pela dedicação ao ensino, embora pouco tenha publicado e apresentado de trabalhos originais. Num país de elites diminutas, ele despontou como assessor qualificado para os militares que tomaram o poder em 1926, após 16 anos de turbulência da jovem república. Como ministro das Finanças, Salazar reequilibrou o orçamento (seria seu dogma pelas décadas seguintes) e o prestígio que essas reformas trouxeram a Portugal foi considerável e abriu seu caminho para o cargo de primeiro-ministro.

Discreto e ascético em sua vida pessoal, era no entanto ambicioso e sedento de poder, manobrando com habilidade entre os diversos grupos da direita. Manteve os fascistas sob controle, tratou os monarquistas com simpatia (até alimentando a idéia de restaurar a realeza, como Franco fez na Espanha) e reestabeleceu privilégios da Igreja. Ajudou os nacionalistas na guerra civil espanhola e manteve Portugal neutro na Segunda Guerra Mundial, mantendo inicialmente laços econômicos com o Eixo, e após 1943 cedendo a importante base militar dos Açores para os Aliados.

Via na agricultura a verdadeira vocação de Portugal, mas suas políticas para a área foram ineficazes e o campo permaneceu como zona de extrema pobreza, origem do fluxo emigratório para o Brasil e depois para França e Alemanha. No pós-Segunda Guerra, o investimento estrangeiro aumentou, atraído pelo baixo custo da mão-de-obra e intensificou a industrialização portuguesa. Mas a prosperidade foi interrompida pelo alto preço das guerras coloniais em Angola, Moçambique e Guiné, que consumiam mais de 25% do orçamento público.

Salazar enfrentou diversas oposições. Nos anos 30, o risco a seu poder vinha dos fascistas, para quem ele era excessivamente tímido e conservador. Na década de 1950, dois dissidentes do regime, o general Humberto Delgado e o capitão Henrique Galvão, canalizaram os descontentamentos liberais com a ditadura e criaram vários constrangimentos internacionais para o regime. A ala progressista da Igreja, sintonizada com as democracias-cristãs européias e o concílio Vaticano II, também lhe criaram dificuldades. Nos anos 60, a perda de Goa (ocupada militarmente pela Índia de Nehru) e o início das guerras africanas quase lhe custaram o cargo, numa tentativa de golpe liderada por seu ministro da Defesa.

Salazar sobreviveu a tudo, e morreu de velhice em 1968. O regime ainda se arrastaria por mais seis anos, até cair com a Revolução dos Cravos, impulsionada pelos jovens oficiais militares que matavam e morriam na África.

sexta-feira, 11 de março de 2011

A Guinada da França e a Guerra Líbia



A guerra civil na Líbia fez baixas na França: o presidente Nicholas Sarkozy iniciou uma guinada em sua política externa, exonerando a chanceler Michèle Alliot-Marie (que tinha amplas ligações com o ditador deposto da Tunísia), nomeando para seu lugar o veterano Alain Juppé (ex-premiê, chanceler e breve titular da pasta da Defesa, na foto acima, ao lado de Sarkozy) e fortalecendo o Ministério das Relações Exteriores, inclusive com o afastamento de diversos assessores internacionais presidenciais no Palácio do Eliseu, que foram remanejados para outras funções. As mudanças refletem a crise diplomática francesa diante das revoltas árabes. Juppé mostrou a que veio fazendo a França reconhecer os rebeldes líbios como o governo do país, e anunciando o translado da embaixada de Tripoli para Benghazi.

Kadafi reagiu ameaçando revelar um “grave segredo” de Sarkozy, insinuando que seria algo sobre financiamento de campanha e que levaria à queda do presidente francês. Bravatas à parte, os dois chefes de Estado tiveram relações próximas até a eclosão da guerra civil. Sarkozy teve como um de seus principais objetivos de política externa a consolidação da “União do Mediterrâneo”, organização internacional lançada em 2008, que reune países europeus, africanos e do Oriente Médio. Na formação de alianças de apoio ao projeto, Sarkozy cortejou alguns dos piores ditadores da região, inclusive Kadafi, que ele chegou a afirmar que não era considerado um líder autoritário na África.



