Continuando os posts sobre Rússia, por conta do curso que irei lecionar em breve li a nova biografia "Putin - a face oculta do novo czar", da jornalista russo Masha Gessen. O título internacional do livro, "Man Without a Face", resume melhor as intenções da autora: é uma assustadora narrativa da destruição do frágil experimento da democracia pós-soviética, que se lê como uma versão para o mundo real de um dos romances distópicos de George Orwell.
Putin é um filho tardio - talvez adotado - de um casal de veteranos do cerco de Leningrado, um dos momentos mais trágicos da Segunda Guerra Mundial. Cresceu como um jovem mimado, ainda em que um cenário de privações e escassez. Seus "luxos" eram itens como relógios de pulso. Ele não se mostrou particularmente inteligente, mas desde a adolescência revelou grande concentração e energia, mesmo que com um temperamento explosivo e propenso a brigas.
Ingressou na KGB provavelmente ainda durante a faculdade de Direito. Sua carreira na instituição foi pouco glamourosa: serviu em funções burocráticas na União Soviética e por alguns anos em um posto sem destaque na Alemanha Oriental, na provinciana cidade de Dresden.
Ao retornar para a URSS no fim da década de 1980, Putin era tenente-coronel da KGB e sorte e oportunidade lhe colocaram num posto-chave nos conturbados anos de transição democrática: representante da instituição na Universidade de Leningrado, onde um dos professores, o carismático Anatoly Sobchak, tornou-se o primeiro prefeito eleito da cidade, e Putin virou um de seus principais assessores. Dali rumou para um cargo semelhante junto ao presidente Boris Ieltsin, estabelecendo-se como seu homem de confiança e sucessor, já no contexto da severa crise econômica e política dos anos 90.
Gessen retrata Putin como um homem simples, oportunista e desconfiado, sem grandes pretenções ideológicas ou carisma. O retrato das instituições de segurança que o formaram, e cujo aparato ele promoveu sem cessar na Rússia pós-URSS. Ele acredita em governo forte, centralizado e ordem - características que julga incompatíveis com a democracia.
A autora enumera como Putin destruiu as fragilíssimas liberdades políticas que existiam na Rússia: o Estado passou a controlar as redes de TV, e a intimidar (ou mesmo assassinar) repórteres de jornais, revistas e sites. Governadores passaram a ser nomeados pelo Kremlin e partidos de oposição tiveram seus registros negados, sob alegação de desrespeito a uma complexa legislação eleitoral. Muitos foram presos, em processos por corrupção - endêmica e largamente praticada por todos os atores políticos. Empresários em desavença com o regime foram encarcerados e suas firmas expropriadas em benefício dos aliados do Kremlin - incluindo o homem mais rico do país, o magnata do petróleo Mikhail Khodorkovsky.
Os capítulos mais chocantes do livro tratam dos massacres cometidos pelo governo russo nas duas guerras da Chechênia e na orquestração de supostos atentados terroristas, que mataram centenas de pessooas para que Putin pudesse aparecer como o salvador da pátria, que combateria os inimigos com mão dura. Há também uma longa lista dos desafetos que teriam mortos sob ordem do presidente ou de seus aliados, como o ex-agente da polícia secreta Alexander Litvinenko e a jornalista Anna Politkovskaya.
Só nos trechos finais do livro Gessen se permite algum otimismo, narrando a ascensão do novo movimento democrático na Rússia, que ao longo do último ano organizou as maiores manifestações no país desde o fim da URSS. Elas não foram capazes de impedir uma nova eleição de Putin como presidente, mas ao menos dão algum alento na perspectiva de que algum dia as coisas possam mudar para melhor.
6 comentários:
Os atentados referidos no penúltimo parágrafo não foram menos orquestrados do que a própria guerra na Chechênia - àquela época, um país independente de facto, tendo humilhado duas vezes Yeltsin nos nos 90.
Como diria o argentino Ariel Palacios, correspondente da Globo em Buenos aires, o "intenso approach" de Boris Nikolaievitch pela vodca minou sua saúde - e alguém precisava assumir o comando do barco antes que uma tempestade pior que a Chechênia se aproximasse.
Nada como um ex-espião, obcecado pela forma física e pela mão de ferro, para reerguer a Rússia - ao menos aos olhos dos russos.
O Ocidente, por sua vez, jamais imaginou que aquele antro de neo-comunistas, lixo radioativo, mafiosos, prostitutas (Natasha é gíria para mulheres de difícil vida fácil em vários países) voltaria a dar as cartas no cenário geopolítico internacional.
Em suma, não se preparou para a coroação do "czar" Vladimir.
Salve, Diogo.
A Chechênia é um território muito pequeno - cerca de 400 mil habitantes. O problema é o efeito dominó que sua independência teria para as outras 70 etnias minoritárias que compõem a federação russa.
Com suas riquezas petrolíferas e arsenal nuclear, a Rússia continua a ser um ator importante na política internacional, mas numa esfera bem mais reduzida do que no passado.
abraços
Apenas ressaltando que a Duma de EStado, recentemente, aprovou eleições diretas para governadores.
Ótima notícia!
abraços
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