quinta-feira, 31 de julho de 2008
O Governo Brasileiro e as FARCs
A revista colombiana "Cambio" saiu nesta quinta com matéria de capa acusando altos funcionários do governo brasileiro de manter relações com as FARCs. Segundo a publicação, emails encontrados no laptop de Raúl Reyes, o líder guerrilheiro morto no ataque ao Equador, mostram o envolvimento com o grupo de "cinco ministros, un procurador general, un asesor especial del Presidente, un viceministro, cinco diputados, un concejal [vereador] y un juez superior [desembargador]". A informação teria sido mantida em segredo pelas autoridades da Colômbia para não prejudicar os excelentes laços comerciais entre os dois países.
A denúncia é menos bombástica do que parece à primeira vista. O material divulgado pela revista mostra apenas diálogos e conversas entre líderes da guerrilha e autoridades brasileiras, alguns tragicômicos como o pedido de um desembargador gaúcho para visitar um acampamento das FARCs - presumo que os vôos para a Disneylândia estivessem lotados naquele verão... Não há denúncias de ajuda financeira ou militar do governo do Brasil à guerrilha colombiana. Pelo contrário, o ataque ao Equador foi executado com aviões da Embraer...
Por que a imprensa colombiana divulgou as acusações neste momento? Meu palpite é que as informações foram vazadas pelo governo Uribe no contexto mais amplo do início da campanha diplomática para desmantelar a rede internacional de apoio às FARCs, sobretudo na Europa. O objetivo é aproveitar as vitórias contra a guerrilha no plano interno para isolá-las externamente.
Neste cenário, as posições moderadas do governo brasileiro com relação às FARCs são incômodas para Uribe. É constrangedor que funcionários do Estado se reunam com membros de uma organização ilegal que diversos países próximos ao Brasil classificam como "terrorista". A Constituição elenca o repúdio ao terrorismo como um dos pilares da política externa brasileira, embora a realidade das disputas de poder muitas vezes obrigue à manutenção de diálogos com grupos como o Hezbolá - que atua como partido político no Líbano, com deputados e ministros - e à tentativa de encontrar um modus vivendi com as FARCs, para evitar conflitos na turbulenta zona de fronteira entre Brasil e Colômbia e garantir proteção ao número crescente de empresas brasileiras que operam em território controlado por guerrilheiros.
Em certos círculos da direita brasileira ganhou força a teoria conspiratória que transforma o governo Lula no principal sustentáculo da guerrilha colombiana (ou vice-versa, dependendo do entusiasmo do analista). O veículo para essa influência seria o Foro de São Paulo, a rede de partidos e movimentos da esquerda latino-americana. Em minha perspectiva, o Foro foi criado como uma tentativa desses grupos em redefinir seu lugar no mundo após a queda do Muro de Berlim e o colapso dos regimes comunistas na URSS e na Europa.
A idéia era boa, mas foi absurdo ter incluído movimentos armados na iniciativa. O Fórum Social Mundial, por exemplo, exclui tais grupos. Muito sofrimento ocorreu na América Latina em função de violência política. Não faria mal algum declarações de líderes de peso no continente, como o presidente Lula, repudiando com veemência essas estratégias criminosas. Como diz o cientista político Juan Linz, a democracia só se consolida quando vira "the only game in town", isto é, a única via legítima para chegar ao poder.
quarta-feira, 30 de julho de 2008
O Não Chinês e o Fracasso de Doha
O mundo está em crise – recessão nos EUA, disparada do petróleo e do preço dos alimentos – e nessa conjuntura de medos e reações protecionistas seria difícil esperar um bom resultado na Rodada Doha da OMC. Ainda assim, eu acreditava que os principais negociadores do comércio internacional chegariam pelo menos a um acordo para salvar as aparências e manter a confiança no multilateralismo. A principal lição do fiasco: a China se estabeleceu como o fiel da balança, e resolveu jogar duro.
A geografia econômica mundial tem dado guinadas rápidas e surpreendentes nesta década. Até 2003, as principais decisões na OMC eram tomadas pelo Quad (EUA, União Européia, Canadá e Japão). A partir da conferência de Cancún, Índia e Brasil se estabeleceram como atores globais nas negociações de comércio. Nesta última sessão em Genebra, o núcleo duro foi formado pela soma desses países, mais China e Austrália.
Muitos temas dividiram os principais negociadores: subsídios agrícolas, tarifas para produtos industriais, propriedade intelectual, segurança alimentar. Ao fim de longo e tenso processo de buscar consensos, a postura rígida da China impediu que se fechasse um acordo. O pomo da discórdia foi a insistência chinesa em proibir importações de alimentos, para garantir preços razoáveis – e estabilidade política, claro – a sua massa de agricultores pobres.
A China entrou para a OMC somente em dezembro de 2001. O perfil de seu ministro do Comércio, Chen Deming, ilustra a extraordinária trajetória do país: filho de intelectuais, ele foi perseguido durante a Revolução Cultural e enviado para o campo. Tornou-se líder de um grupo de camponeses por sua habilidade em dirigir tratores e organizar reuniões. Com as reformas de Deng Xiaoping, entrou na vida universitária, cursou pós-graduação em Harvard, e fez carreira no governo. Um sujeito que passou por tudo isso não faz concessões a troco de nada. Basta vê-lo na foto acima, com a cara de quem diz “Na-na-ni-na-não”.
Doha foi muito mais do que uma queda de braço entre Norte e Sul. Os países em desenvolvimento negociaram divididos. O Brasil teve postura moderada e se esforçou para fechar acordos, mas Índia e China mostraram-se bem mais relutantes em abrir mão de medidas protecionistas. Compreensível, por diversas razões: sua estratégia de abertura é muito mais lenta e restrita; e precisam lidar com massas camponesas muito pobres. Mesmo dentro do Mercosul, a Argentina recusou diversas propostas brasileiras, para irritação e preocupação de vários dos meus amigos diplomatas.
O Brasil foi bem em Genebra. Muita polêmica inútil foi gasta na imprensa daqui sobre a declaração do chanceler Celso Amorim, que acusou os países ricos de usarem táticas de propaganda de Goebbels. Sergio Leo matou a questão: “Acho que Amorim convocou os nazistas ao se ver acuado e ameaçado na posição de negociador representante dos países em desenvolvimento. Tentou se credenciar como intérprete dos radicais, chamou de volta a atenção para si (estava perdendo público e o apoio das bases), e continua reinando no palco de Doha. “ Mais constrangedor, a meu ver, foi o bate boca envolvendo os ministros das Relações Exteriores e da Agricultura.
Agora, que diabos, todo o mundo (literalmente) terá que buscar alternativas à OMC. Acordos bilaterais e regionais, por exemplo.
terça-feira, 29 de julho de 2008
A Anatomia do Fascismo
Fazia tempo que não mergulhava em um livro de história tão bom quanto “Anatomia do Fascismo”, de Robert Paxton. Pelo brilhantismo da análise e beleza literária do texto, o trabalho do professor da Universidade Columbia se compara ao do mestre Eric Hobsbawm. O objetivo da obra de Paxton é identificar os elementos comuns ao ciclo de ascensão, consolidação e queda de diversos movimentos fascistas, com ênfase na Itália e Alemanha, sendo a França um contra-exemplo de país onde essa tendência, embora presente, não chegou a triunfar.
“O fascismo foi a grande inovação política do século XX, e também a origem de boa parte de seus sofrimentos”, escreve Paxton. Definir “fascismo” é notoriamente difícil, e o autor optou por fazê-lo através da enumeração de características presentes nesses regimes, como a primazia do grupo sobre o indivíduo, a identidade coletiva construída a partir do sentimento de ser vítima de inimigos internos ou externos, doutrinas que pregam a “purificação” da raça/nação/cultura, eliminando os segmentos sociais vistos como corruptores, a defesa da superioridade da intuição do líder sobre a razão, um sentido de missão histórica e povo eleito que tudo justificaria.
O fascismo difere de ditaduras comuns, como aquelas da América Latina e da África, ou a Espanha de Franco e o Portugal de Salazar, porque aspira a mobilizar a população, ao passo que regimes autoritários tradicionais querem apenas manter o povo em silêncio, e em casa. Paxton estabelece um vínculo instigante entre democracia e fascismo, afirmando que este nasce como a manipulação sombria da política de massas e da reação à chamada “primeira onda de globalização”, a partir da década de 1880. Seus intrumentos: uso do nacionalismo exacerbado, do anti-semitismo e outras formas de racismo. Há muitos precursores aos fascistas, como a Klu Klux Klan nos EUA, o general Boulanger e a direita radical anti-Dreyfus na França, Karl Lueger em Viena (um dos principais inspiradores de Hitler).
O que transformou esses pólos de extremismo em sistemas políticos foram os traumas resultantes da Primeira Guerra Mundial, das revoluções comunistas (completadas ou abortadas) na Rússia e na Europa e do descrédito do Estado liberal, centrado na defesa dos direitos individuais. Em tais circunstâncias, os partidos políticos conservadores e respeitáveis se dispuseram a abrir caminho para aventureiros como Hitler e Mussolini, com suas novas táticas de brigas de rua, camisas coloridas e espancamento de minorias. A direita tradicional, inclusive os grandes grupos empresariais, acreditou que poderia manipulá-los e aceitá-los como o mal menor diante do comunismo. Isso funcionou na França e na Hungria, mas fracassou tragicamente na Itália e na Alemanha.
Um dos méritos do livro é estudar a estratégia partidária e eleitoral de Hitler e Mussolini, mostrando como mudaram e adaptaram sua maneira de agir, para ampliar sua base de apoio e se assenhorar do poder. Paxton analisa a Itália e a Alemanha como “Estados duais”, nos quais a estrutura habitual do serviço público convivia de maneira tensa com os partidos totalitários. Entre os italianos, a presença da monarquia e da Igreja Católica serviu como freio para muitas das intenções dos fascistas. No caso alemão, o domínio nazista foi muito mais amplo, encontrando resistência signficativa em poucas instituições. Em ambos os países, a violência atingiu proporções aberradoras nas suas aventuras bélicas e imperiais, como a Etiópia ocupada pela Itália e a Europa Oriental e a União Soviética invadidas pela Alemanha.
É bastante conhecido que o fascismo italiano não tinha o anti-semitismo como caráter central, ao contrário do nazismo (embora ele estivesse presente, sobretudo a partir das leis de 1938), e tendia a discriminações mais voltadas para questões de cultura e de história do que biologia e raça. Paxton sintetiza muito bem as diferenças, e apresenta uma hipótese fértil para examinar o Holocausto como uma política imposta “de baixo para cima”, das ações da SS nos territórios ocupados ao Leste.
Os últimos capítulos do livro são dedicados a estudar o fascismo fora da Europa – nos EUA, Japão, Argentina, Brasil e África do Sul, e a apontar sua permanência na Europa contemporânea. Paxton afirma que embora o fascismo não mais exista como sistema dominante, elementos seus continuam bastante presentes, agora reiventados como ojeriza aos imigrantes, mais anti-islâmico do que anti-semita e persistentemente hostil ao liberalismo econômico. Ele observa que é curioso que os programas de expansionismo territorial tenham sido abandonados (com exceção dos Bálcãs) e que agora a extrema-direita defenda a secessão de pequenas regiões, como o Norte da Itália ou a área flamenga da Bélgica.
segunda-feira, 28 de julho de 2008
XXY
Difícil escrever sobre “XXY” sem trair a delicada beleza deste filme. Começo pelo fundamental: uma obra assim só é possível pela reunião de uma diretora talentosa (em seu primeiro trabalho!) como Lucía Puenzo com o contexto da maturidade artística alcançada pelo cinema argentino contemporâneo. Lamento dizer que no Brasil ou nos EUA, provavelmente descambaria para a escatologia, perdendo o fino equilíbrio que é o encanto da trama.
O filme conta a história de Alex (desempenho impressionante de Inés Efron), uma adolescente que vive com os pais num pequeno vilarejo de pescadores, no Uruguai. A família deixou Buenos Aires “para fugir de certos tipos de pessoa” e vive de modo quase isolado, com pouco contato social. Sabe-se que Alex tem algum tipo de difunção, de caráter sexual, que a faz ser vista como uma espécie exótica no povoado, motivo de risos e escárnio, mas também de fascínio. As tensões latentes explodem quando um casal de amigos e seu filho, também adolescente, vão passar alguns dias em visita. O marido é cirurgião plástico, tem prática em consertar “aberrações”, e observa Alex com olhar cliníco. Mas seu filho, um rapaz tímido e inseguro, se sente atraído pela moça.
O desenrolar desse enredo é uma pequena e bela fábula sobre identidade, diferença e os papéis sexuais que somos forçados a desempenhar em sociedade, destacando os momentos cruciais e dolorosos do despertar dos desejos na puberdade. O que é normalidade, e o que é castração? Qual o preço das escolhas que temos que fazer? E se – como se questiona Alex, em determinado momento – não há o que escolher?
Entre os pólos opostos que se debate Alex, estão o cirurgião, ávido por usar seus instrumentos e normalizar o que escapa à sua definição de perfeição, e o pai da moça, um biólogo interpretado por Ricardo Darín que tem um grande respeito pela natureza, mesmo por aquilo que não consegue compreender, e enxerga a beleza onde outros vêem apenas desvio.
Para além da temática sexual, “XXY” é uma bonita história sobre as relações entre pais e filhos, com poucos diálogos – muito do que é mais importante no filme se diz através de ações, gestos, imagens. Um trabalho primoroso, com a curiosidade de que a cineasta Lucía Puenzo é filha do diretor Luis Puenzo, de “A História Oficial”. Tal como sua heroína, Lucía afirmou seu direito a ser diferente e única, realizando uma obra muito particular e em tudo diferente do cinema político de seu pai.
sexta-feira, 25 de julho de 2008
Ich bin Obama
Não há precedentes para a recepção entusiasmada que Barack Obama recebeu dos 200 mil alemães que se aglomeraram em frente à Coluna da Vitória para ouvi-lo. Muito se comparou sua visita àquela de John Kennedy, e poderíamos citar também a chegada de Woodrow Wilson à Europa, ao fim da Primeira Guerra Mundial, mas as analogias são imprecisas: ambos eram presidentes cuja presença em meio a sérias crises aparecia como a única esperança de salvação. O senador americano é apenas o candidato favorito ao posto e chega em tempos de paz.
Ou quase, pois os europeus lutam combates distantes nas planícies iraquianas ou nas montanhas afegãs. A Aliança Atlântica está dividida diante dos problemas da OTAN, das disputas comerciais na OMC e das abordagens divergentes para enfrentar o aquecimento global e o terrorismo. Obama foi vago sobre os temas polêmicos, mas sua mensagem subliminar é poderosa: me importo com vocês, sou simpático às suas dificuldades e me esforçarei para compreendê-los. Grande avanço com relação às eleições de 2004, quando os republicanos diziam que o candidato democrata John Kerry “parecia francês”, e a expressão significava um insulto.
