terça-feira, 16 de agosto de 2011
A Casa Está em Ordem
Nesta minha recente viagem à Argentina, comprei muitos livros que tratam da transição da ditadura para a democracia. Há excelentes lançamentos a respeito do tema, em particular memórias ou entrevistas com protagonistas do governo do presidente Raúl Alfonsín (1983-1989), como a reflexão de seu ministro da Defesa, Horacio Jaunarena, acerta das turbulências que enfrentou para reconduzir as Forças Armadas ao Estado de Direito.
"La Casa Está en Orden - memoria de la transicion" é um excelente testemunho sobre aqueles anos difíceis e quase um manual para autoridades civis que enfrentem o desafio de lidar com punições a militares que cometeram violações de direitos humanos em períodos autoritários. No caso argentino, a ditadura de 1976-1983, com um número de mortos estimado entre 9 mil e 30 mil, e a tragédia da guerra das Malvinas. O regime militar foi precedido por três conturbados governos peronistas (1973-1976) nos quais as facções de extrema-esquerda e extrema-direita do partido se enfrentaram de armas na mão, com atentados contra militares, policiais, sindicalistas etc.
O peronismo nunca havia perdido uma eleição presidencial até 1983, quando foi derrotado pela União Cívica Radical, liderada por Raúl Alfonsín. A vitória foi surpreendente e se deveu, em grande medida, ao compromisso do candidato em anular a autoanistia que os militares haviam proclamado, e que havia sido aceita pelos seguidores de Perón. A decisão de Alfonsín foi ousada e inovadora, pois até então as transições para a democracia haviam sido feitas com base em pactos que garantiam a impunidade dos violadores de direitos humanos, como tinha ocorrido em Portugal, na Espanha e na Grécia. Alfonsín processou também os líderes das principais guerrilhas da esquerda, os Montoneros e o EPR.
Jaunarena era um advogado filiado à UCR sem experiência prévia com temas militares, que foi convidado a assessorar o ministro da Defesa, Raúl Borrás. As tensões foram tantas que o ministro morreu no cargo, fulminado por um câncer de rápida progressão. Teve dois sucessores breves, um dos quais também faleceu na pasta, por infarto. Jaunarena assessorou todos eles e finalmente foi nomeado por Alfonsín para comandar a Defesa, apesar de bastante jovem - tinha pouco mais de 40 anos e não era um líder expressivo do partido.
O plano do governo é que os militares fossem julgados por seus pares, por meio do Conselho Supremo das Forças Armadas. Isso não aconteceu, porque a instituição protelou os interrogatórios e adiou as investigações. Os processos passaram então para um conjunto de juízes federais (estou lendo outro livro, que reúne entrevistas com eles e com o promotor do caso) que julgaram e condenaram os oficiais-generais que comandaram a junta ditadorial. Dois deles, o general Jorge Videla e o almirante Emilio Massera, receberam sentenças de prisão perpétua.
Contudo, o julgamento das juntas abriu a porta para milhares de outros processos, envolvendo oficiais de média e baixa patente, que haviam executado as ordens superiores e implementado a repressão. Isso se revelou um grande problema para o governo, pela dificuldade de estabelecer a responsabilidade de cada um - questão que até hoje não está de todo resolvida. As autoridades procuraram estabelecer critérios, como punir aqueles que haviam excedido mesmo os poderes da ditadura e se envolvido em crimes não-conexos à tarefa da repressão política, como roubos, sequestros de bebês e estupros.
No governo Alfonsín, Jaunarena esteve entre aqueles que defendiam a necessidade de estabelecer limites claros a quem podia ser processado, para evitar conflitos ainda mais intensos entre as Forças Armadas e as autoridades civis. De fato, o período foi marcado por três levantes militares (Semana Santa, Monte Caseros, Villa Martelli) dos chamados "carapintadas", que queriam a interrupção dos julgamentos e a substituição de comandantes que apoiavam o governo - o vídeo acima mostra a reação do presidente, e da população, à primeira insurreição. Houve também um ataque de uma guerrilha de extrema-esquerda ao quartel do Exército em La Tablada, que Jaunarena insinua ter sido obra de grupos ligados ao peronismo, com possível apoio de autoridades da Nicarágua sandinista.
O ex-ministro narra em detalhes os bastidores desses enfrentamentos, defendendo a decisão do governo em promulgar as polêmicas leis "Obediência Devida" e "Ponto Final", que encerraram os processos após a condenação de cerca de 300 militares. Quando o peronista Carlos Menem foi eleito presidente, em 1989, indultou todos os condenados e a batalha só foi retomada em 2003, com a posse de Néstor Kirchner na Casa Rosada.
Nos capítulos finais do livro, Jaunarena faz breve mas ótima análise da política militar de Menem, e comenta suas novas atuações como ministro da Defesa nos governos de Fernando de la Rúa (1999-2001) e do peronista Eduardo Duhalde (2002-2003), no cenário da profunda crise econômica e da reformulação do papel das Forças Armadas. Ele examina, em retrospecto, como a transição argentina foi importante para o direito internacional dos direitos humanos, estabelecendo precedentes que inspiraram a nova jurisprudência de crimes contra a humanidade, do Tribunal Penal Internacional, imprescritíveis e que não podem ser anistiados.
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