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O novo filme de Woody Allen é charmoso, engraçado, sensual, inteligente e emana uma luz dourada e uma alegria de viver tão contangiantes que dá vontade de lamber a tela, mesmo naquelas cenas em que Scarlett Johanson e Penélope Cruz não aparecem. É um hino ao caos e à imprevisibilidade da vida, às muitas verdades que ela possui e um convite para que os Estados Unidos saiam de seu insulamento neurótico e se reconciliem com os valores humanistas da cultura européia - não por acaso, esta é a quarta produção seguida que o cineasta roda fora de seu país natal.
Essas reflexões se dão a partir de uma trama simples. Amigas americanas de temperamentos opostos, Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett), vão passar o verão na Espanha e se envolvem numa ciranda amorosa com artistas talentosos e turbulentos, o pintor Juan Antonio e sua ex-mulher María Elena, interpretados pelos espanhóis Javier Bardem e Penelope Cruz. O pano de fundo é o contraste entre a beleza das paisagens e cidades da Catalunha e a prosperidade apática dos cidadãos dos EUA radicados no Velho Mundo.
Há um quê de Henry James em Vicky Cristina Barcelona, no sentido em que Allen trabalha um tema caro ao romancista: a perda da inocência americana por meio do contato com a sociedade européia mais sofisticada e complexa. O sentimento é reforçado pela narrativa em off do filme, de grande beleza literária. Contudo, James lidava com a questão da corrupção moral. Allen trabalha em outro registro. Não ocorre degeneração dos costumes (ainda que possa parecer assim à primeira vista), e sim o questionamento dos valores e comportamentos tradicionais, com o abandono do conformismo e da fachada de felicidade ilusória, e a busca de uma vida autêntica, de emoções verdadeiras, mesmo que ao custo de tristezas, dúvidas e frustrações para os protagonistas.
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Grandes artistas com freqüência só conseguem falar de si mesmos, mas ao fazê-lo, expressam muitas pessoas, como se soprassem em nosso ouvido uma mensagem que julgamos ser apenas para nós. Vicky tem muito em comum com os personagens típicos de Allen, com suas neuroses, seu medo de viver, suas inseguranças. Cristina parece dar voz às suas inquietações, sua rejeição do materialismo americano e sua procura por arte de valor, mesmo que não saiba bem qual caminho trilhar. Me pareceu que os personagens de Javier e Penelope são menos interessantes, porque eles não se transformam ao longo do filme. Estão lá apenas como catalizadores, como elementos explosivos e dinâmicos que forçam as duas amigas americanas a enfrentar seus fantasmas.
O filme tem cenas belíssimas, de uma falsa simplicidade, que na realidade escondem um artesanato de mestre na preparação dos cenários, figurinos e no desempenho dos atores. Minhas favoritas são as seqüências em que Vicky ouve música espanhola, uma de suas paixões. Há uma da qual gostei particularmente: ela está num jantar enfadonho com o marido e amigos, na qual a conversa fala de brinquedos tecnológicos que dão a ilusão de conectividade ao mundo. E seu olhar vagueia até o músico que toca uma melodia linda, e os espectadores podemos intuir que ela sonha com o amor profundo que teme concretizar.