Ironias da política, pois Sarkozy fez campanha eleitoral falando contra a “Françafrique”, o lobby que mistura interesses empresariais franceses e africanos, e que tem sido uma influência poderosa na política externa do país. No poder, Sarkozy centralizou muitas decisões diplomáticas em sua assessoria no Eliseu. No entanto, aumentaram as críticas a seu personalismo e erros e o presidente voltou atrás decidiu fortalecer novamente os diplomatas de carreira, no Quai d´Orsay.

Sarkozy foi o principal defensor de uma Cúpula de emergência da União Européia, para tratar das revoltas no norte da África, que começa hoje em Bruxelas. A UE planeja mudar sua política de auxílio ao desenvolvimento e pensa em modos de ajudar na consolidação dos novos regimes democráticos que se anunciam na região. É um campo difícil, pois há muitos conflitos não-resolvidos, em particular a guerra civil na Líbia.

A última semana foi de vitórias militares para Kadafi, que conseguiu retomar o controle de cidades, como Bin Jawwad, Ras Lanuf e Zawyia. O ditador mostrou que suas forças especiais e mercenários são eficazes contra os rebeldes pouco organizados. Apesar das sanções econômicas internacionais em vigor, Kadafi tem à sua disposição uma quantia estimada em dezenas de bilhões dólares, armazenada em bancos e instituições governamentais líbias.

É improvável que outros países ocidentais sigam o curso da França. O cenário até agora é que a União Européia e os Estados Unidos buscam maneiras de ajudar os rebeldes e dificultar a vida de Kadafi, sem contudo anunciar explicitamente o engajamento na guerra civil. A hipótese de intervenção militar não foi descartada, mas é vista com temor e cautela, em particular diante da demonstração de força do regime autoritário.

Ainda sobre o tema: entrou no ar a entrevista que dei ao jornalista Fred Furtado, do podcast da revista "Ciência Hoje". Comento a revolta árabe e a persistência dos regimes autoritários em países como China e Irã, à luz do que escrevi no meu livro "Ditaduras Contemporâneas". Falo do impacto das novas tecnologias, das condições econômicas, do papel da juventude e de temas semelhantes.

quarta-feira, 9 de março de 2011

O Momento de Wilson



Erez Manela é um professor de Harvard que tornou-se expoente da história internacional, o esforço em buscar perspectivas cosmopolitas para os grandes episódios da política global. Seu “The Wilsonian Moment – self-determination and the international origins of anticolonial nationalism” cumpre essa tarefa para o periodo crucial de 1918-9, quando as expectativas decorrentes do fim da I Guerra Mundial detonaram uma série de revoluções que visavam a redesenhar sistemas de governo, da Alemanha à China.

O livro de Manela concentra-se no impacto no mundo colonial e na China da doutrina de autodeterminação dos povos anunciada pelo presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, como um dos “14 pontos” da reconstrução da ordem internacional após a guerra – a imagem que abre o post representa as palavras mais frequentes nesse célebre discurso. Wilson pensava nos súditos dos impérios multinacionais da Europa central e oriental e pouco tinha refletido sobre o que suas palavras significariam em outros continentes. O tema é abordado de passagem na maioria das histórias da época, mas Manela aborda de modo magistral as consequências revolucionárias do “momento wilsoniano” no Egito, Índia, China e Coréia do Sul.




Com exceção da China, todos os outros eram colônias, da Grã-Bretanha ou do Japão, e interpretaram os pronunciamentos de Wilson como a promessa de que conquistariam a independência, enviando delegados para tentar participar da Conferência de Paz de Versalhes. No caso chinês, a questão eram os enclaves estrangeiros no país, sobretudo os que os japoneses haviam tomado dos alemães durante a I Guerra Mundial. As expectativas despertadas por Wilson foram muito além do que os Aliados pretendiam oferecer após o conflito e o resultado foi a explosão de uma série de revoluções ou revoltas, todas duramente reprimidas, que foram o marco de passagem no surgimento do nacionalismo contemporâneo no Oriente Médio e na Ásia.



