Blogueira Convidada: Patrícia Rangel
Doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), mestre pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Autora do livro “Barrados: um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global”, disponível para download gratuito.
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Há quatro anos, eu e um companheiro de mestrado fomos arbitrariamente detidos em Barajas (aeroporto de Madri) e impedidos de seguir viagem para Lisboa, onde participaríamos de um congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política. Foram 50 horas de detenção injustificada e maus-tratos.
Não se tratou de um caso isolado. Só no primeiro trimestre daquele ano de 2008, a polícia espanhola barrou 18 mil pessoas (entre elas, mil brasileiros). Além de se engajar no processo de aprovação da Diretiva de Retorno (um novo acordo para dificultar a permanência de estrangeiros na União Européia), o país anunciou a idéia de pagar para os imigrantes desempregados retornarem a seus países. De lá para cá, pouca coisa mudou. Muitos outros brasileiros foram submetidos a inexplicáveis maus-tratos, como as religiosas que seguiam para a Alemanha em missão evangelizadora; o músico Guinga, que perdeu dois dentes após ser agredido por um policial do posto da Polícia Nacional Espanhola no aeroporto Barajas; o padre Jeferson Flávio Mengali, que, além de ficar detido, suportou chacotas dos policiais sobre suas roupas religiosas; a física Patrícia Camargo Guimarães, que me antecedeu nesta infeliz aventura e também denunciou o abuso das autoridades que a mantiveram presa por três dias sem qualquer justificativa; entre inúmeros outros brasileiros injustiçados.
Apesar de o Ministério do Interior espanhol argumentar que aplica objetivamente as normas do espaço Schengen, relatos de pessoas rejeitadas e repatriadas apontam discriminação na aplicação de regras. As denúncias giram em torno dos mesmos temas: arbitrariedade nos critérios de ingresso, agressividade dos agentes policiais, acomodações precárias, falta de comida e tratamento humilhante. Em poucas palavra, total ausência de direitos. Zero em hospitalidade.
Recentemente, o debate foi resgatado por conta da adoção de políticas de reciprocidade, que acarretaram a negação de cidadãos espanhóis por autoridades brasileiras. O governo da presidenta Dilma Rousseff oficialmente tomou a decisão de endurecer a entrada de turistas espanhóis e oferecer a eles um tratamento nos mesmo moldes do que nos é oferecido por aquele país. Se antes não lhes era exigido praticamente nada, agora os supostos turistas deverão comprovar a posse de pelo menos 75 euros por dia de permanência em território brasileiro e reserva de hotel ou carta de convite de um residente da cidade de destino registrada em cartório.
Com a aplicação objetiva destas novas regras, estão sendo rejeitados os indivíduos que não atendam aos requisitos para entrar em nosso país, ao contrário do que costuma acontecer na outra mão desta estrada. Tudo muito bom, tudo muito bem. Louvável a postura do Itamaraty. Ao menos quando somos nós, brasileiros, as vítimas do comportamento arbitrário das autoridades de imigração e da xenofobia em países centrais. Mas e quando as posições do jogo se invertem?
No começo deste ano, o governo agiu para controlar o fluxo de imigrantes do Haiti que têm entrado no Brasil pela Amazônia, ao estabelecer um limite de cem vistos de trabalho a haitianos por mês. Paradoxalmente, o país tem atraído cada vez mais imigrantes europeus e americanos que fogem da crise econômica. Sem muito interesse em refugiados de países da Ásia Meridional e da África, bem como em imigrantes de outros países latino-americanos, o Ministério do Trabalho esboça planos para facilitar a vinda de europeus.
Voltando aos haitianos, dados do governo mostram que, até agora, entraram no país 4 mil cidadãos desta nacionalidade, número que vem sendo apontado como um intenso fluxo migratório. Chega a ser cômico argumentar que os haitianos estão “invadindo” o território brasileiro quando nem sequem se destaca o fato de que a maioria dos 51.353 estrangeiros que entraram no Brasil em 2011 são portugueses.
Não se trata, entretanto, de argumentar que não devemos permitir a entrada de europeus no país. Pelo contrário! Sou partidária da adoção de uma postura cosmopolita e hospitaleira por parte do governo brasileiro, mas que seja para todos os cidadãos do mundo. Não podemos adotar uma lógica de dois pesos e duas medidas, dificultando a entrada de nacionais de certos países e incentivando a vinda de europeus. Fazendo assim, somente estaremos reproduzindo a política de imigração racista da Espanha, tão criticada por nós, brasileiros.
Neste caminho, estaríamos reproduzindo também a recorrente migração seletiva que iniciamos logo após a abolição da escravatura com o objetivo de “embranquecer” nossa população, política evidentemente racista. Este ponto se torna especialmente problemático se observarmos a nada recente existência de grupos de características fascistas que se manifestam contra a presença de migrantes econômicos, sobretudo bolivianos, principalmente na cidade de São Paulo.
Em vez de aceitarmos nossa “natureza” e nosso destino enquanto cidadãos do mundo (como argumentava Kant), preocupamo-nos em controlar os movimentos de pessoas como prerrogativa do poder do Estado, levantando barreiras à entrada dos que desejamos manter longe e colocando nessas barreiras guardas bem treinados, armados e disciplinados para desempenhar bem seu papel. Eis um grande erro, como argumenta Seyla Benhabib, pois o sistema internacional de Estados e povos é caracterizado pela interdependência. Esse movimento deveria nos levar a transcender a perspectiva de territorialidade, não a fechar fronteiras, favorecendo disposições de um regime de soberania vestifaliano.
O que me preocupa, ademais, é a lógica “gente versus mercadoria”. A ideologia do capitalismo globalizado e dos mercados livres, adotada pela maioria dos Estados, fracassou em estabelecer a livre movimentação de pessoas e da força de trabalho, ao contrário do que aconteceu com as mercadorias. Seria coincidência o fato de a política de reciprocidade e endurecimento das regras de imigração somente agora que o Brasil é reconhecido como sexta maior economia mundial e que a Espanha se encontra em um quadro de depressão econômica?
O governo brasileiro não pode ser incoerente. Não pode defender uma postura humanitária nas questões de emigração e outra conservadora quando trata de fluxos imigratórios. Como cientista social e vítima da xenofobia européia, orgulho-me muito das progressistas manifestações brasileiras acerca da questão. Não gostaria e não suportaria ver meu país adotar em relação aos bolivianos, haitianos e paraguaios a mesma postura que Espanha e Itália adotam perante nós, latino-americanos.
Foi observando e analisando este fenômeno que terminei por escrever um livro acerca dos fluxos migratórios, com foco especial nas políticas de imigração da União Européia. O livro, intitulado “Barrados: um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global”, também traz um par de depoimentos meus sobre tão peculiar etnografia. O nome que escolhi para a obra demonstra meu descontentamento em relação às assimétricas relações travadas entre o Norte global e os povos do Sul.
Acredito que políticas destinadas ao controle da imigração ilegal e das fronteiras, não são efetivas. Além disso, alimentam a crescente xenofobia nos Estados, legitimando a culpa atribuída aos estrangeiros por todos os males sociais que emergem nesses territórios. Por fim, jogam uma pá de cal no projeto de cidadania cosmopolita idealizado por Kant há 200 anos e que, em determinados momentos da história, começou a ser colocado em prática. Barajas se tornou, para mim e para muitos outros, sinônimo de prisão. Espero que em breve, para todos e todas, Barajas volte a ser o nome de um aeroporto, porta de entrada para um mundo de experiências e oportunidades.