segunda-feira, 19 de abril de 2010

Falcão e Pomba



Há alguns dias chegou meu pacote da Amazon com os lançamentos recentes sobre política internacional. O primeiro da lista foi “The Hawk and the Dove: Paul Nitze, George Kennan and the history of Cold War”, do jornalista Nicholas Thompson, neto de Nitze. É uma biografia dupla, que por meio da amizade entre dois pesos pesados da diplomacia americana conta os dilemas que os Estados Unidos enfrentaram na segunda metade do século XX, principalmente a escolha de instrumentos políticos e econômicos versus o uso do poder militar para alcançar os objetivos do país.

Kennan (foto acima) é o mais conhecido da dupla. Diplomata de carreira, ele serviu na Europa durante a ascensão do nazismo e o início da Segunda Guerra Mundial, sendo depois transferido para a União Soviética. Era o número 2 na embaixada em Moscou quando o conflito terminou e os Aliados começaram a se distanciar. Em seu famoso “Longo Telegrama”, Kennan delimitou a estratégia para lidar com a URSS: a “contenção” (containement). Isto é, os EUA não deveriam travar uma nova guerra, agora contra Stálin, mas usar sua influência para impedir o avanço do comunismo. Convocado de volta a Washington, Kennan foi decisivo em elaborar uma série de iniciativas de política externa: o Plano Marshall, a criação da OTAN, a guerra da Coréia.

Nitze (foto abaixo) era um banqueiro de investimentos de Wall Street, recrutado para o serviço público durante a Segunda Guerra Mundial. Exerceu diversos cargos importantes no Departamento de Estado e no Pentágono, em geral lidando com temas de economia internacional ou assuntos militares, no fim da vida se tornando o principal negociador dos acordos de controles de armas nucleares entre EUA e URSS. Se Kennan se tornou famoso pelo Longo Telegrama, Nitze se destacou por um documento secreto: o NSC-68, que transformou a “contenção” criada por seu amigo numa doutrina militar de expansão das Forças Armadas e do arsenal nuclear.



Essa foi a origem da divergência ideológica crescente entre ambos. Kenann se tornou cada vez mais crítico às decisões governamentais, virando um opositor ferrenho da guerra do Vietnã e um apóstolo do desarmamento nuclear. Nitze serviu a seis presidentes desde Roosevelt, mas como seu neto observa com humor, brigou com todos e terminava os mandatos sempre exonerado, apenas para ser reconvocado pelo sucessor, que não podia prescindir de seu conhecimento enciclopédico sobre armamentos. Kennan também não tinha temperamento fácil: depressivo, cheio de dúvidas e angústias. Serviu dois breves períodos como embaixador, na URSS e na Iugoslávia, e ambos acabaram mal: foi expulso de Moscou por ordem de Stálin, e deixou Belgrado após uma disputa inútil com o Congresso americano, devido às discordâncias sobre um embargo comercial contra o regime presidido pelo marechal Tito. Floresceu como intelectual, escrevendo 17 livros, muitos deles premiados, e sendo uma voz importante no debate político até sua morte, com 102 anos.

É relativamente fácil enquadrar Nitze como um falcão. Ao fim da vida, ele foi um elo importante entre a ala mais à direita do Partido Democrata e os Republicanos, sendo um dos mentores para o movimento neoconservador. Classificar Kennan como pomba é um tanto mais complexo: ele manteve sempre ligações com os serviços de inteligência e segurança, ajudou a criar a CIA, foi consultor de diversas de suas operações clandestinas e auxiliou o FBI a vigiar grupos de esquerda nos EUA. Sua oposição à guerra não implicou simpatia pelos dissidentes, e atacou duramente estudantes, hippies e os ativistas da contracultura.




Os dois amigos viveram o auge de sua influência nas décadas de 1940-60 e impressiona ver como o debate sobre política externa americana perdeu coerência desde então, sobretudo no pós-Guerra Fria. A proliferação de pequenos grupos de interesse, a falta de conhecimento especializado sobre países como Afeganistão e Iraque e talvez um certo declínio da ética de serviço público que tanto marcou a geração de Kennan e Nitze formam um contraste desfavorável entre o período atual e a época retratada no livro.

Nenhum comentário: