segunda-feira, 24 de maio de 2010

O Guerrilheiro Acidental



The Accidental Guerrilla” é o mais influente livro sobre assuntos militares publicado após os atentados de 11 de setembro de 2001 e as guerras do Afeganistão e do Iraque. Seu autor é David Kilcullen (foto), tenente-coronel do Exército da Austrália que assessorou autoridades dos Estados Unidos, como Condoleezza Rice e o general David Petraeus. É uma reflexão que busca entender a natureza dos conflitos assimétricos na Ásia.

Seu argumento: a maioria dos insurgentes que combatem os EUA na região são “guerrilheiros acidentais”, motivados por questões locais, basicamente a intromissão de estrangeiros em seus assuntos comunais. A dinâmica da “guerra ao terror” terminou por vinculá-los às redes terroristas internacionais, como Al-Qaeda e certas correntes entre os Talibãs, que são muito mais irredutíveis em seu ódio aos ocidentais. Para separá-los, Kilcullen propõe a mudança na estratégia de guerra, com contrainsurgência voltada para garantir a segurança da população, e não a destruição do inimigo. Inspirou o “surto”, a reviravolta americana no Iraque.

Kilcullen fez carreira no Exército australiano servindo em missões de paz na Indonésia, Timor Leste e em operações na África e no Oriente Médio. Doutorou-se em Antropologia sobre o impacto das insurgências em sociedades tradicionais, sobretudo os conflitos entre fundamentalistas islâmicos e culturas tribais. Pelo circuito acadêmico-militar, realizou rápida ascensão como consultor para o Pentágono e o Departamento de Estado. Os EUA simplesmente não tinham especialistas nesses temas, tendo praticamente abandonado a reflexão sobre contrainsurgência após a derrota no Vietnã. Agora, despontou nova comunidade que trata do assunto.

Seu livro começa com observações teóricas e dedica capítulos aos estudos de caso do Afeganistão e do Iraque. O ponto forte de Kilcullen é sua observação de campo sobre os costumes dos grupos étnicos (basicamente, redes familiares ampliadas) nos dois países. As tribos afegãs são mais igualitárias, mas as iraquianas têm hierarquias rígidas. Ambas as estruturas foram muito abaladas por décadas de guerra, ditadura, ocupações estrangeiras e as tribos aprenderam a negociar com os Estados, em padrões complexos de clientelismo, conflito, oposição e aliança.




Assim, os Talibãs se tornaram um movimentos dos pashtun – no Afeganistão e no Paquistão – para se impor sobre etnias rivais. Outros povos – Hazara, Uzbeques – com freqüência preferem apoio da OTAN. No Iraque, sunitas e xiitas travam uma feroz disputa sectária, mas certas tribos da primeira denominação, oriundas da província de Anbar, acabaram por se indispor com a Al-Qaeda, e mudaram de lado para apoiar os EUA.

A Al-Qaeda percebeu a importância das tribos e seus líderes procuram se casar com mulheres locais para se integrar às redes de solidariedade comunitária. Mas o puritanismo religioso dos fundamentalistas em geral entra em confronto com os costumes mais brandos das tribos, que podem incluir sunitas e xiitas. Outro estopim de divergência é o controle sobre lucrativos negócios ilegais, como contrabando e tráfico de drogas, tradicionalmente dominados pelos líderes tribais.

A estratégia proposta por Kilcullen é explorar tais divisões, e seu livro contém várias recomendações operacionais que foram aplicadas no Afeganistão e no Iraque, tais como patrulhas conjuntas entre os americanos e os locais, abandono de operações bruscas, como invadir casas em busca de suspeitos, esforços para construir a confiança com a população.

Já existe longa literatura sobre contrainsurgência, construída a partir de estudos sobre as guerras na Argélia e no Vietnã. “The Accidental Guerrilla” certamente entrará para o cânone dessas análises, mas com a cautela: os exemplos anteriores resultaram em fracassos bélicos. Em grande medida porque seus autores falham em encarar a amarga mensagem política de que, para os povos envolvidos, a maior medida de segurança pode muito bem ser a partida dos exércitos estrangeiros aos quais pertencem os escritores. Com todas as suas boas intenções.

4 comentários:

carlos disse...

salve, santoro,

o surpreendente do post, pelo menos pra mim e o qual concordo, é o parágrafo final com "a partida dos exércitos estrangeiros aos quais pertencem os escritores".

parabéns

Maurício Santoro disse...

Salve, Carlos.

Nós, brasileiros, já tivemos uma boa dose de contrainsurgência injetada na veia, nas décadas de 1960/70, o que nos dá sempre certa desconfiança dessas doutrinas.

abraços

Tiago Aguiar disse...

É um tanto engraçado, a questão de como as Nações invadidas e seus povos tratam a questão da ofensiva imperialista.

A questão Tribal poderia ser uma diferente versão do nacionalismo? Até que ponto o exemplo do Vietnã pode se repetir?

A questão, é que o tempo de um exército de suposto glamour e glórias agora abarca em suma desempregados e mercenários profissionais.

O anti-americanismo é alimentado com fartura,e é lamentável o caminho que a hegemonia americana trilhou.

Excelente texto Maurício.

Maurício Santoro disse...

Salve, Tiago.

Tenho conversado muito com um ex-aluno, capitão do Exército, que está servindo na missão de paz do Sudão. Lá a questão tribal também é forte.

Me parece que a força das tribos está correlata à dificuldade do Estado em se consolidar. As tribos acabam desempenhando muitas funções de governo: administração da justiça, proteção social, segurança etc.

Abraços