A visita a Berlim foi o ponto alto da turnê mundial de Obama, um genial golpe de marketing para mostrá-lo como Estadista e líder. Esteve no Iraque e defendeu a retirada das tropas americanas em um ano e meio; no Afeganistão afirmou a centralidade daquela guerra no combate ao terrorismo; no Oriente Médio, assumiu compromisso de mediar a paz entre Israel e os palestinos; na Europa, procura “derrubar muros e construir pontes”.
É claro que modelou sua passagem na capital alemã pela célebre viagem de Kennedy (foto abaixo). JFK visitava uma cidade rachada em duas no momento mais tenso da Guerra Fria, e seu famoso discurso Ich bin ein Berliner, Sou um berlinense, era a garantia da defesa militar da Alemanha Ocidental contra a URSS. A mensagem de Obama é outra: a de que é um cidadão do mundo, alguém com mentalidade ampla e capaz de liderar os Estados Unidos num cenário de instabilidade e crise.
O senador de 47 anos parece ainda mais jovem e dinâmico diante da velharia que atualmente governa a Europa – me refiro às idéias e à prática política, mais que à faixa etária. Obama está se tornando algo como um político mundial, um presidente sem fronteiras, um símbolo de esperança e transformação para muitas pessoas em países diferentes. Até no meu próprio bairro (Santa Teresa, Rio de Janeiro) já vi adesivos de carro com os dizeres “Obama 2008”. Reproduzo o comentário de um excelente jornalista espanhol, Lluís Bassets do El País:
Obama es el presidente que más se parece a América y la América de Obama es la que más se parece al mundo, plural, joven, libre, ambiciosa, luchadora. Sólo este mitin de ayer en Berlín es el mayor acto de relaciones públicas americano de la historia reciente. Obama está restituyendo a Estados Unidos lo que Bush le ha quitado: la estima de quienes aman la libertad en el mundo, el aprecio y la amistad de los europeos.
quinta-feira, 24 de julho de 2008
A Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência
Passei a semana em reunião do Conselho Nacional de Juventude e como sempre foi uma ocasião para excelente para me informar de várias coisas que comprovam, uma vez mais, o quanto a fronteira entre relações internacionais e política doméstica ficou tênue. Uma delas foi a aprovação pelo Congresso da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – a primeira a entrar no ordenamento jurídico brasileiro com o status de norma constitucional. Ouvimos excelente exposição da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, cujos negociadores nos contaram como foi formulada a Convenção e quais suas implicações para o Brasil.
O assunto é um tanto complicado, mas me esforçarei para explicá-lo. Pela Constituição de 1988, os tratados internacionais de direitos humanos tinham status de lei ordinária. Em 2004, a Emenda Constitucional 45, de reforma do judiciário, estabeleceu que os novos acordos poderiam ser considerados como norma constitucional, contanto que fossem aprovados por pelo menos 3/5 da Câmara dos Deputados e do Senado. O novo status é importante porque torna muito mais difícil remover ou alterar esses dispositivos, reforçando assim o respaldo legal aos direitos humanos no país.
Infelizmente, a Emenda 45 não determinou de forma clara o que aconteceria com os tratados que já haviam sido assinados.... Houve juristas que defenderam que eles passassem a ser considerados como norma constitucional, mas as decisões do STF têm sido no sentido de que são apenas lei ordinária.
A Convenção foi proposta na ONU em 2002 e aprovada em 2006 – tempo recorde para os padrões das Nações Unidas. O Brasil foi importante na mediação de alguns atritos, em particular do mundo árabe, que de modo geral ainda não tem legislação específica sobre o tema, e relutava em assumir compromissos internacionais. Na verdade, só 65 dos 192 países que integram a ONU já possuíam leis sobre deficiência.
Um dos principais direitos garantidos na convenção é a acessibilidade dos prédios públicos a pessoas com deficiência. Ironicamente, o próprio Ministério das Relações Exteriores terá que fazer reformas e já enfrenta uma ação do Ministério Público para se adaptar às novas leis. Há muita expectativa com relação aos impactos que a convenção terá sobre a indústria editorial, como edição de livros em braile.
O Conselho Nacional de Juventude defendeu com ardor a aprovação da Convenção e eu mesmo estive entre os conselheiros que foram ao Congresso fazer lobby pelo tratado. É muito gratificante ver que nossas ações – bastante modestas diante do esforço exemplar das organizações de defesa das pessoas com deficiência – trouxeram ganhos para o país. Valeu!
segunda-feira, 21 de julho de 2008
Blackwater
Atualmente há cerca de 180 mil mercenários na Guerra do Iraque, e apeas 160 mil militares dos Estados Unidos. Mal começamos a discutir as implicações da privatização dos conflitos bélicos, mas o jornalista Jeremy Scahill deu bela contribuição com seu livro “Blackwater – a ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo”. Mais do que o exame da empresa, é a crônica de lado pouco explorado da estratégia da “guerra contra o terror” do governo Bush.
Em 1991, no conflito no Golfo, menos de 10% do pessoal presente no teatro de operações pertencia a empresas privadas. O então secretário de Defesa (e atual vice-presidente), Dick Cheney, queria mudar o quadro e começou a assinar contratos para terceirizar diversas atividades das Forças Armadas, em particular aquelas ligadas à logística, como alimentação e limpeza. Esqueça a imagem do recruta Zero descascando batatas: esse tipo de serviço passou a ser executado por funcionários de grandes corporações, como Halliburton, da qual Cheney se tornou presidente após deixar o governo.
A tendência continuou no governo Clinton, mas explodiu com Bush filho, após o 11 de setembro, quando o escopo de atuação das empresas passou a abarcar também treinamento de militares e policiais (americanos e de outros países), segurança a autoridades governamentais e a executivos e até operações de inteligência. As atividades começaram nos Estados Unidos e logo se espalharam para as zonas de guerra no Afeganistão e no Iraque.
A Blackwater é apenas a maior e mais bem-sucedida de mais de 600 dessas empresas e tem a particularidade de que seus principais executivos não estão interessados só em bons negócios, possuem agenda política-religiosa. Seu fundador, Erik Prince, nasceu em milionária família de industriais, vinculados à extrema-direita evangélica. No entanto, ele se converteu ao catolicismo e serviu nas forças especiais da Marinha. Com a morte de seu pai, as empresas do grupo foram vendidas por US$500 milhões. Em 1996, Prince usou sua parte na herança para criar sua própria companhia, dedicada ao nascente e promissor mercado de serviços de segurança e treinamento policial e militar para governos e iniciativa privada.
O nome sombrio da Blackwater é uma referência às águas escuras dos pântanos da Carolina do Norte, onde está sua sede – impressionante complexo de treinamento que em muitos pontos é mais avançado até do que as instalações das Forças Armadas dos EUA. Recrutou funcionários entre militares veteranos, analistas da CIA e policiais. Muito se comenta sobre os profundos vínculos da família Prince com o Partido Republicano, mas a empresa obteve seus primeiros contratos públicos no governo do democrata Bill Clinton, quando ofereceu serviços de segurança que contrabalancearam os medos após o massacre na escola de Columbine e depois dos primeiros atentados de Bin Laden contra alvos americanos.
