sexta-feira, 28 de maio de 2010

Argentina, 1910, 2010



Disputas em torno da identidade nacional foram dos elementos mais importantes do pensamento social latino-americano no século XX. Como bem observou o filósofo chileno Eduardo Devés, tratava-se do contraste entre a busca de valores locais e os ideais modernizadores vindos da Europa e dos EUA. É possível que esse embate tenha sido mais forte na Argentina do que em outras partes da região e continua a ser uma questão relevante neste maio de 2010, em que o país celebra seus 200 anos.

O que hoje chamamos “Argentina” era parte do vice-reinado do Prata, que incluía também Paraguai, Uruguai e Bolívia. Boa parte da história do Cone Sul até 1870 é a disputa por meio da guerra e diplomacia para decidir os destinos da região. O império brasileiro manobrou para explorar as divisões no antigo vice-reinado, porque temia um vizinho forte e poderoso em suas frágeis fronteiras do sul.

No fim do século XIX a Argentina se consolidou como um país próspero, a partir das exportações de carnes e cereais para o império britânico, e da imigração em massa de europeus para colonizar suas férteis terras do Pampa. Em 1910 (foto abaixo), a Argentina era uma potência emergente, com alta renda per capita e oportunidades econômicas que rivalizavam, ou superavam, as da Europa meridional.



Por que o país declinou ao longo do século seguinte é ainda hoje uma das questões mais conflituosas que dividem liberais, peronistas, nacionalistas, socialistas e outras correntes políticas. De minha perspectiva, a prosperidade argentina não era sustentável no longo prazo devido à dependência das fortunas econômicas britânicas. A decadência do Império após a I Guerra Mundial foi fatal para o país platino. A transição política de um regime oligárquico para a democracia foi, evidentemente, muito complexa, com a dificuldade de incorporação dos pobres, a polarização política em torno (e contra) o peronismo e os freqüentes golpes militares, que culminaram no banho de sangue da ditadura de 1976-1983.

Não é fácil definir a Argentina de 2010. Continua a ser um país com excelente qualidade de vida. Buenos Aires é uma cidade deslumbrante e a riqueza da vida intelectual e cultural da nação impressiona qualquer um. Economicamente, a história é outra. A crise de 1998-2002 foi superada em termos do crescimento do PIB, mas as marcas ficaram no aumento das desigualdades sociais, na desorganização do sistema partidário e no modo como boa parte das indústrias mais importantes passaram para controle estrangeiro, inclusive brasileiro.

Há cem anos a Argentina era o país mais importante da América Latina, com ambições de desafio da liderança dos EUA sobre o continente. Hoje, ocupa um lugar bem mais ambíguo. O Brasil se consolidou como o gigante regional, mas mesmo nações menores, como Venezuela, Colômbia ou Chile têm uma agenda diplomática mais clara e objetiva. Diante do fracasso das “relações carnais” com os Estados Unidos, algumas autoridades brasileiras crêem que a Argentina poderia ser “o Canadá do Brasil”, isto é, um Estado associado, mais interessado em questões sociais do que num papel global proeminente. Não acredito que isso aconteça. Por tradição e espírito, a política externa argentina será outra coisa. O quê? Façam suas apostas.

12 comentários:

Angélica Rosas disse...

Olá Maurício, muito interessante o texto sobre a Argentina. O que mais atraiu minha atenção foi este comentário no último parágrafo, de que algumas autoridades brasileiras acreditam que a Argentina venha se posicionar em relação ao Brasil como o Canadá está para os EUA. No começo deste ano estive lá, tive a oportunidade de conhecer algumas cidades satélites da grande Buenos Aires,onde a realidade é bem diferente, e, à época, alguns argentinos demonstraram descontentamento com as relações Argentina-Brasil pois acreditam que as mesmas sejam desfavoráveis economicamente àquela nação.

Maurício Santoro disse...

Salve, Angélica.

Ao longo da última década o Brasil aumentou muito a participação na economia argentina e a balança comercial se tornou desfavorável àquele país.

No momento, há muitas tensões comerciais entre os dois países e não está fácil definir qual a melhor solução. Vem problemas por aí.