Neste post, tratarei apenas do Egito, uma vez que foi o país que motivou a ler o livro. Oficialmente, ele era parte do Império Otomano (mapa acima) mas gozava de grande autonomia desde meados do século XIX, sob uma dinastia albanesa de quedivas, os soberanos locais. A enorme dívida externa contraída para construir o Canal de Suez e tocar projetos de modernização levou à ocupação militar do Egito pelos britânicos, que decretaram um “protetorado”, consolidado após a derrota de uma revolta nacionalista sob um líder militar, o paxá Urabi.

O Império Otomano foi destruído na I Guerra Mundial e os espólios dos territórios árabes foram divididos entre britânicos e franceses pelos termos do acordo Sykes-Picot, ainda que os novos países criados então fossem declarados “mandatos” coloniais provisórios, sob a égide da recém-inaugurada Liga das Nações. Um mapa instável que o historiador David Fromkin chamou de “uma paz para acabar com todas as pazes”.

Não houve mudança formal na situação do Egito, e a elite local ficou revoltada em ser tratada pior do que as tribos da Arábia, que de imediato ficaram livres. Os nacionalistas egípcios formaram um novo partido, o Wafd (delegação) e impulsionaram a Revolução de 1919, visando à Independência – momento histórico admiravelmente narrado no primeiro volume da “Triologia do Cairo”, de Nagib Mahfouz, protagonizada por uma família partidária do Wafd. Os britânicos conjugaram repressão com concessões, cedendo mais poderes à assembléia legislativa local. Mas a autonomia do Egito só viria bem mais tarde, após a outra guerra mundial.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Panorama da Guerra Civil



A guerra civil na Líbia prossegue com vitórias importantes para os rebeldes, tanto nos campos de batalhas quanto na frente diplomática. No entanto, começam a ficar claras as fissuras políticas que apontam para uma complexa transição após Kadafi.

O fato militar mais significativo da semana foi a derrota da ofensiva das tropas leais a Kadafi para tentar reconquistar a cidade de Brega, na rota dos poços de petróleo. Há relatos da fragilidade das Forças Armadas da Líbia, com informações sobre caças sem condições de voar e estimativas que os soldados de Kadafi talvez sejam apenas 10 mil. São rumores verossímeis que explicariam por que o ditador tem recorrido a mercenários de outros países africanos.

No front diplomático, os rebeldes conseguiram apoios importantes dos aliados internacionais. A ONU iniciou distribuição de ajuda humanitária, congelou ativos financeiros de Kadafi e de figuras-chave do regime e o Tribunal Penal Internacional iniciou os procedimentos para levar o ditador ao banco dos réus por crimes contra a humanidade. O cerco aperta contra ele.

Kadafi sentiu o golpe e reagiu agarrando a oportunidade que o presidente venezuelano lhe ofereceu, de uma comissão para dialogar com a oposição. A proposta foi rejeitada pela União Européia e mesmo a Liga Árabe se mostrou bastante receosa. Não está clara se ela será implementada. Chávez e Kadafi tem longa relação, o venezuelano recebeu inclusive o Prêmio Kadafi de Direitos Humanos (sim, existe um) e há alguns meses denuncia um suposto plano ocidental para tomar o controle do petróleo líbio.



Atualmente, a Líbia produz apenas 1% do petróleo mundial e a Arábia Saudita anunciou o aumento de sua própria produção para tentar conter a especulação que levava ao aumento dos preços. Desde que as revoltas democráticas no mundo árabe começaram, o preço do barril subiu cerca de 20% e fechou em US$116 na quinta-feira à noite. Naturalmente, pode disparar caso os distúrbios chegem à Arábia Saudita, onde um importante clerigo xiita foi preso nesta semana, e correm rumores de protestos sendo organizados pela Internet.