A principal tarefa da Blackwater no Iraque é garantir a segurança dos diplomatas americanos – a embaixada tem 3 mil funcionários (mais do que o dobro do Itamaraty brasileiro). Nenhum deles foi morto durante a ocupação do país, o que mostra a eficiência da empresa em cumprir sua missão. O problema são seus métodos, que levaram a pelo menos três grandes massacres de civis, em Bagdá, Fallujah e Najaf - áreas sunitas e xiitas. Além disso, a empresa, e os demais mercenários, não estão sujeitas nem às leis iraquianas, nem às americanas, num limbo jurídico que contribui para a impunidade e estimula a violência.
Os militares americanos se ressentem da ação da Blackwater e companhias semelhantes. Os mercenários recebem salários várias vezes maiores e, na visão de muitos oficiais nas Forças Armadas, sues métodos truculentos prejudicam o objetivo de longo prazo, de conquistar a confiança da população iraquiana. Ao mesmo tempo, a baixa quantidade de tropas no país só é possível porque as empresas privadas executam muitas tarefas de segurança, que de outro modo exigiram número bem maior de soldados.
Schahill trata a ascensão da Blackwater como ruptura absoluta com o passado no qual assuntos militares eram exclusivos do Estado. No entanto, essa é uma experiência histórica bastante recente, que no caso dos EUA corresponde ao fortalecimento do poder central no século XX.
Se recuarmos para períodos anteriores, podemos encontrar modos parecidos de dividir as tarefas do império entre Estado e iniciativa privada: as companhias de comércio das Índias, na Inglaterra e Holanda, os piratas dos séculos XVI a XVIII, os bandeirantes no Brasil, as milícias étnicas nos Bálcãs e na região dos Grandes Lagos da África, as unidades paramilitares do nazismo e do fascismo e muitos outros exemplos, a bem da verdade pouquíssimos edificantes no que diz respeito à civilização... Curiosamente, agora um acadêmico importante no círculo neoconservador, Max Boot, fala em criar uma versão americana da Legião Estrangeira da França, que se chamaria... Legião da Liberdade...
A Blackwater recruta bastante na América Latina, em particular no Chile e em El Salvador, países com veteranos militares experimentados em operações anti-guerrilha. Schahill conta em detalhes como a empresa atua na região, e mostra que ela paga salários bem mais baixos aos latino-americanos - chegou a acontecer até um embrião de motim por parte de alguns colombianos.
sexta-feira, 18 de julho de 2008
A Crise Argentina em Dó Maior
A política argentina nunca cansa de me surpreender pela capacidade de gerar momentos dramáticos. A crise entre o governo e o agronegócio se arrasta há meses e o round mais recente foi a derrota no Senado do projeto de lei que aumentaria os impostos sobre as exportações de grãos. Até aí, um conflito normal, o toque especial foi o placar apertadíssimo: inicialmente um empate, 36 x 36. Pelas normas, o voto de minerva coube ao presidente do Senado, posição que a exemplo dos EUA é ocupada pelo vice-presidente. E ele votou contra o governo, afirmando, quase como Fidel Castro, que “a história o julgará”. Digno de quinto ato de ópera italiana, cantado em dó de peito pelo tenor.
Ignoro o julgamento que os tempos futuros darão a Julio Cobos, mas seu comportamento errático exemplifica alguns dos temas que discuti em minha tese de doutorado sobre política externa argentina. A banca me questionou sobre a pertinência de incluir num estudo dese tipo todo um capítulo falando sobre a crise dos partidos no país. Que relação eu via entre os dois assuntos? Respondi que a fragmentação política da Argentina (inclusive em antigos bastiões da disciplina, como o peronismo e as centrais sindicais) havia atingido tal ponto que tornava muito difícil a construção de alianças e coligações, bem como a tomada de decisões por parte do Poder Executivo.
Eu tinha em mente os problemas que haviam ocorrido no governo Fernando De La Rúa (1999-2001) uma frágil e instável coalizão entre a UCR e a Frepaso, um partido de esquerda que teve meteórica ascensão e queda nos anos 90. O vice de De La Rúa era Carlos Alvarez,da Frepaso, que renunciou em protesto a um escândalo de corrupção muito semelhante ao mensalão brasileiro. Em Nossa América, essas coisas só mudam de endereço...
Julio Cobos, o vice de Cristina Fernández de Kirchner, é um político da UCR, que fez sua carreira na bela província de Mendoza, da qual foi governador. Vários membros do seu partido acabaram se aproximando dos Kirchner, diante das dificuldades de sua própria sigla em encontrar um candidato à sucessão presidencial. Quando a crise com o agronegócio estourou, Cobos brigou com a presidente e ficou claro seu forte vínculo com o setor rural – Mendoza é uma área vinícola de primeira categoria.
O jornal La Nación fez uma tag cloud que destaca as palavras mais utilizadas por Cobos em seu longo discurso no Senado:
Argentinos, solução, acordo, país, possibilidade... O vice joga com o descontentamento social – a popularidade da presidente caiu abaixo de 20%! - e procura se posicionar como a voz da moderação e do diálogo dentro da Casa Rosada. Cristina terá tempos difíceis pela frente, e só está no meio do primeiro ano de governo...
Se você acompanha a política brasileira, deve ter percebido que o caso argentino se parece bastante com o atual conflito no Rio Grande do Sul, envolvendo a governadora e seu vice. Só muda de endereço, etc.
quinta-feira, 17 de julho de 2008
Rio das Flores
O primeiro romance do escritor Miguel Sousa Tavares, “Equador”, virou best seller traduzido para dez línguas, ao contar uma trágica história de amor tendo como pano de fundo disputas sobre comércio internacional e direitos humanos na África, nos anos finais da monarquia em Portugal. Numa das viagens de divulgação do livro, um piloto da TAP contou ao romancista a história do avô, que havia viajado ao Brasil no dirigível Hindenburg e comprado uma fazenda de café. A cena incendiou a imaginação do artista e serviu de inspiração para “Rio das Flores”, uma saga familiar ambientada na época da ascensão do nazi-fascismo, com a ação entre Portugal, Brasil e Espanha, além de passagens na Alemanha e na França.
A nova obra não é tão boa quanto “Equador”, mas ainda assim é um trabalho que impressiona e se destaca pela alta qualidade. O centro do romance é a rejeição de um grande proprietário rural do sul de Portugal, Diogo Ribera Flores, ao regime ditatorial que se consolida em torno do Estado Novo de Salazar. Vendo a liberdade crescentemente cerceada na Europa, Diogo se encanta cada vez mais com o Brasil, ainda que perceba que Getúlio Vargas também está em vias de instalar seu próprio Estado Novo.
Ao redor de Diogo gravitam alguns personagens que formam o núcleo do clã dos Ribera Flores, e que administram a propriedade da família. O mais importante é Pedro, seu irmão, que embora lhe seja muito próximo tem opiniões políticas opostas e se torna um ardoroso defensor dos fascismos, chegando a lutar na guerra civil espanhola no lado de Franco – aliás, um dos melhores capítulos do livro é a narrativa de sua participação no conflito.
Diogo, o intelectual liberal e progressista insatisfeito com os horizontes mesquinhos de seu cotidiano, tem muito em comum com o protagonista de “Equador”, Luís Bernardo. Mas este era arrastado para a ação por uma história de amor que lhe rendia os momentos mais trágicos, ainda que mais significativos, de sua vida. Diogo não tem a mesma urgência. Despreza Salazar, mas é tão rico e influente que pode se dar ao luxo de criticar o regime e até bater boca com a polícia política. Ao mesmo tempo, esse é o limite do que ele está disposto a fazer para se opor à ditadura. Ele nunca faz nada concreto contra o regime, a não ser ajudar amigos que estão com problemas com a lei.
