quarta-feira, 19 de maio de 2010

A Estratégia do Antílope



Jean Hatzfeld é um jornalista francês nascido em Madagascar que escreveu três livros sobre Ruanda. Acabo de ler o mais recente: “The Antelope´s Strategy: living in Rwanda after the genocide”. É uma extraordinária reportagem sobre como vítimas e executores do genocídio ocorrido em 1994 estão tentando conviver após a decretação de uma anistia parcial, em 2003.

Não há precedentes para o que ocorre em Ruanda. Seria como se os sobreviventes dos campos de concentração tomassem o poder na Alemanha e aceitassem de volta os nazistas que os executaram. É possível perdoar crimes tão terríveis como os que aconteceram em Ruanda? Hatzfeld não dá respostas definitivas. Seu livro não é um sermão moral ou uma obra teórica, trata-se de uma coletânea de entrevistas, histórias de vida ricas, contraditórias, cheias de medo, raiva, esperança e cautela. Muita cautela.

Ruanda foi uma pequena colônia alemã no leste da África, que passou para o controle da Bélgica depois da Primeira Guerra Mundial. O povo tutsi havia chegado à região como conquistador, pastores de gado que se impuseram como reis e aristocratas aos camponeses hutus. Mas ao longo de séculos de convivência, as diferenças tinham se diluído. Os colonizadores, no entanto, se valeram delas para dividir e governar. Quando o país se tornou independente, a maioria hutu começou a perseguir a minoria tutsi, com certo número de massacres e conflitos. Em abril de 1994, os ódios afloraram quando milícias hutus lançaram um programa de extermino em massa dos tutsis. Durante 100 dias, mataram cerca de metade dessa etnia, até serem derrotadas por uma guerrilha tutsi, que passou a governar o país.



Ruanda é extremamente pobre e não podia abrir mão das centenas de milhares de hutus que fugiram para países vizinhos, sobretudo o Congo. Houve um Tribunal Internacional para julgar acusados de genocídio, mecanismos tradicionais de justiça (como as cortes gacaca) e programas de reconciliação financiados por doadores estrangeiros, em especial pelo Banco Mundial. Essas iniciativas misturam punição, anistia parcial, assistência psicológica e doutrinação ideológica para tentar ensinar hutus e tutsis a conviver.

Os relatos de Hatzfeld se concentram num pequeno vilarejo, microcosmo para o país. Lá, a minoria tutsi é em proporção razoável, mas os sobreviventes do genocídio se sentem com medo dos hutus, e com feridas não-cicatrizadas das semanas escondidos nos pântanos, mutilados ou violentados. Houve também o trauma econômico: pessoas de boas condições de vida, que perderam muitas posses. A maioria se recuperou bastante bem em termos financeiros, embora persistam problemas psicológicos como depressão e angústia.

Claro, há momentos de esperança. Como o casamento entre um genocida hutu e sua amiga de infância tutsi, que talvez ele tenha protegido durante a violência. Ou o caso da moça tutsi que, antes da mortandade, não conseguia ter filhos. Depois do genocídio, algo aconteceu dentro dela: hoje, é mãe de seis crianças. A vida é mais forte, sempre, mesmo diante de toda a estupidez e violência.

Foto que abre o post: memorial do genocídio, em Ruanda.

2 comentários:

Angélica Rosas disse...

Para um país marcado pela intervenção externa desde sua concepção, resta a superação e a busca por uma unidade nacional.

Maurício Santoro disse...

Sim, mas ironicamente pela via de mais intervenção externa, pela pressão dos grupos de doadores internacionais, que muitas vezes impõem uma certa visão da "boa sociedade".

Abraços