quarta-feira, 26 de outubro de 2011
A Vitória de Cristina Kirchner
Há três anos eu estava na Argentina quando o governo de Cristina Kirchner sofreu sua pior derrota, na rejeição do Congresso a sua proposta de taxar as exportações do agronegócio. A popularidade da presidente estava em 20% e muitos acreditavam que ela renunciaria. Dois meses atrás, em outra visita a Buenos Aires, a presidente havia se fortalecido e ganhou com facilidade as primárias. Agora se reelegeu em primeiro turno, com os maiores percentuais de voto (54%) e de distância para o segundo colocado (37%) desde o retorno da democracia.
É uma das guinadas eleitorais mais impressionantes da América Latina, em especial porque ocorreu em meio a problemas sérios, como inflação alta, escândalos de corrupção e conflitos com a imprensa. O segredo do sucesso passa pela economia, mas também pela impressionante estrutura de poder do peronismo, em contraste com a fragmentação partidária após a crise de 1998-2002.
Cerca de dois terços das exportações da Argentina são commodities e o país se beneficiou muito da conjuntura global da última década, aumentando bastante as vendas de soja e de vinho ao exterior. O mercado interno também voltou a crescer, em especial na construção civil, e em 2005 o PIB ultrapassou o nível anterior ao da crise. O desemprego também caiu bastante, para 9%. Ou seja: a vida material melhorou muito com relação à catástrofe dos anos recentes. Ainda que persistam dificuldades como a inflação alta (estimada em torno de 25% ao ano), agravada pela manipulação dos índices oficiais, que insistem em apontar um índice de um terço disso.
Durante a crise os argentinos gritavam “que se vayan todos” para a elite política. Não foi exatamente o que ocorreu, mas houve uma mudança significativa no quadro partidário, com o surgimento de vários pequenos partidos. O tradicional sistema bipartidário (peronismo e UCR) virou um regime com meia dúzia de siglas disputando o poder. Os Kirchner ocupam a presidência desde 2003 e tiveram enormes dificuldades em lidar com as diversas facções dos seguidores de Perón, mas continuam a ter uma grande vantagem sobre a oposição, dividida em pequenas agremiações somam em conjunto menos de um terço dos votos.
A morte de Néstor Kirchner, no fim de 2010, acabou se revelando um bônus político para a viúva. Hoje está claro que o ex-presidente era o elemento mais conflituoso no casal e que sem ele Cristina conseguiu construir relações mais moderadas com o agronegócio e mesmo dentro do peronismo. A estrela em ascensão no partido é o vice-presidente eleito, Amado Boudou, ex-ministro da Fazenda, um economista de origens liberais que pode ser uma ponte com os empresários. O sucesso eleitoral faz com que muitos dissidentes peronistas se reaproximem de Cristina, em particular na crucial província de Buenos Aires, que concentra 40% dos votos.
A Argentina já foi mais rica do que a Espanha e o Brasil, mas seus últimos 40 anos foram de declínio constante. Quase 80% das 500 maiores empresas do país pertencem a estrangeiros. O nacionalismo econômico dos Kirchner não foi capaz de reconstruir uma coalizão pró-indústria, mas o governo retomou o controle de alguns setores que haviam sido privatizados (água, estaleiros, ferrovias, correios, fundos de pensão, linhas aéreas) e incentivou empresários nacionais a obter a maioria das ações em firmas que estavam sob direção externa.
Falta ao país o dinamismo das empresas globais que começam a surgir em outras nações latino-americanas, sobretudo no Brasil, México e Chile. O sistema político também tem se mostrado inadequado, polarizado e centralizador. São problemas intensos para a Argentina contemporânea, mas ao menos o período mais díficil, de crise econômica aguda, foi superado.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
13 comentários:
Lá, pelo menos, eles enquadraram a mídia. Aqui, nosso governo se acovarda com medo das páginas amarelas e do casal telejornal. Até quando?
Maurício, qual sua opinião sobre a ARgentina ter deixado de ser exportadora, para começar a importar energia? A crise internacional, se intensificada, não pode fazer a Argentina quebrar de novo? Essas duas versões da inflação (a real e a oficial) não pode ser um indício de que o que se quer é uma visão só de tudo? A oficial, claro.
"'Enquandram' a mídia"? Censuram a mídia você (anônimo) quer dizer, né?
Meu Deus, até nesse post conseguem trazer o assunto do "controle de mídia". Como se a Dilma estivesse com popularidade baixíssima pesar de toda suposta perseguição!
Agora, sobre o artigo em si... It's the economy, stupid! Se a economia vai bem, o povo está feliz.
Felipe,
Engano seu, o Chile esteve com a economia indo "bem" e o povo indo mal por muito tempo. Vale uma análise mais apurada nesse seu comentário.
E, desculpe, mas não entendi a relação da mídia com a popularidade da Dilma e a muito provável censura na mídia argentina.
Cíntia, sobre a mídia eu estava criticando o comentário do primeiro "anônimo". Me incomoda como falam em mídia gopista blah blah mas nossos presidentes surfam em ondas de alta popularidade e mesmo assim querem vir com censura. E sempre criam discussões moralistas como a propaganda do azeite ou da cerveja como desculpa para isso.