O mais interessante para o leitor brasileiro é o pano de fundo histórico do romance, abordando um Portugal que pouco conhecemos deste lado do Atlântico – por nossos livros escolares, parece que a vida lusitana acabou em 1822, com a independência desta colônia. Sousa Tavares toca em pontos que me interessam bastante, como a cumplicidade e a acomodação dos intelectuais portugueses com Salazar – incluindo o mestre dos mestres Fernando Pessoa – e o equilíbrio diplomático precário que Portugal estabeleceu entre a velha “aliança inglesa” e a postura para lá de simpática do regime salazarista com o Eixo nazi-fascista e a Espanha de Franco.
A parte brasileira do romance, infelizmente, decepciona. Em grande medida o que aparece no livro é um Brasil de clichês turísticos de cartão-postal, como o Copacabana Palace, as fazendas de cafés e, naturalmente, a mulata sensual que enlouquece o herói português. Também avalio que ele interpretou mal o regime de Getúlio Vargas, vendo no Estado Novo daqui uma réplica do modelo lusitano. Embora isso possa se justificar no que diz respeito à repressão das liberdades civis e políticas, deixa de lado o amplo escopo de reformas sociais e econômicas que lançaram o Brasil no caminho de se tornar uma potência industrial.
domingo, 13 de julho de 2008
Daniel Dantas e Eu
Há poucos dias o Ministério das Relações Exteriores divulgou o resultado do concurso deste ano de acesso à carreira diplomática. Ainda correm alguns recursos, mas o Curso Clio, onde leciono, aprovou pouco mais de 90 dos 115 novos diplomatas. No fim de semana houve uma festa dos meus alunos para comemorar a boa nova e com freqüência eles me perguntavam se eu estava orgulhoso.
"Claro que sim!", respondi, "Mas também assustado. Tenho um pesadelo recorrente em que a Polícia Federal invade meu apartamento e me prende na Operação Punhos de Renda, para averiguar fraude e informação privilegiada nas provas para o Itamaraty. Quando sonho termina, estou na mesma cela que Daniel Dantas e ele segura meu braço enquanto fala no celular: ´Gilmar, amigo querido, estou aqui com o pessoal do Clio e eles ficaram de dar umas dicas para a gente no Oportunity.´"
Como se vê, tenho algo em comum com Daniel Dantas. Infelizmente, não é a conta bancária. Mas poderia ser pior, poderíamos compartilhar a simpatia do presidente do Supremo Tribunal Federal. Aliás, há até uma petição online exigindo a saída de Gilmar Mendes do STF.
A festa dos novos diplomatas estava bastante divertida e lá pelas tantas um deles me confirmou uma quase lenda urbana do Clio: a de que gravações de nossas aulas estão correndo soltas pela Internet: "Ouvi você falando sobre a migração da Índia para a África Oriental, aliás você podia me passar os sites que mencionou em sala?".
Bem, o Daniel Dantas também gosta de gravações, mas imagino que elas versam sobre temas mais palpitantes.
sexta-feira, 11 de julho de 2008
A Distância entre Nós
Ontem à tarde tivemos uma reunião de planejamento aqui no trabalho e disse que gostaria que discutíssemos mais a fundo o tema da desigualdade, para examinar as transformações que estão em curso no Brasil (como a ascensão da classe C). Afirmei também que estávamos muito presos ao formato acadêmico tradicional, de leitura de artigos especializados, e que deveríamos buscar inspiração em outras fontes, sobretudo na arte. Muito da minha opinião veio da leitura do romance “A Distância entre Nós”, da escritora indiana Thrity Umrigar.
O enredo soa dolorosamente familiar para qualquer brasileiro e não por acaso o livro chegou a ser best seller por aqui: é a narrativa da relação entre duas mulheres, uma dona de casa de classe média alta e sua empregada doméstica. Ambas convivem diariamente há mais de 20 anos e desenvolveram uma intensa confiança e admiração mútua. Mas o abismo da desigualdade que as separa está sempre presente e traz conseqüências trágicas para ambas.
A narrativa se divide entre as famílias das duas mulheres, tendo como pano de fundo a turbulenta, multicultural e caótica cidade de Mumbai (a tradução brasileira optou pelo nome antigo de Bombaim, que não é mais usado na Índia). Sera é a filha de cientistas que se casou com um executivo do Grupo Tata, o mais poderoso império industrial do país. Eles tiveram uma vida confortável financeiramente, mas marcada pelas difíceis relações de Sera com a sogra, e por violência conjugal mais do que ocasional por parte do marido. Quando o romance começa, Sera ficou viúva há poucos anos, e se divide entre alívio e saudades de seu falecido esposo. O que realmente a deixa feliz é o convívio com a filha, grávida do primeiro filho, e o genro. Os dois jovens representam a nova geração, bem educada, com experiência no exterior, próspera e moderna.
A contraparte de Sera é Bhima, sua empregada de muitos anos. Ela teve uma vida razoavelmente estável até a maturidade, com um casamento feliz e dois filhos. A guinada negativa aconteceu quando seu marido sofreu grave acidente de trabalho, que resultou em desemprego, alcoolismo e numa intensa decadência econômica, que levou à fragmentação da família e à mudança de um apartamento modesto para uma favela. A esperança de Bhima é sua jovem neta, Maya, adolescente brilhante que conseguiu entrar na universidade, mas corre o risco de perder tudo por uma gravidez indesejada. O contraste entre sua situação e a da filha de Sera é a tensão que move o romance.
Sera e Bhima se apoiaram mutuamente em muitos momentos difíceis, superando juntas situações de violência, doença e problemas econômicos. Como empregada fiel de muitos anos, Bhima é “quase da família” - uma amiga americana que estuda relações raciais no Brasil certa vez me disse que quando ouve essa expressão, tem certeza de que a pessoa à qual ela se refere não é branca... É o caso do romance. A distância que separa as duas mulheres é social, de casta e até religiosa – Sera é uma parse, seguidora de Zoroastro, e Bhima é hindu. Embora a família de Sere se orgulhe de seus hábitos modernos e cosmopolitas, mantém várias tradições arcaicas relacionadas a tabus sociais que impedem contato físico e compartilhar talheres e móveis.
“A Distância entre Nós” me lembrou muito “O Deus das Pequenas Coisas”, de Arundhati Roy, que também se concentra nas desigualdades sociais, tendo como pano de fundo um amor trágico entre uma mulher da elite e um homem pobre, no estado de Kerala, talvez o mais progressista da Índia e um bastião histórico tanto dos cristãos quanto do Partido Comunista. Curiosamente, Roy e Umrigar têm a mesma mensagem pessimista: a de que modernização do país não eliminou os entraves mais profundos à liberdade e à dignidade humana, em particular das mulheres.
quinta-feira, 10 de julho de 2008
Quando Estados Fracassam
A revista Foreign Policy publicou seu Índice de Estados Fracassados de 2008. A expressão começou a ser utilizada com freqüência na década de 1990, para identificar países muito frágeis onde o colapso da ordem local resultava em ameaças internacionais, na forma de guerras, refugiados em massa ou crises econômicos. Atualmente também se destaca muito o impacto desses Estados como santuário para terroristas ou mesmo origem de tragédias ambientais que se espalharão por toda uma região. No Brasil em geral se usa a expressão “Estado falido”, tradução errada do termo em inglês, Failed State.