Se os rebeldes líbios avançam contra Kadafi, deparam-se também com o acirramento de suas divisões internas. Por enquanto, seu principal porta-voz é o ex-ministro da Justiça de Kadafi, Mustafa Abdel Jalil, um idoso líder tribal respeitado por manifestar discordâncias com relação ao ditador. Mas os jovens que formam parte importante dos revoltosos se insurgiram contra ele e nomearam seus próprios representantes. Também há uma reorganização dos grupos islâmicos, que no entanto permanecem minoritários.

O xadrez tribal da Líbia apresenta suas próprias dificuldades. Kadafi mantém o controle de apenas duas cidades importantes: a capital, Tripoli, e Sirte, bastião de sua própria tribo. Ele também possui clãs aliados no interior, entre os grupos beduínos, mas até o momento seu maior trunfo tem sido a abstenção dos Wafala, a maior tribo do país - um milhão de membros, para uma população de cerca de 6,5 milhões de líbio. Esse grupo tentou um golpe contra Kadafi em 1993 e foi selvagemente reprimido quando ele falhou. É compreensível que estejam cautelosos em se lançar numa nova aventura política.

quarta-feira, 2 de março de 2011

A Marcha da Intervenção



A revolta na Líbia é sem dúvida a mais violenta vivida até o momento na primavera dos povos árabes e a relutância de Kadafi em abandonar o poder provocou dois problemas que incentivam uma intervenção militar estrangeira: a queda de 50% na produção de petróleo e o êxodo de dezenas de milhares de refugiados, rumo aos países vizinhos e à Europa. Contudo, uma ação de forças armadas ocidentais na região despertará intensa reação na opinião pública árabe, despertando os fantasmas de guerras anteriores e alimentando a retórica dos ditadores que identificam em agentes externos a explosão das rebeliões democráticas.

O Conselho de Segurança da ONU tomou diversas medidas importantes nos últimos dias, como o maior congelamento de ativos financeiros da história, voltado contra a família Kadafi e contra líderes da ditadura líbia. As Nações Unidas debatem possibilidades de intervenção militar, como a decretação de zona de exclusão aérea (como foi feito no norte do Iraque após a Guerra do Golfo, em 1991, para impedir que Saddam Hussein massacrasse os curdos) e a entrega de Kadafi e seus asseclas ao Tribunal Penal Internacional, para serem processados por violações de direitos humanos.

Há um histórico trágico de intervenções militares em países árabes, com ou sem chancela multilateral, como no ataque tripartite de Israel, França e Reino Unido contra o Egito, quando Nasser nacionalizou o Canal de Suez (1956), as duas guerras do Iraque (1991 e 2003, sendo que a primeira também resultou em tropas ocidentais na Arábia Saudita e no Kuwait) e a missão da ONU no Sudão (2005 em diante) para mediar os conflitos internos que culminam agora com a secessão do sul país. Com exceção do Egito, todos as outras nações onde houve presença militar estrangeira são ricas em petróleo, o que naturalmente enfraquece muito aos olhos árabes os argumentos humanitários evocados pelos governos ocidentais apra justificar tais intervenções. Será ainda pior se a medida for tomada fora do âmbito da ONU.

Uma ação restrita na Líbia, como a zona de exclusão aérea, pode ser bem-sucedida em acelerar o fim do regime de Kadafi, mas uma eventual presença militar em terra seria um pesadelo, pois a força de ocupação teria que mediar os conflitos entre as tribos líbias. Isso foi tentado pelas tropas de paz da ONU na Somália, com péssimos resultados, que culminaram no massacre de Mogadício, em 1993.

Para o Brasil, uma intervenção das Nações Unidas causaria constrangimento extra: como o país preside atualmente o Conselho de Segurança, teria que aprovar tal medida (no contexto dos esforços em acalmar os ânimos com os Estados Unidos, após a discordância com relação ao Irã, em 2010) muito embora ela contrarie a tradição diplomática brasileira de buscar soluções pacíficas para os conflitos internacionais e observar com cautela a aplicação de coerção militar contra países em desenvolvimento.