segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Sergio: os dilemas das intervenções da ONU



Na semana passada estive na UFF, a convite do centro acadêmico dos estudantes de Relações Internacionais, para debater o documentário “Sergio”, a respeito de Sergio Vieira de Mello, o brasileiro que mais se destacou na ONU, tendo servido como chefe do governo de transição em Timor Leste, Alto Comissário de Direitos Humanos e representante no Iraque, onde foi assassinado num atentado da Al-Qaeda, em 2003. O filme é uma boa adaptação da biografia escrita pela jornalista Samantha Power, ainda que eu avalie que ele se concentra excessivamente no último dia de vida do protagonista e pouco aborde seus anos cruciais nas missões de paz da antiga Iugoslávia. Centrei minha palestra em como sua trajetória representa os dilemas das intervenções militares humanitárias após a Guerra Fria.

Vieira de Mello ingressou na ONU em 1969, recém-formado em Filosofia pela Sorbonne, e passou toda a vida profissional na organização. Filho de diplomata, havia morado em vários países, sobretudo na Europa. Era parte da geração rebelde dos anos 60 e na França tinha participado intensamente dos protestos de maio de 1968, chegando até a ser preso e espancado pela polícia. Militava na extrema-esquerda e tinha opiniões fortemente contrárias ao colonialismo e às intervenções militares do Ocidente em Estados como o Vietnã. Nas suas primeiras duas décadas nas Nações Unidas, trabalhou sobretudo com a distribuição de ajuda humanitária a refugiados na Ásia e na África.

A partir dos anos finais da Guerra Fria, as missões de paz da ONU se multiplicaram em número e aprofundaram seu escopo. Deixaram de ser concentradas na manutenção de cessar-fogo entre Exércitos hostis e passaram a abranger tarefas cada vez mais intervencionistas, como a “imposição da paz” a grupos armados que não haviam aceitado um acordo, organização de ministérios, condução de políticas públicas e até a construção de Estados soberanos no Kosovo e no Timor Leste. Vieira de Mello foi um ator importante em várias dessas operações, tendo inclusive chefiado algumas.



Meu argumento é que tais mudanças foram mais problemáticas do que em geral consideramos, porque significam contradição de princípios fundadores da ONU, como a neutralidade e a imparcialidade. Como afirmei em entrevista recente, a organização é encarada por grupos como radicais islâmicos (mas não só por eles) como uma maneira encobrir interesses das potências ocidentais, ocultando disputas por recursos naturais sob o manto da defesa dos direitos humanos e da democracia. Países como o Brasil tem sido bastante refratários às doutrinas mais intervencionistas das Nações Unidas, como a “responsabilidade em proteger”.

Contudo, muitas pessoas acreditam que a ONU pode e deve ter papel mais ativo nos conflitos internacionais, intervindo em países que violam os direitos humanos de sua população e forçando-os – por meio de sanções econômicas ou força militar – a mudar de atitude. O próprio Vieira de Mello passou a defender essa postura, após suas decepções com o modelo clássico das operações de paz das Nações Unidas. Argumentei que tal posição com freqüência subestima o quanto o poder é coercitivo e agressivo, mesmo quando aplicado com as melhores intenções, e pode gerar resultados contrários aos esperados. Citei o poeta britânico P.B. Shelley: “Os bons querem poder, mas para enxugar lágrimas inúteis. / Os poderosos querem bondade: inútil para eles.”

Tais contradições da ONU e das intervenções humanitárias foram elevadas ao máximo com a decisão da organização em instalar-se no Iraque após a invasão dos Estados Unidos. A idéia era aproveitar ao máximo a possibilidade de ocupar algum espaço depois do fato consumado da guerra não-autorizada pelo Conselho de Segurança. Não era difícil prever que muitos grupos a considerariam como simplesmente um braço auxiliar dos americanos no país e a Al-Qaeda a atacou com força – o atentado que matou Vieira de Mello foi o pior contra a instituição, às vezes chamado de “o 11 de Setembro da ONU”. Mas não foi o último, como mostram os ataques no Afeganistão e Nigéria.

2 comentários:

Diana Thomaz disse...

Foi uma discussão muito bem conduzida lá na UFF, você levantou os pontos principais que perpassaram a trajetória do Vieira de Mello na ONU, sobretudo esse das intervenções humanitárias. Também tinha achado que o filme se concentra demais no momento da tentativa de resgate, então sua análise enriqueceu muito o debate. Mais uma vez, muito obrigada por ter aceitado nosso convite, foi um grande prazer. Abraços

Maurício Santoro disse...

Salve, Diana.

O prazer foi meu, gostei muitíssimo do debate e da alta qualidade das perguntas. Uma vez mais, obrigado pelo convite.

Abraços