O Índice identifica 40 Estados em maior risco de colapso, a maioria deles na África central, no Oriente Médio ou no sul da Ásia. Os dez mais graves são Somália, Sudão, Zimbábue, Chade, Iraque, República Democrática do Congo, Afeganistão, Costa do Marfim, Paquistão, República Centro-Africana. A América Latina só comparece na lista dos piores com o Haiti (15o) e a Colômbia (37o).
O que faz com que um Estado seja considerado fracassado? A equipe que criou o índice formulou 12 indicadores, que procuram mensurar tensões étnicas, perda de controle sobre o território, existência de grupos armados ilegais, ruptura do respeito às leis etc. Conferindo a lista elaborada pela revista, me pareceu que ela está correta quanto aos casos mais graves, mas é bastante questionável quanto a outros aspectos. Por exemplo, acredito que a situação da Bolívia e da Venezuela foi subestimada pelos avaliadores. E muitos argentinos dariam um sorriso cético ao ver seu país classificado como “o mais estável” da América Latina, ao lado do Chile e do Uruguai.
Um elemento interessante da análise da Foreign Policy é cruzar o Índice dos Estados Fracassados com o Índice dos Poderes Parlamentares. O resultado, abaixo, mostra que países com congressos frágeis diante do Executivo tendem a apresentar mais riscos de colapso, já que possuem menos controles e verificações das autoridades (clique na imagem para ampliá-la). Gostaria de ver cruzamento semelhante com os índices de liberdades de imprensa preparados pela Repórteres Sem Fronteiras ou pela Freedom House.
Outro achado da pesquisa é confirmar que a alta dos preços do petróleo não trouxe benefíciou significativos para a estabilidade política dos países que são grandes produtores dessa commodity. O motivo, claro, é a extrema concentração de poder e a corrupção das elites petrolíferas de países como Angola e Nigéria.
Há melhoras nessa quadro sombrio: Costa do Marfim, Haiti e Libéria avançaram bastante desde a avaliação do ano anterior. Os três são países que contam com a presença de missões de paz da ONU e com todos os seus problemas, essas iniciativas têm ajudado na estabilização política e na manutenção de cessar-fogo, ainda que não consigam resolver a pobreza extrema.
Aliás, encomendei na Amazon um livro sobre Estados fracassados: “The Bottom Billion: Why the Poorest Countries are Failing and What Can Be Done About It”, de Paul Collier. Espero apenas que a greve dos correios não dure muito e o pacote chegue na próxima semana, como estava previsto.
quarta-feira, 9 de julho de 2008
A Cúpula do G-8
Nesta semana o G-8 esteve reunido no Japão para discutir os grandes problemas mundiais, como o aquecimento global e a situação da África. Respondendo às críticas que afirmam que a organização não serve para nada, os líderes internacionais plantaram árvores. O sucesso da iniciativa já estimulou o G-8 a fazer planos ambiciosos: escrever um livro na cúpula de 2009 e ter um filho na de 2010. Falta apenas solucionar problemas técnicos, como alfabetizar Berlusconi.
O G-8 em geral é descrito pela imprensa como a reunião dos chefes de governo dos países mais industrializados do mundo, acompanhados pelo presidente russo. Talvez a definição funcionasse no passado, mas hoje em dia está claro que EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Canadá, Itália e Rússia são pouco representativos das principais tendências globais. Como discutir, por exemplo, os rumos da economia mundial sem incluir também China e Índia? Aliás, que sentido existe em usar a expressão “mais industrializados” para se referir a países cujas atividades dependem atualmente sobretudo dos serviços?
Evidentemente, o G-8 sabe disso e tem feito esforços para ampliar um pouco (muito pouco) a representatividade de seus debates. Nesta cúpula houve a participação de sete países africanos, numa tentativa fracassada de lidar com a crise no Zimbábue, limitando-se à velha e ineficiente fórmula de buscar sanções econômicas na ONU contra o governo de Robert Mugabe.
O mais significativo foi a proposta de Sarkozy de ampliar o G-8 e incorporar “potências emergentes”: China e Índia, claro, mas também África do Sul, Brasil e México. Embora a proposta encontre muitas resistências, esses países participaram de um dia da cúpula, para discutir aquecimento global, em conjunto com Austrália, Indonésia e Coréia do Sul.
Esse foi o principal assunto do G-8. Avançou-se algo, mas aquém do necessário, com os EUA concordando em reduzir em 50% as emissões de carbono, ainda que só em 2050, e sem definir metas intermediárias. Houve divergências entre os países ricos e aqueles em desenvolvimento envolvendo esse tema – os emergentes sequer assinaram o acordo – e em assuntos como a crise de alimentos e a produção de biocombustíveis.
O mundo mudou muito desde os tempos em que conferências diplomáticas de impacto global podiam se limitar à presença de meia dúzia de potências européias. Com problemas que exigem a coordenação em escala planetária é preciso que os fórum decisórios sejam abrangentes ao ponto de representar todas as regiões. Se o G-8 quiser ser algo mais do que um clube de golfe, necessita rever seus critérios de admissão e aceitar em caráter permanente membros do mundo em desenvolvimento.
segunda-feira, 7 de julho de 2008
Fale Macio e Lidere a Região
Artigo publicado nesta segunda no New York Times avalia que a estratégia de moderação diplomática do Brasil está rendendo mais frutos em termos de liderança na América Latina do que a prática da contestação freqüente da Venezuela. O texto constata o óbvio: um país com 190 milhões de habitantes e mais de US$1 trilhão de PIB tem muito mais recursos à disposição do que outro com 26 milhões e US$235 bilhões, respectivamente. A imprensa brasileira ficou espantadíssima com a descoberta e o artigo do NY Times foi reproduzido nos principais portais de notícias de cá.
O mais interessante do artigo é contrastar o discurso público de Lula, sempre em defesa de Chávez, com uma série de medidas práticas tomadas pelo governo brasileiro que resultaram na erosão da influência da Venezuela na América Latina. Basicamente, são as grandes iniciativas de articulação política brasileira (como o Conselho de Defesa da região), as ações das empresas do país e a expansão do comércio exterior. Os venezuelanos só tem como contraponto alguns acordos de comércio e trocas de serviços por combustível barato com Bolívia, Cuba, Nicarágua e República Dominicana.
O NY Times afirma que a Venezuela se tornou dependente comercialmente do Brasil, em especial no que toca à importação de alimentos, que cresceu bastante. Nesse ponto, acredito que o jornal se equivocou. A dependência é mútua – sem a expansão das exportações para o país, a balança comercial brasileira estaria em dificuldades ainda mais sérias.
Outro comentário que complementa o artigo do NY Times é a análise do economista e ex-diplomata venezuelano Edgar Otálvora sobre os impactos do resgate de Ingrid Betancourt para as disputas de poder na América do Sul. Ele chama a atenção para a aproximação discreta que está em curso entre Brasil, Colômbia e Peru, resultando em certo afastamento da Venezuela.
