quinta-feira, 19 de junho de 2008

O Mal-Estar da Europa



Dois acontecimentos da última semana chamam a atenção para as dificuldades da União Européia em se adaptar às recentes transformações da economia global: a rejeição da Irlanda ao Tratado de Lisboa e as duríssimas diretrizes sobre imigração. Alguns analistas apontam esta crise como uma das mais sérias no processo de integração. Tenho minhas dúvidas, mas com certeza os problemas atuais apontam para um certo mal-estar europeu com relação ao lugar do continente na nova ordem mundial que se desenha com a ascensão da China e da Índia e os impasses dos Estados Unidos.

Ao longo desta primeira década do século XXI, a União Européia tomou várias medidas para tentar fortalecer a si mesma como uma instituição capaz de ter papel de liderança na política internacional. Um elemento central dessa estratégia era a aprovação de algum tipo de pacto constitucional que reforçasse os poderes das instituições de Bruxelas diante dos países que integram a UE. No entanto, o Tratado Constitucional de 2005 foi rejeitado em referendo pela França e pela Holanda. O Tratado de Lisboa, de 2007, era uma versão reduzida e mais simples, que visava a contornar a oposição a arranjos desse tipo. Não deu certo: a população da Irlanda o vetou em votação.

A rejeição surpreende porque a Irlanda é um dos países que mais se beneficiou com o ingresso na União Européia. O país das fomes coletivas e da pobreza em massa se tornou um dinâmico pólo exportador de serviços para os vizinhos europeus, auxiliado por boas políticas de Estado nos campos fiscal e educacional. Ainda assim, seus habitantes se manifestaram contra a UE, no que tem sido interpretado como uma crítica à burocracia complexa e distante de Bruxelas.

Como o Tratado de Lisboa precisa ser aprovado pela unanimidade dos membros da UE, criou-se uma crise bastante séria. Hoje e amanhã os líderes europeus estarão reunidos em cúpula de emergência para tentar solucionar a questão. O cientista político brasileiro José Luís Fiori publicou artigo pessimista sobre as desventuras européias:

Porque por trás deste impasse, existe um problema muito mais grave: o fato que a União Européia seja prisioneira, há muito tempo, de uma armadilha circular. Ela precisa de um poder centralizado, mas seus principais estados impedem este processo de centralização, porque, no fundo, a Europa está cada vez mais dividida, entre os projetos estratégicos de seus três principais sócios, a França, a Alemanha e a Inglaterra. Depois do fim da Guerra Fria e da reunificação da Alemanha, ela se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente, e passou a ter uma política externa independente, centrada nos seus próprios interesses nacionais, que incluem o fortalecimento dos seus laços econômicos e financeiros com a Europa Central, e com a Rússia. Este comportamento alemão acentuou o declínio da França, que tem cada vez menos importância internacional, e favoreceu o fortalecimento do “euroceticismo ” britânico, reacendendo a competição e a luta hegemônica dentro da União Européia, e trazendo de volta velhas fraturas e divisões que estiveram presentes, em suas infindáveis guerras seculares.

Em meio a tantas tensões, a questão da imigração - legal e ilegal - se torna cada vez mais explosiva. Há dez anos a UE tenta criar política comum de asilo e imigração e a ascensão de governos de direita na maioria do continente mudou o equilíbrio de forças. Uma coligação entre conservadores, liberais, nacionalistas e mesmo alguns partidos socialistas no Parlamento Europeu aprovou ontem rígida diretriz sobre o assunto, que estabelece a possibilidade de que imigrantes ilegais sejam detidos por até um ano e meio em "campos de detenção". A Espanha oferece pagamento para os imigrantes legais que queiram deixar o país e o Reino Unido aprovou lei que multa as empresas que contratem os ilegais.

A diretriz aprovada pelo Parlamento Europeu provou enorme repercussão internacional, com mensagens de condenação vindas dos países da América Latina, da Igreja Católica e de organizações humanitárias. Não acredito que tais pressões revertam a decisão da UE, mas demonstram a perigosa tendência ao isolamento do bloco europeu.

7 comentários:

P.R. disse...

a ligação entre chefe e estagiária é eterna, rs! acabei de postar um tema parecido. amei seu texto!

maurício querido, queria ter ido à sua defesa, mas não consegui! aposto que foi um sucesso. parabéns pela conquista!

beijos
pati

SAM disse...

Como não poderia deixar de ser, aqui estou eu para comentar.
Acabei de ler no G1 (incrível não foi no ABC, no Público ou no Zeit) sobre a nova decisão (http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL607978-5602,00.html) e me parece estranha.