Abraços

Patricio Iglesias disse...

Meu caro:

Muito interessante o artigo. Estava esperando a óbvia aparição comentários sob o Bicentenário.

A situacão da Argentina era HOLGADAMENTE superior à da Europa Meridional em issos tempos, tenho lido várias veces istos dados sob 1940: http://www.argentina-rree.com/documentos/protohistoria/Di%20Tella%20Guido%20La%20ilusion%20Argentina%20Potencia%20resulto%20fatal%20Cr%20911208.htm

O que me resultou interessante dos festejos pelo Bicentenário e que aqui, hoje, ha que aceitar cair na "incorrecao politica" pra reconhecer que, ao menos em termos relativos, a Argentina em muitos aspectos estiva melhor no Centenário. A "história oficial", hoje, é que no 1910 toda a prosperidade era só pra uns poucos e que o povo sufria repressoes, fome, enfermedades, etc. e nao podia participar, quando hoje os niveis de educacao-salud-etc. sao melhores e temos democracia. Creio que é uma exageracao dizer que era um "inferno decorado"; é verdade todo isso e ha que manter viva a memória das vítimas da "Semana Trágica" ou a "Patagonia rebelde", mas há que reconhecer que o clima deu as condicoes propícias pelo surgimento de uma das classes médias mais fortes do mundo em issos tempos.

Concordo totalmente com voce em que o pais necessitava o mantenimento do statu quo pra se manter próspero. Talvez houvesse podido se desligar da conjuntura com uma industrializacao mais temprana, mas a oligarquia imperante em issos anos nao queria saver nada com plans de secundarizacao. "Minha vida por a amizade do Reino Unido".

Respeito a qualidade de vida, creio que a proxima volta vou te chevar fora de Recoleta, San Isidro, Tigre... as asimetrias dentro do pais (e ja da periferia de Bs. As.) sao enormes, e isso nao e novo. O celebre deputado socialista Alfredo Palacios denunciava a falta de escolarizacao e a desnutricao no Noroeste do pais faz quase 80 anos. E, nos ultimos anos, depois do Proceso e do menemismo, a educacao argentina passou de ser uma das melhores do mundo a ter niveis similares ao do resto da America Latina.

Longo, como sempre. He, he, he!

Beijos

Patricio Iglesias

Maurício Santoro disse...

Salve, meu caro.

Claro que não poderiam faltar seus comentários num post sobre a Argentina!

Diria que a situação da Argentina em 1910 era muito superior àquela dos outros países em desenvolvimento, e mesmo a de alguns países europeus. De modo que, com todos os seus problemas, ela estava na vanguarda.

Entendo que hoje o quadro é mais sombrio, mas ainda assim afirmo que vocês estão muito melhor do que os outros países da América Latina. A Argentina é sempre impressionante.

Abraços

brunomlopes disse...

Tenho muita preguiça para falar de um país que comete erros tão primários - perto deles, os brasileiros votam muito bem ao terem escolhido FHC e Lula.

Mas me parece que a política lá anda bipolar. Para conter a inflação, aplicam políticas econômicas novo-clássicas com uma fé na teoria que nem Lucas deve ter (Lucas é o comediante que escreveu essas teorias, a propósito).

Agora eles parecem ter tirado do armário um manual econômico aplicado por Vargas e Perón, com intervenção maciça do Estado na economia, crença cega no poder de políticas fiscais expansionistas, demonização dos produtos estrangeiros, proteção a indústrias ineficientes, etc.

Parece que lá a política econômica é um eterno Grenal, é 8 ou 80. Mas, nesse caso, nem o 8 nem o 80 vão resolver o problema. Desse jeito, a Argentina estará pior que o Brasil.

Maurício Santoro disse...

Salve, Bruno.

A política argentina tem sido muito polarizada pelo menos desde a década de 1930, e o Estado não é tão forte quanto no Brasil. Quando mudam os governos, saem muitos funcionários e o resultado é uma enorme instabilidade de políticas públicas, além da tendência às guinadas radicais.