Chávez, em uma de suas habituais guinadas, já percebeu que perde prestígio ao atacar Uribe, e voltou a chamar o presidente colombiano de “irmão”. Naturalmente, a mediação do Brasil ajuda.
domingo, 6 de julho de 2008
Adam Smith em Pequim
O economista italiano Giovanni Arrighi se tornou famoso por seus estudos de grandes perspectivas históricas sobre o desenvolvimento das relações internacionais, à semelhança de Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein. Sua obra-prima, “O Longo Século XX”, é uma reflexão sobre os ciclos da ascensão e queda das grandes potências, de Gênova e Veneza aos Estados Unidos, passando pelos impérios ibéricos, Holanda e Inglaterra. No entanto, como tantos bons analistas, ele caiu no engano de considerar que os EUA estavam em declínio inexorável no fim da década de 1980, e que seriam substituídos pelo Japão.
Por isso fiquei muito curioso ao ver nas livrarias sua pesquisa mais recente, “Adam Smith em Pequim – origens e fundamentos do século XXI”. De fato, adorei o livro, mas com várias ressalvas. A primeira é que humildade é uma qualidade rara no meio acadêmico, e Arrighi sequer se refere ao seu erro de avaliação sobre o Japão. A segunda é que esta obra é, na realidade, composta por dois ensaios.
O primeiro dele ocupa talvez 2/3 do livro é uma espécie de acerto de contas de Arrighi com as teorias que explicam a “grande divergência” entre o progresso da Europa e dos EUA após a eclosão da Revolução Industrial e o espantoso declínio e fragmentação da China no mesmo período. Arrighi faz um uma instigante leitura de Adam Smith, mostrando que o pai da economia havia valorizado bastante o rumo do desenvolvimento no império chinês, apontando vários pontos nos quais os ocidentais poderiam se inspirar. Em seguida, examina autores chineses e japoneses que abordam aspectos dessa mesma história, em geral ressaltando positivamente avanços econômicos que haviam ocorrido na Ásia nos séculos XVII e XVIII.
O terço final do livro é seu pedaço mais saboroso e trata das causas e conseqüências do retorno da China à condição de grande potência internacional. É um estudo fascinante que aborda as decisões cruciais das antigas dinastias, em particular Ming (1368-1644) e Qing (1644-1911), os impactos da Revolução Comunista de 1949 e da Revolução Cultural da década de 1960, os benefícios da reforma agrária e da expansão da educação, o papel decisivo da diáspora chinesa em (re)investir no país e, lógico, as reformas empreendidas por Deng Xiaoping a partir do fim dos anos 1970.
Arrighi traça um panorama sintético, mas muito rico, dos principais debates nos Estados Unidos em como lidar com a China, avaliando que não há consenso na elite americana e que a política com relação ao país asiático é errática e confusa. Ele mostra as possibilidades das dinâmicas de rivalidade e aliança entre China, Índia, Japão e outras nações do Oriente.
Há diversos aspectos questionáveis no livro. Por exemplo, acredito que Arrighi é excessivamente otimista e benevolente com as reformas chinesas, dando ao governo mais coerência e credibilidade do que merece em vista das confusas lutas políticas no país. Simultaneamente, creio que ele exagera no impacto da Guerra do Iraque para os Estados Unidos, e que subestima a influência das rivalidades nacionais na Ásia. Mas, valha-me Deus, este é um livro que realmente faz pensar! Uma bela discussão sobre história, desenvolvimento e teoria econômica, tendo como pano de fundo este admirável mundo novo que mal começou a se descortinar.
sexta-feira, 4 de julho de 2008
A Nova Defesa da França
Há poucas semanas a França publicou seu Livro Branco sobre Defesa e Segurança Nacional, estabelecendo novas diretrizes para esse setor. Sarkozy tornou o combate ao terrorismo a prioridade das ações militares francesas, anunciou a redução do tamanho das Forças Armadas em 25% e ressaltou que a Ásia (Afeganistão, Irã, Oceano Índico) adquire importância estratégica crescente para seu país, em adição às zonas tradicionais na Europa e África.
Quando as transformações estiverem implementadas, o Exército francês terá 225 mil homens e será formado só por voluntários. Ruptura com relação à tropa de 500 mil homens, muitos recrutados pelo serviço obrigatório, que existia em 1989, ao fim da Guerra Fria. O argumento central do Livro Branco é que para combater o terrorismo é necessário adaptar as Forças Armadas às novas ameaças, tornando-as mais versáteis, móveis, melhor treinadas e mais sofisticadas do ponto de vista tecnológico. São mudanças análogas àquelas executadas pelos EUA e pelo Reino Unido ao longo da década de 1990.
O cerne do novo Exército francês serão 30 mil soldados capazes de atuar como Força Expedicionária em algum conflito internacional no chamado “Arco de Crise”, que vai do Mediterrâneo ao Índico. Dez mil tropas estarão sempre de prontidão na própria França, para auxiliar o governo em caso de calamidade pública, como atentados terroristas ou desastres ambientais.
Embora o Livro Branco não mais considere a invasão por outro Estado como a principal ameaça à segurança francesa, o documento elenca diversas maneiras pelas quais isso poderia voltar a ocorrer, sobretudo pela cyber-guerra e por ataques de mísseis balísticos – neste ponto, chama a atenção a ênfase dada ao desenvolvimento das capacidades tecnológicas das potências emergentes. O arsenal nuclear da França continua a ser o elemento mais importante da estratégia para dissuadir a agressão por parte de outro país.
A segurança nacional francesa se insere num campo mais amplo de acordos internacionais, em particular na União Européia e na OTAN. No âmbito regional, a meta é fortalecer a capacidade da Europa intervir no exterior, com o estabelecimento de uma força de reação rápida de 60 mil soldados, e a habilidade para conduzir pelo menos duas grandes operações de “imposição da paz” ao mesmo tempo. Há debates interessantes sobre como formular política industrial de defesa na UE, com a delimitação do que a França deve fazer sozinha e do que ela pode desenvolver em parcerias.
As decisões sobre a OTAN são confusas, apontam para maior integração da estrutura de comando militar francesa na organização, mas não fica claro o grau em que isso irá ocorrer, porque essa decisão é anunciada vagamente, ao mesmo tempo em que se elogia a decisão do general De Gaulle de se retirar do comando unificado da organização, em meio a seus desentendimentos com os Estados Unidos na década de 1960.
Outro ponto destacado em vários trechos do Livro Branco é a necessidade de fortalecer os serviços de inteligência, inclusive com a criação de um Conselho Nacional de Inteligência, semelhante àquele formado nos Estados Unidos após o 11 de setembro. A justificativa dos franceses é que no mundo atual não há mais uma fronteira rígida entre segurança internacional e doméstica, sendo necessária maior articulação das Forças Armadas com a polícia e as autoridades civis, para lidar com ameaças como terrorismo e crime organizado.
quinta-feira, 3 de julho de 2008
A Libertação de Ingrid Betancourt
Ontem passei a tarde na TV PUC, gravando um programa sobre África. Ao sair do estúdio, uma rádio paulista me ligou no celular, pedindo meus comentários sobre a libertação de Ingrid Betancourt. Contudo, o repórter me havia dito que as FARCs é quem tinham soltado a refém. Somente ao ler os jornais desta quinta é que soube que na realidade a ex-candidata à presidência foi libertada em conjunto com outras 14 pessoas numa brilhante operação de inteligência do Exército colombiano.
Os militares se passaram por guerrilheiros e convenceram um comandante das FARCs de que iriam levar a ele e os reféns para um encontro com a cúpula da organização. Só quando embarcaram na aeronave é que descobriram que estavam nas mãos das autoridades. Foi um resgate extraordinário, muito bem-executado e sem disparar um só tiro. Além de demonstrar a perícia das unidades de elite da inteligência colombiana, é uma prova clara do estágio de desestruturação e falta de comunicação em que caíram as FARCs.
