domingo, 6 de maio de 2007

Futebol e Política na Argentina



Virei o gigolô da Argentina, ganho a vida desnudando o país para meus compatriotas. Encontrei uma mina de ouro, pois é enorme nosso desconhecimento até dos fatos básicos sobre nosso parceiro econômico mais importante na América Latina. Nas minhas palestras e artigos tenho destacado os aspectos cotidianos da vida argentina, estabelecendo suas relações com a política. Foi o caso do texto sobre a memória com relação à ditadura. E também o da palestra que dei na sexta-feira, “Futebol e Política na Argentina”, no âmbito da Semana de Esporte e Sociedade do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes.

Como sou professor da casa, estava entre compadres. Falei na mesa sobre “diplomacia dos gramados”, dividindo o palco com João Daniel, amigo de longa data, e figura mitológica no meio carioca das relações internacionais. Há cerca de um ano Daniel e eu escrevemos um artigo sobre futebol e política externa brasileira, texto que ele apresentou com muito brilho e bom humor. Não nos víamos desde minha partida para Buenos Aires e foi o reencontro feliz de dois irmãos de armas.

Coube a mim a exposição sobre a Argentina, mas disse ao público que falaria menos de diplomacia e mais das relações do futebol com a política doméstica no país vizinho. Me concentrei nos governos de Perón e na ditadura militar de 1976-1983, discutindo as tramas de poder e clientelismo entre as autoridades e os clubes mais importantes. Claro que o ponto mais importante foi a realização da Copa do Mundo de 1978 e o modo como os militares a transformaram num grande instrumento de propaganda para tentar legitimar o regime autoritário.

Ressaltei a coincidência macabra de que o Estádio Monumental do River Plate, onde ocorreram os jogos mais importantes, fica a cerca de 800 metros da Escola de Mecânica da Armada, o pior centro de torturas (os argentinos dizem “campo de concentração”) do período. E isso num momento em que a repressão estava em pleno andamento. Recomendei o excelente romance de Martín Kohan, “Duas Vezes Junho”, que utiliza o futebol como metáfora das crises argentinas e é ambientado nas Copas de 1978 e 1982.

O trecho da minha palestra que provocou o maior interesse do público foi minha comparação entre Maradona e Pelé. Abordei a eterna rivalidade entre os dois pela perspectiva do mito: qual a imagem pública que os dois assumem? Disse que Pelé simboliza o lado conciliador da política brasileira, tendo atuado inclusive como mediador internacional na guerra civil da Nigéria. É um negro que jamais aborda a discriminação racial e que usou seu prestígio de atleta para desenvolver uma bem-sucedida carreira empresarial. Foi até ministro de Estado. Maradona, por contraste, é o gênio irreverente e rebelde, amigo de Chávez e de Fidel. Mas seu talento convive com uma pulsão autodestrutiva quase incontrolável, ainda que balanceada pela capacidade de recomeçar do fundo do poço e reinventar-se. Qualquer semelhança com a história recente da Argentina não deve ser mera coincidência.

Lembrei a contribuição de Maradona para a teoria das relações internacionais, por sua celébre declaração: “Fiz o gol de mão contra os ingleses porque eles nos roubaram as Malvinas”. Isso na Copa de 1986, apenas quatro anos depois da guerra e num momento que as relações diplomáticas entre a Argentina e o Reino Unido ainda estavam rompidas.

Falei ainda sobre as torcidas organizadas argentinas, as barras bravas e o papel que desempenharam na rede clientelista do peronismo na Grande Buenos Aires. Terminei chamando a atenção para a figura de Maurício Macri, um rico empresário que virou presidente do Boca Juniors e agora quer presidir a República. Sim, ele se inspira em Berlusconi. Pobre Argentina. Mas até aí, quem somos nós para lamentar, com nosso Eurico Miranda?

O evento foi muito divertido para mim, e acredito que os alunos também tenham aproveitado. Mais do que tudo, faz parte de uma perspectiva que trabalho com carinho: aproximar a ciência política do cotidiano e pensá-la como um conhecimento alegre, do mundo da vida.

Ah, sim. Encerrei com um episódio que aconteceu comigo e com uma amiga num café de Buenos Aires, no qual havia duas bandeiras entrelaçadas, da Argentina e do Brasil. Perguntamos ao garçom o porquê daquilo e ele nos respondeu que elas foram colocadas durante a Copa de 2006 e os clientes gostaram, de modo que foi decidido que elas ficariam por ali: “Além disso, somos irmãos”. É verdade, e isso é o que basta.

6 comentários:

Patricio Iglesias disse...

