sexta-feira, 18 de julho de 2008

A Crise Argentina em Dó Maior


A política argentina nunca cansa de me surpreender pela capacidade de gerar momentos dramáticos. A crise entre o governo e o agronegócio se arrasta há meses e o round mais recente foi a derrota no Senado do projeto de lei que aumentaria os impostos sobre as exportações de grãos. Até aí, um conflito normal, o toque especial foi o placar apertadíssimo: inicialmente um empate, 36 x 36. Pelas normas, o voto de minerva coube ao presidente do Senado, posição que a exemplo dos EUA é ocupada pelo vice-presidente. E ele votou contra o governo, afirmando, quase como Fidel Castro, que “a história o julgará”. Digno de quinto ato de ópera italiana, cantado em dó de peito pelo tenor.

Ignoro o julgamento que os tempos futuros darão a Julio Cobos, mas seu comportamento errático exemplifica alguns dos temas que discuti em minha tese de doutorado sobre política externa argentina. A banca me questionou sobre a pertinência de incluir num estudo dese tipo todo um capítulo falando sobre a crise dos partidos no país. Que relação eu via entre os dois assuntos? Respondi que a fragmentação política da Argentina (inclusive em antigos bastiões da disciplina, como o peronismo e as centrais sindicais) havia atingido tal ponto que tornava muito difícil a construção de alianças e coligações, bem como a tomada de decisões por parte do Poder Executivo.

Eu tinha em mente os problemas que haviam ocorrido no governo Fernando De La Rúa (1999-2001) uma frágil e instável coalizão entre a UCR e a Frepaso, um partido de esquerda que teve meteórica ascensão e queda nos anos 90. O vice de De La Rúa era Carlos Alvarez,da Frepaso, que renunciou em protesto a um escândalo de corrupção muito semelhante ao mensalão brasileiro. Em Nossa América, essas coisas só mudam de endereço...

Julio Cobos, o vice de Cristina Fernández de Kirchner, é um político da UCR, que fez sua carreira na bela província de Mendoza, da qual foi governador. Vários membros do seu partido acabaram se aproximando dos Kirchner, diante das dificuldades de sua própria sigla em encontrar um candidato à sucessão presidencial. Quando a crise com o agronegócio estourou, Cobos brigou com a presidente e ficou claro seu forte vínculo com o setor rural – Mendoza é uma área vinícola de primeira categoria.

O jornal La Nación fez uma tag cloud que destaca as palavras mais utilizadas por Cobos em seu longo discurso no Senado:



Argentinos, solução, acordo, país, possibilidade... O vice joga com o descontentamento social – a popularidade da presidente caiu abaixo de 20%! - e procura se posicionar como a voz da moderação e do diálogo dentro da Casa Rosada. Cristina terá tempos difíceis pela frente, e só está no meio do primeiro ano de governo...

Se você acompanha a política brasileira, deve ter percebido que o caso argentino se parece bastante com o atual conflito no Rio Grande do Sul, envolvendo a governadora e seu vice. Só muda de endereço, etc.

8 comentários:

Anônimo disse...

Caraca, Mauricio, o que foi esse voto do Sobos? Eu acompanhei a tensão entre ele e os Kirchner, mas não imaginava que ele daria um voto de minerva assim. Vixe, esse treco vai esquentar, hein? Obrigado pelo seu acompanhamento lúcido da crise. Abração.

Anônimo disse...

Errata: Cobos, não Sobos, claro :-)

Sergio Leo disse...

Bom posto, mestre santoro. Me espanta o espanto da sua mesa; eles devem saber que, diferentemente do Brasil, a Argentina não tem uma estrutura de Estado independente para a diplomacia, que reflete sempre, nos postos de mando, o partido de plantão. Especialisats em Relações Internacionais, como o Amado Cervo, vinculam claramente as idas e vindas da política externa argentina à tumultuada política interna do país...

Sergio Leo disse...

Hehe, pelo visto eu e o idelber entramos no seu blogue mais ou menos ao mesmo tempo.

Anônimo disse...

Apesar de ser leitura assidua desse blog, nunca me permito dar muitos pitacos. Contudo, o tema pede.

Estive no Uruguai para fazer um curso sobre as esquerdas na América Latina (minha dissertação será sobre as direitas), e aproveitei para dar "um pulinho" na Argentina. Os poucos dias que estive lá pude sentir como os Argentinos participam ativamente da política. Até fui parar por engano no meio de uma manifestação na Pça de Maio. Desta forma, acredito que a política interna, tão imprevisível que é, pode ser fator muito influente na política externa. Mas são apenas "achismos".

Muito interessante é uma propaganda da Presidência da República que passa de 10 em 10 minutos lá na Argentina. Ela está no youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=lIZH0eH98w0

Abs

Maurício Santoro disse...

Salve, Idelber.

A Economist chamou o Cobos de turncoat, que em bom português é mesmo vira-casaca. Acho que ele é um político bem representativo desta nova fase da política argentina, em que as identidades partidárias estão mais fluidas e um sujeito pode pular de uma sigla para outra com certa facilidade.

Os jornais argentinos têm dado ao Cobos o tipo de tratamento que pensei que estivesse reservado para Riquelme ou o Maradona dos velhos tempos... Vamos ver qual será o futuro político dele.

Agora, que história é essa de o senhor dizer no seu blog que as argentinas não são sensuais? Vou te apresentar a uma amiga de Córdoba capaz de derreter catedrais!

Salve, mestre Sergio.

Na minha banca de mestrado, houve uma examinador que me disse, "Bem, sua dissertação está boa, mas excessivamente baseada em fatos" (risos).

Uma das coisas curisosas do povo que estuda relações internacionais é um certo desdém pela política interna de cada país. Herança dos modelos teróricos muito abstratos que vieram dos EUA...

Agora, imagine entender Argentina, Bolívia, Colômbia ou Venezuela sem levar em conta essas enormes mudanças internas... Os brasileiros, em especial, às vezes acham que todas as chancelarias do mundo têm a força institucional do Itamaraty. Ora, não é assim que a banda toca, em especial em nossa América.

Salve, Natália.

Como vão as coisas no OPSA, tudo bem?

Costumo dizer que os argentinos são como os franceses do século XIX, sempre a conspirar em algum café, até armar a próxima barricada na Praça de Maio. E impressiona o quanto eles discutem política internacional e acompanham o que se passa no mundo.

Abraços

Anônimo disse...

Meu caro Mauricio, cometi o erro crasso, metonímico, tradicional. Escrevi "argentinas" quando estava pensando em "portenhas". I stand corrected, como dizem os amigos gringos. Abração.

Maurício Santoro disse...

Meu caro,

tenho certeza de que as cordobesas, mendoncinas e todas as flores patagônicas concordarão com você em gênero, número e grau.

Abração