quarta-feira, 23 de março de 2011

No País dos Homens



Antes da eclosão da revolta líbia, muitas pessoas imaginavam Kadafi como uma figura cômica, por conta de suas roupas espalhafatosas e de seu discurso ideológico exaltado. A extensão da violência na guerra civil mostrou a verdadeira face do regime e se você quiser uma dimensão artística sobre os dramas daquela nação, a disca de leitura é o romance “No País dos Homens”, de Hisham Matar (foto), que conta a história de um menino que descobre o mundo quando seu pai se envolve na oposição à ditadura. Publicado em 2006, foi aclamado internacionalmente como uma das expressões mais destacadas da literatura árabe contemporânea.

Há toques autobiográficos na ficção de Matar, pois sua família também passou por dificuldades por conta da resistência a Kadafi. Tiveram que fugir para o Egito, onde viviam vigiados pela política política de Mubarak, até o dia em que os dois ditadores chegaram a um entendimento e os egípcios sequestraram o pai do escritor, entregando-o à repressão líbia. Nunca mais foi visto.

O romance é narrado em primeira pessoa por Suleiman, o filho único de um casal de alta classe média na Líbia da década de 1970. Seu pai é um empresário bem-sucedido que organiza um movimento político contra Kadafi, com a ajuda de amigos intelectuais, do meio universitário. A ditadura estava no poder há dez anos e ainda havia vestígios da monarquia líbia e da presença colonial dos italianos no país, ao mesmo tempo em que a violência e o medo do novo regime se espalhavam rapidamente.

Suleiman vê seu mundo começar a ruir quando o pai de seu melhor amigo é preso (“Sumiu feito um grão de sal na água”) e seu próprio pai se ausenta cada vez mais em misteriosas “viagens de negócios”. Homens do comitê revolucionário, a política política, rondam sua casa e às vezes lhe abordam com conversas insinuantes para que ele os ajude. Sua mãe cai em depressão e recorre à bebida. Os telefones emitem estranhos ecos, quando são grampeados.

“Quero olhar para baixo e ver meu país feito um mapa distante, reduzido a linhas, reduzido a uma idéia”, diz a mãe, que sofre com uma dupla opressão: a da ditadura e o papel submisso que se espera das mulheres líbias, um destino que ela sonhou romper quando jovem, quando frequentava cafés italianos e imagina uma vida à base de capuccinos. A família de Suleiman começa a pensar em emigrar, como fez um tio poeta que foi para os Estados Unidos, ou os amigos egípcios que seus parentes têm no Cairo.




À medida que o ciclo da repressão se aperta, a família precisa recorrer à ajuda de vizinhos influentes no regime autoritário (“Posso sentir as reverberações distantes daquele dia, foi minha estréia na arte escura da submissão”), com o pano de fundo das atrocidades de Kadafi: os enforcamentos de dissidentes transmitidos pela TV, a guerra contra o Chade, os confiscos econômicos para destruir a independência da classe média.

Todas as ditaduras se parecem e o romance de Matar tem enredo e detalhes facilmente adaptados para a realidade da América Latina – poderia dar um excelente filme argentino, nos moldes de “Kamchatka”, de Marcelo Piñeyro. A proeminência literária de Matar o tornou o maior símbolo da oposição líbia, de seu exílio em Londres. Ele tem sido bastante ativo na denúncia a Kadafi e seu novo livro, “Anatomia de um Desaparecimento”, será lançado em breve no Brasil. O tema é a investigação a respeito do sequestro de seu pai.

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