É imposível para mim näo comentar os artigos sobre a Argentina, é mais forte que mim :)
Fiquei impresionado pela comparaçäo, demasiado exata, entre os "ídolos" e seus respectivos países. É terrível pensar que Argentina, com 5 prémios Nobel, escretores, académicos e deportistas "sanos" é conhecida internacionalmente por um cocainómano quase iletrado involucrado em toda classe de conflitos, aunque com o tempo reconheci seu lado positivo, pois saiu dum bairro muito pobre.
Falando do futebol, me fiz rir que Lula, quando estivo faz umas semanas aqui, dixo que Argentina e Brasil só deberiam ser riváis no esporte, como säo riváis BOCA E RACING!!! Desculpe que seja seu presidente, mas se ele, sendo uma figura "do povo" näo conhece os times de futebol argentinos, Qué sabrá sobre a história, geografia, etc. de nosso pais?
Saludos, meu amigo!

Patricio Iglesias disse...

Olvidava. Macri näo é mais candidato a presidente, deixou o lugar a L. Murphy e Lavagna porque savia que perderia e um asesor que tem lhe fiz ver que nenhum presidente escolhido direitamente perdiu anteriormente uma eleiçäo. Está compitendo pela jefatura de goberno na cidade de Bs.As.
Saludos, amigo argentinólogo (qué ciëncia difícil a sua...)

Maurício Santoro disse...

Hola, mi caro.

Tenho para mim que Maradona é um "cara do bem", ainda que um tanto confuso. É como um amigo com problemas, que queremos ajudar.

Não se espante com as gafes do meu presidente. Durante a campanha presidencial de 2002 ele disse que a Argentina era uma "republiqueta". Essas coisas não se perdoam.

O Macri resolveu então concorrer à cidade de Buenos Aires? Nossa, deve estar uma confusão danada entre ele, o Telerman e o Filmus.

Abraços

Anônimo disse...

Oi Maurício:
sou leitor bissexto daqui e, vendo esse post hj, resolvi dar uns pitacos. sou filho de argentino e tb fã do futebol de lá. lembro como se fosse hj esse jogo com a Inglaterra, do gol de mão e do outro gol, q valeu pelos dois - e olhe q eu tinha apenas dez anos na época. mas vibrei com aquele título quase como se fosse um título da seleção canarinho.
a distinção q vc fez entre Pelé e Maradona foi perfeita. são duas personalidades completamente distintas, antagônicas até. mas o Brasil tb tem o seu futebolista "maldito", e dos grandes: Garrincha. Que, aliás, até morreu em decorrência do alcoolismo.
pra terminar, uma piadinha sobre essa história de "países irmãos".
O presidente argentino estava no Brasil e um dos compromissos era uma visita oficial a uma escola primária, lá em Brasília mesmo. Preocupada com a possibilidade de seus alunos falarem alguma bobagem na hora da recepção, a professora decide instruir direitinho os pirralhos antes sobre o q devem dizer ao presidente visitante. Lá pelas tantas, Joãozinho, a estrela da piada, diz q vai falar que a Argentina é um "país irmão" do Brasil. A professora, fica aliviada (já q tinha certeza q Joãozinho ia falar alguma barbaridade), mas pondera: - muito bem, Joãozinho, nós não temos mesmo motivos pra desgostar dos argentinos... mas, tb não precisa dizer q são "países irmãos", diga apenas q são "países amigos", tá bom?
Joãozinho então retruca: - amigo não, professora, irmãos mesmo. é q amigo a gente escolhe, né?
=)
PS: tb sou cientista político e comecei um blog há pouco tempo. dê uma passada por lá qq dia desses!
(drambrosini.blogspot.com)
abs,

Maurício Santoro disse...

Salve, Drambosini.

Usei muito o Garrincha como exemplo de uma espécie de síntese do espírito trágico que às vezes une Argentina e Brasil... Não por acaso o anjo de pernas tortas é muito admirado entre os vizinhos.

Vou dar uma olhada no seu blog e depois comento por lá.

Abraços

Fuera de juego disse...

Caro Mauricio....
Estou no rpimeiro ano do curso de História da USP e,coincidentemente,o tema de meu trabalho de América Independente é:"Futebol e política na Argentina:do peronismo à ditadura"...
Estou procurando dar um enfoque sobre o grau de apropriação por parte dos governantes de cada período da popularidade do futebol,se preponderou o uso de uma popularidade já existente,o peso que as ações tomadas tiveram,como a realização da Copa do Mundo de 1978,o posicionamento político de alguns dos principais jogadores,uma breve comparação com o tratamento dos militares no Brasil...
Gostaria de saber se poderia indicar bibliografia para o trabalho....