A popularidade de Uribe já batia recordes antes da libertação, e agora deve crescer ainda mais. Difícil imaginar que, diante de um presidente tão admirado, a justiça colombiana anule sua reeleição - há um processo em curso, devido a acusações de compra de votos no Congresso para aprovar a emenda que permitiu a Uribe se candidatar a um segundo mandato.
O mais interessante, no entanto, será observar qual o papel que Ingrid Betancourt irá desempenhar na política colombiana. Ela é uma estrela do Partido Liberal, de oposição a Uribe. Naturalmente, passou por uma tragédia pessoal, de 6 anos de cativeiro, e há rumores de sua saúde está muito ruim. Ainda assim, a Colômbia tem outros exemplos de políticos que escaparam das FARCs e reassumiram posições de liderança (como o atual chanceler de Uribe, Fernando Araújo). A própria entrada de Ingrid na política foi uma espécie de acerto de contas com a decisão de seu pai de se retirar da promissora carreira pública - foi embaixador, ministro e chegou a ser cogitado para a presidência. Não me parece o perfil de uma mulher que se contentaria em se retirar para a vida privada.
É muito provável que ela se torne uma líder de relevo nas negociações para o desmantelamento das FARCs, e, naturalmente, esvaziará bastante as iniciativas que Hugo Chávez possa empreender, até porque o presidente da Venezuela está atarefado com suas próprias crises internas.
terça-feira, 1 de julho de 2008
A História Oficial
En el pais del no me acuerdo
Doy tres pasitos y me pierdo.
Un pasito para alli,
no recuerdo si lo di.
Un pasito para allá
!Ay, que miedo que me da!
Maria Elena Walsh
Há muitos anos ouvia falar de “A História Oficial” como um marco na discussão sobre os direitos humanos na Argentina, e também como o único filme latino-americano a ganhar o Oscar de melhor produção estrangeira. No entanto, só no último domingo assisti a ele. Havia comprado o DVD em Buenos Aires, movido mais pela curiosidade, não imaginava que iria ver uma obra-prima, um roteiro magistral da primeira à última cena, escrito pelo diretor Luiz Puenzo e por Aida Bortnik e embalado por soberbas atuações do casal de protagonistas, Norma Aleandro e Hector Alterio.
“A História Oficial” foi lançada no já distante 1984, e é ambientado em 1983, na transição da ditadura para a democracia. A desastrosa guerra das Malvinas acabou, o regime militar vive sua agonia, os jornais e as ruas estão repletos de manifestações e denúncias e os exilados começam a voltar. Nesse cenário turbulento, Alicia é uma mulher de meia-idade, de alta classe média, casada com o diretor de uma empresa próxima à cúpula das Forças Armadas, que segue uma rotina pacata e conservadora, concentrada em cuidar de sua adorável filha de cinco anos e dar aulas de história argentina para jovens inquietos e questionadores numa escola secundária.
O filme abre com os alunos reunidos no pátio do colégio, cantando o hino argentino, que conclama a todos a ouvir o brado de liberdade que vem do Prata. Em seguida, Alicia diz aos estudantes que “a história é a memória dos povos”. Mas em sala de aula e em sua rotina privada, ela sempre acatou sem questionar a versão oficial, e fechou os olhos para o turbilhão que envolveu seu país. Essa aparente tranqüilidade começa a ser abalada quando se reencontra com uma amiga de juventude, que retorna do exílio europeu, e lhe conta como foi torturada, e como havia mulheres que tinham seus filhos roubados no cativeiro. Alicia é estéril e adotou sua filha, sem conhecer os pais biológicos da menina. Ela começa a desconfiar que a criança pode ter sido seqüestrada de militantes políticos e a dúvida a levará, finalmente, a pensar nos silêncios e cumplicidades que teceu ao seu redor durante a ditadura e ter um envolvimento relutante com as Avós da Praça de Maio.
Alicia é conservadora, politica e socialmente, e contrasta com o estilo rebelde do colega que leciona literatura. Os estudantes a provocam e uma das melhores cenas é uma discussão sobre o destino de Mariano Moreno, um dos líderes da independência argentina. Alicia alega que ele morreu de causas naturais, os jovens dizem que foi envenenado por seus ideais libertários. Quando ela nega a hipótese, na aula seguinte os alunos colam recortes de jornal que falam dos desaparecidos da ditadura. De fato, Felipe Pigna, um historiador argentino contemporâneo, dedicou seu popularíssimo Los Mitos de la Historia Argentina a “todos os patriotas que, desde os tempos de Mariano Moreno, têm sido atirados ao mar, assassinados, e enterrados em valas comuns, no vão intento de fazê-los calar”. De arrepiar.
Outro excelente momento é o tenso almoço na casa da família do marido. O sogro é um velho imigrante espanhol, anarquista, que sobrevive de uma oficina de fundo de quintal que toca com o caçula: “O país desmoronou, só quem prosperou foram os filhos da puta, os cúmplices e meu filho mais velho”. Que lhe responde que a guerra civil espanhola acabou e que “vocês [a esquerda] perderam”. Mas a corrupção e os negócios escusos em que se envolveu pesam como ameaça sob sua vida de conforto.
O roteiro primoroso de “A História Oficial” mistura política e vida privada com maestria. Parte da habilidade desta história está no fato de não dar lições acabadas ao espectador. O dilema de Alicia com relação ao que fazer com sua filha termina em aberto, assim como a Argentina se perguntava naquele momento em como seguir vivendo com as lembranças tão dolorosas de seus conflitos.
Posso imaginar o nível de catarse que “A História Oficial” provocou quando foi lançado, e finalmente trouxe à luz um debate sofrido que apenas se insinuava entre sussurros, obtendo reconhecimento internacional imediato com prêmios (Oscar, Globo de Ouro, Cannes, Berlim) para a obra, o roteiro e a atuação desta grande dama das artes cênicas argentinas, Norma Aleandro. A maior prova da alta qualidade do filme é que seu impacto emocional continua avassalador depois de quase 25 anos, com tudo o que avançamos na América Latina com relação a consolidar a democracia e recuperar a memória dos anos de ditadura.
Coincidentemente, na semana passada vivi três situações nas quais as questões suscitadas pelo filme estão presentes, e como! Uma foi minha reunião no Ministério do Desenvolvimento Social da Argentina, numa sala decorada com fotos das Mães da Praça de Maio e dedicada a reuniões com elas. Um dos funcionários me contou, emocionado, que é filho de desaparecidos, e que teve sua verdadeira identidade recuperada graças ao trabalho das Avós. Pouco depois foi o Dia Internacional contra a Tortura e uma das minhas colegas de trabalho, ex-presa política, foi homenageada em Brasília, com o julgamento de seu caso pela Comissão de Mortos e de Desaparecidos. Em cerimônia tocante, ela narrou os suplícios que sofreu e o Estado brasileiro lhe pediu desculpas, oficialmente. Simultaneamente, a revista Carta Capital deu matéria de capa à situação de um torturador que, entre outros crimes, assassinou o irmão de outra de minhas colegas.
Um dos personagens do filme discute com a professora e diz que a verdadeira história não é aquela que está nos livros didáticos, que muitas vezes são escritos pelos assassinos. Ele provoca a docente a mergulhar na vida, onde existe algo de esquivo, sombrio e infinitamente precioso que precisa ser desvelado e trazido para a luz, para fazer parte da memória dos povos.
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