sexta-feira, 10 de abril de 2009

O Resto é Barulho



Platão escreveu em “A República” que quando as formas musicais mudam, também se transformam as leis básicas do Estado. O século XX foi o mais brutal da história, e sua arte está intimamente ligada a essas convulsões. Alex Ross, da New Yorker, nos conta de modo extraordinário a trajetória da música clássica no período em seu “The Rest is Noise – listening to the twentieth century”. Ele analisa as carreiras de gênios como Strauss, Stravinsky, Debussy, Schoenberg, Britten, Shostakovich e examina a cena artística em tempos tumultados como a Alemanha de Hitler, a URSS de Stalin e os EUA de Franklin Roosevelt. A época atual seria para Ross caracterizada por múltiplos fluxos e fronteiras fluidas entre tradições culturais elitistas e populares, um momento em que os compositores perderam o caráter central que tiveram nos séculos XVIII e XIX, mas suas criações alcançam milhões de pessoas, muito mais do que no passado.

Ross começa seu livro contando o auge da escola germano-vienense, com artistas renovando os cânones tradicionais e causando escândalo com óperas que tratavam de temas avançados, como a sexualidade de Salome, de Strauss, ou o pacificismo de Wozzeck, de Berg. Política e estilo davam as mãos: após a derrota da França para o Império Alemão, em 1871, os compositores franceses se insurgiram contra a tradição estilística do inimigo, e Debussy, Satie e companhia buscaram novas formas musicais que desafiassem Wagner e seus discípulos.

Os traumas da I Guerra Mundial levaram à espetacular renovação da década de 1920, com influências da cultura popular – jazz, folclore – dialogando com as vanguardas artísticas europeias. Houve até a tentativa de se criar uma espécie de “Liga das Nações” na música que fracassou como sua homóloga política. As inovações tecnológicas, como o rádio e os discos, também revolucionaram a difusão e produção das obras musicais. O engajamento político igualmente impactou na arte do período, em particular em Berlim, onde a efervescência cultural da República de Weimar brilhou nas óperas de Kurt Weill e Bertold Brecht (a foto que abre o post é de uma montagem de sua "Ópera dos Três Vinténs"), e em experimentos formais como a atonalidade e a dodecafonia.



Os anos do totalitarismo foram sombrios para a música, tanto na Alemanha quanto na URSS. Ross traz elementos fascinantes para o debate sobre o nazismo e a arte. Hitler parece por vezes uma paródia macabra de uma ópera de Wagner, mas ironicamente alguns de seus gestos como orador parecem ter sido copiados de um maestro judeu – Mahler! Aliás, as preferências musicais do ditador por vezes conflitavam com seus preconceitos raciais e ele tinha pouca paciência para artistas alinhados ideologicamente com si mesmo, mas de quem não gostava, como o maestro Herbert von Karajan.

Já Stalin não aparentava preocupações estéticas profundas e seu jogo de gato e rato com os compositores soviéticos era motivado pelas disputas políticas da hora. Shostakovich, em particular, sofreu com os altos e baixos, sendo perseguido por suas posições de vanguarda e premiado pelo regime quando promovia música patriótica, como a sinfonia em homenagem à resitência de Leningrado ao cerco nazista – obra que, na realidade, esconde críticas ao terror stalinista.

A obra-prima literária que acompanha os tempos sombrios é, sem dúvida, “Doutor Fausto”, de Thomas Mann, parábola a respeito da Alemanha nazista que conta a saga de um compositor genial que vende (ou acha que vende) a alma ao diabo, e termina compondo uma obra que é a antítese da Nona Sinfonia de Beethoven, como rejeição consciente da herança humanista da música ocidental. Mann era amigo de muitos músicos e conhecia profundamente o tema. Seu livro tem semelhanças perturbadoras com a biografia de diversos artistas, e é citado repetidamente por Ross.

Os compositores também se envolveram na Guerra Fria, na medida em que EUA e URSS se esforçavam para promover arte erudita e mostrar sua superioridade cultural diante do inimigo. Mas os grandes temas musicais do período são outros, como o reflexo poético da experiência dramática do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial, como expressa em obras-primas tais como a Sinfonia Jeremias de Leonard Bernstein ou o Réquiem de Guerra de Benjamin Britten. À medida que a paz e a prosperidade se consolidam no Ocidente, a música embarca em vanguardas cada vez mais arrojadas, como os movimentos serialista e minimalista, e o mundo erudito dialoga de maneiras imprevistas com gêneros populares, como o jazz, o bebop e o rock, influenciando composições dos Beatles, de Bob Dylan e dos Grateful Dead.

Se você, como eu, é um ignorante da música clássica do século XX e conhece os artistas da época quando muito pelo nome, Alex Ross nos deu um presente. O site do livro disponibiliza trechos de várias das músicas comentadas na obra. O resto é barulho. Ou talvez silêncio, como dira o príncipe Hamlet.

5 comentários:

Patricio Iglesias disse...

Caro amigo:
Todo um aprendizagem pra mim, desde a frase do Platäo até os nomes de alguns autores.
Näo só o jazz influenciu a música acadêmica nos inícios do século XX, também o "gotán", nosso querido ritmo, deixou uma marca. Albéniz e Stravinsky (e outros mais, näo lembro) compusiram obras tituladas "Tango" e, obviamente, de inspiraçäo platina. Vocês também fizeram um gräo aporte, com o Villa-Lobos.
Saludos!

Nancy Lix disse...

Mas, só tem uma coisa: humanismo? Cadê o humanismo? Não tem... nunca teve... aqui ou lá, ocidente ou oriente. Egomanismo, isso sim, é o que há e sempre houve!

Muito bom, bom mesmo o teu texto. Uma baita capacidade de síntese. (Só faltou o Niti!)
Beijinhos!

Maurício Santoro disse...

Salve, Patricio.

De fato, a influência do tango é mencionada de passagem, mas infelizmente o único compositor latino-americano citado no livro é Villa-Lobos, e mesmo assim apenas em um parágrafo. A ênfase da obra é na Europa (incluindo Rússia) e nos EUA.

Olá, Nancy.

Certamente, não faltam egos na música, mas em conjunto às vaidades existem valores éticos e políticos, tudo muito misturado...

abraços

André Egg disse...

Já vi na cultura que tem uma tradução para o português. Vou correndo comprar, a ver se dá tempo de eu usar como bibliografia, pois sou professor de História da Música do Século XX.

Quase não há bibliografia em português, e o principal livro-síntese disponível (A Música Moderna, de Paul Griffiths) foi escrito nos anos 1960.

Muito legal tua resenha, e, principalmente, a dica do site.

Maurício Santoro disse...

Rapaz, acho que você vai adorar o livro. Corra para comprar a edição brasileira!

Abraços