Você trouxe uma visão muito mais completa que muitos Mários Soares e afins sobre o assunto. A Irlanda ganhou muito e, feliz ou infelizmente, tem previsto na Constituição que todos os assuntos europeus serão referendados, fazendo-a, neste caso, a única nação europeia a ter votação popular sobre o atual Tratado.

Acho, por um lado, uma pena que um país possa ter o poder de decidir pelos 26, mas também, não critico (são as suas regras internas e as respeito). O que não consigo concordar é essa visão anti-europeísta de muitos que votam por votar, mesmo sem conhecer os documentos em causa. O Tratado Constitucional de Roma era um livro gigantesco que os franceses e os holandeses, concerteza, não leram na íntegra; então, como é que o votaram num ou noutro sentido?
A mesma coisa com a Irlanda.

Mas, a forma dos líderes interagir também poderá ser um erro se avançarem com a coisa assim. Neste momento, grandes decisões devem ser unânimes e, por isso, se um país é contra o (possível) novo processo de tomada de decisão (a tal das duas maiorias), não se pode fingir que as decisões são por maioria: hoje, elas não são. E nem poderão ser se todos não concordarem...

Bem, críticas à parte, eu até sou a favor do Tratado de Lisboa. Mas, não me agrada a forma como as coisas se querem implementadas...

Sobre a questão da imigração, gostei da posição de um senador uruguaio (meu conterrâneo) que afirmou levar o tema à sede das Nações Unidas. Tampouco creio que o Parlamento Europeu volte atrás, mas espero que alguma coisa seja feita. 18 meses? Absurdo!


(por favor, Maurício, desculpe-me mais esse longo comentário)

Maurício Santoro disse...

Salve, Pat.

Só com as estagiárias competentes! :-) Bem, como você notou no seu texto, o problema se espalha por vários países europeus (e por vários partidos políticos, acrescento) e realmente não vejo perspectivas de melhoras no curto prazo.

Senti sua falta na defesa, acho que você teria se divertido! :-)

Caro Sam,

seus comentários são sempre bem-vindos. Concordo com você: as pessoas votam sem nem saber direito sobre o que optam, movidas muito mais por um sentimento de rejeição à Europa.

Me espantei com fotos que vi na imprensa européia das pessoas nos pubs irlandeses, vibrando com a rejeição ao Tratado, como se fosse um jogo de futebol. E isso num país que tanto se beneficiou da integração à UE!

Espero que as ações internacionais possam ao menos criar uma certa dor de cabeça para a UE.

Abraços

Rodrigo Cerqueira disse...

Maurício,

discordo um pouco do Fiori porque vejo na retração da França um reflexo direto de sua política e seus governos nos últimos 20 anos, principalmente após o fim da era Miterrand. A França se vê enredada por debates de fechamento de fronteiras, controle de imigração, leis contra símbolos religiosos, e tem se descuidado de seu papel no sistema europeu e no mundo. Mas Sarkozy tem indicado alguns passos em direção contrária a isso e o protagonismo francês pode retomar seu fôlego, pelo menos no contexto europeu.

Já a questão da Irlanda, concordo com sua análise, apenas acrescento o fato de que, mais uma vez, a política interna dos Estados tem grande influência nos assuntos comunitários. Um pouco mais de empenho do governo irlandês teria levado, provavelmente, à aprovação do tratado. Mesmo assim, o baixo quorum pode servir novamente para que se contorne o entrave e se ponha a proposta novamente em votação. A ver.

Grande abraço.

Maurício Santoro disse...

Salve, Rodrigo.

Minha tendência é ver as dificuldades dos franceses muito mais em termos de se adaptar ao novo cenário de uma Alemanha reunificada, e que retomou sua antiga área de influência na Europa Central.

A França assume agora a presidência da UE, mas em meio a tantos problemas com a imigração e o próprio processo de integração, é difícil imaginar que Sarkozy conseguirá fazer deste momento plataforma para uma liderança internacional mais ambiciosa, como parecia ser sua intenção à primeira vista.

Abraços

SAM disse...

Por aqui também se diz muito sobre a presidência rotativa francesa. O que mais se ouve é que Sarkozy, com o não irlandês, está como um ator que já não tem um guião a seguir.

De fato, a sua situação é difícil, mas ele é demasiado inteligente para não saber aproveitar a sua presidência da União. Afinal de contas, é ele um dos (três?) potenciais Presidentes caso as novas regras venham a ser aprovadas.

Maurício Santoro disse...

Caro Sam,

é boa a metáfora. E Sarkozy é bom improvisador, como mostrou com seu romance-relâmpago com Carla Bruni. O discurso do presidente francês no parlamento de Israel foi muito bom, será uma prévia de seu desempenho à frente da UE?

Abraços