Em relação ao Chile, não sei do que estás falando, quando isso aconteceu. Mas o que quero dizer é que se o povo está empregado e consumindo, qualquer presidente é popular, não importa se é de esquerda, direta, está privatizando tudo ou seja lá o que for. E os argentinos estão bem nisso.
Salve, Cíntia.
O déficit de energia da Argentina é um dos problemas sérios que a presidente Cristina terá pela frente. Ele surgiu, basicamente, porque o marco regulatório do setor é muito ruim e os investidores têm medo de destinar recursos em meio à instabilidade da área.
A combinação de uma economia em rápido crescimento com falta de investimento em geração de energia forma uma equação que só fecha com importações de energia, via GNL ou do Brasil. Já levou a conflitos comerciais com o Chile, quando a Argentina rompeu contrato e parou de exportar para lá.
Anônimo,
O Grupo Clarín tornou-se inimigo dos Kirchner somente com a disputa em torno do agronegócio, antes disso era um aliado.
As respostas do governo não tem se pautado por transparência e pluralismo de opiniões, mas sim pelo cerceamento da liberdade de imprensa e pela manipulação dos indicadores oficiais da economia, inclusive ameçando processar judicialmente jornalistas que escrevam sobre essas fraudes.
Caro Felipe,
A economia é uma parte importantíssima da resposta, mas há um elemento político que também é forte, pelo modo como o peronismo tem sido a única força do país a garantir a governabilidade de seus presidentes.
Abraços
Grande Amigo e Mestre, Maurício
Concordo em grande parte com as colocações feitas pelo Felipe.
A economia em ascenção, traz junto consigo a melhoria da imagem do governante do momento, independente do viés ideológico que o mesmo procure trilhar.
O próprio Brasil é um exemplo claro dessa situação. A Argentina não é diferente.
A alta do preço das commodities no mercado internacional, que já vem de longa data, tem ajudado muito ao Brasil e à Argentina em termos de manter-se um sentimento de otimismo que influencia diretamente na imagem que a sociedade tem do governo.
Faço aindam mais uma analogia entre os dois países, pois creio que a oposição, tanto lá como cá, é pífia e ainda não conseguiu estabelecer uma agenda clara para sua atuação, sobretudos no legislativo.
Pior ainda, essa sensação legitimidade passada pela aprovação popular, tem produzido ações autoritárias do governo argentino no sentido de imppor limites à liberdade de imprensa, assim como alguns celerados desejam fazer no Brasil.
Grande abraço, Maurício!
Gonçalez
Meu caro:
Como sempre, comentários excelentes. Eu penso, como o Felipe, que o crescimento econômico foi a principal razão da re-eleição da Cristina (e da re-re-eleição do casal Kirchner). Nos 90 houve crescimento, mas alguns setores tinham bons dias (automotor, serviços) e outros ruins (agro, muitos setores industriáis, etc.) e com alto desemprego. Aqui ganharam
todos: baixou o desemprego e todos os setores cresceram, uns mais e outros menos, claro, mas desde 2002 até agora podemos dizer que praticamente todos os argentinos estão melhor econômicamente, e isso eletoralmente já é difícil de enfrentar nas urnas.
Respeito à imprensa, creo que o principal problema não é a censura (há casos, sim, pontuáis) senão a construição de um para-médio oficialista. Por exemplo, uma empresa relacionada com obras públicas criou um jornal ultra-oficialista, e a TV oficial é usada pra fazer propaganda como nunca outro governo tinha feito. Conversamos com o Maurício sob o tema, e ele me dizia (com razão) que issa política mais sutil e menos violenta foi mais eficaz que a confrontativa do Chávez ou Correa.
Respeito às figuras en ascenso, eu agregaria um par mais. Por um lado, os líderes de La Cámpora, uma agrupação juvenil criada pelo Néstor K. no 2003 (presidida sempre pelo filho do casal, Máximo Kirchner) que tem tomado um papel fundamental, especialmente desde a morte do ex presidente. O grupo tem ganhado cerca de 20 bancas (de 257 do Congresso nacional) e também nos parlamentos provinciáis ganharam força. Issas bancas foram dadas, em muitos casos, a familiares dos principáis líderes (José Ottavis, Eduardo "Wado" de Pedro, etc.)
O outro ganhador ´
é sem dúvidas o Sergio Massa. Antigo padrinho do vicepresidente eleito Amado Boudou e, como ele, ex militante da UCEDÉ (Unión de Centro Democrático, partido defensor da mais rigorosa ortodoxia econômica e contrário ao julgamento aos represores), hoje intendente de uma das principáis prefeituras da província de Bs. As. (Tigre, reeleito com o 70%!, o maior margem na província( que logrou que dois de seus aliados, Andreotti e Katopodis, arrevataram a prefeitos históricos da província (16 e 12 anos no poder!) as importantes cidades de San Fernando e San Martín. Sem dúvidas va ser um dos candidatos mais fortes à gobernaçao da província no 2011.
Abraços
Patricio Iglesias
Caríssimos,
Ótimo debate, sem dúvida. Patricio, acabei não falando sobre a juventude peronista, mas é um tema importante e inclusive me perguntaram a respeito a dele em entrevistas. Ainda escreverei mais sobre o assunto.
Fico preocupado com a questão da imprensa, ela tensiona demais situações que poderiam ser resolvidas via negociação.
Abraços
Postar um comentário