Não me parece que isso vá mudar com uma eventual derrota dos Kirchner nas próximas eleições.

Abraços

Flavio Faria disse...

Fala Maurício,

Só para complementar. A Argentina do século XIX só permitia o voto de cidadões argentinos nascidos no país. Portanto, 70% da população estava excluída do processo eleitoral, pois eram quase todos estrangeiros.

Claro que o grande poder das oligarquias no controle da máquina pública logo traria problemas. Acho que um dos motivos da Argentina ter saído dos trilhos é o movimento do Radicalismo, que trouxe instabilidade a república e desordem urbana.

Logo, quando os radicais chegaram no poder, as oligarquias perderam seu prestígio e o controle dos rumos do país. Fragilizando, ao me ver, o ótimo caminho que o país trilhava no momento.

ps: Te espero mês que vêm, já reservei sua monitoria. Parabéns, também, pela matéria na Globo News, achei legal ver o Matias lá também.

Maurício Santoro disse...

Salve, Flávio.

De fato havia muitos imigrantes na Argentina sem direito a voto - algo semelhante ocorria nos EUA - mas não sei qual a porcentagem, nem a facilidade das regras de naturalização.

O Patricio, que conhece bem a história da UCR, talvez possa nos esclarecer esses detalhes, inclusive se os líderes radicais buscavam apoio junto aos imigrantes.

Em julho estamos novamente na Casa. E algo me diz que com muito trabalho!

Abraços

André Egg disse...

Depois da aula sobre história argentina aqui no post e nos comentários (bem como no texto indicado pelo Patrício), gostaria de abordar algo sobre a relação do Brasil com o vizinho.

Creio que já superamos os momentos mais agudos de rivalidade, e a noção de que a Argentina é uma ameaça.

O Brasil deveria empreender uma política muito séria de aproximação econômica com o vizinho.

A Argentina tem indicadores muito melhores, mas o tamanho da economia do Brasil pesa as coisas pro nosso lado.

Acho que o Brasil tem que tomar cuidado para não usar esse peso contra a economia do vizinho - a nós interessa, e muito, uma Argentina próspera e cooperativa.

Precisamos fazer a nossa parte, sermos mais pró-ativos em relação a isso...

Maurício Santoro disse...

Salve, André.

Há uma certa discussão nos dois governos sobre aprofundar a integração produtiva, em particular na indústria aeronáutica, mas o projeto esbarra em diversas dificuldades, inclusive em algum ceticismo dos empresários e muitos problemas de harmonização de política comercial e cambial.


Abraços

Patricio Iglesias disse...

Meus caros:

Flávio, com seu permisso, uma correiçao que nao é tao correicao. É verdade que cerca do 70% da populacao nao podia votar... o voto femenino a nivel nacional (houve excepcoes antes de 1930, como em San Juan ou alguns casos judiciários famosos) chegou em 1947, com o governo de Peron. Mas os estrangeiros nao foram o 70% em nenhum censo. O valor maximo se acercou ao 35%: "En el censo de 1914 el total de personas ascendió a 7.885.237, y se reflejó una notoria incidencia de las migraciones en la tasa de crecimiento, ya que 5.527.285 de habitantes eran nativos y los 2.357.952 restantes eran extranjeros. Hasta la fecha, en Argentina se han realizado ocho censos nacionales, el último en el año 1991, que registró un total de 32.615.528 personas." em: "http://www.correoargentino.com.ar/filatelia/2001/10.php".

Na Capital Federal sim chegou ao 50% a taxa de estrangeiros.

Sob o radicalismo, não concordo com a idéia de que desplazou à elite tradicional. O segundo presidente radical, Marcelo Torcuato de Alvear, vinha de uma das mais tradicionáis famílias argentinas, ao ponto de que seu avô, Carlos María de Alvear, foi Director Supremo das Províncias Unidas - agora, "presidente" - e um dos líderes militares nas guerras da independência e do Brasil e seu pãe o primeiro intendente de Bs. As. Obviamente era muito aristocrático - é muito lembrado pela elegancia - e defendeu sempre o liberalismo, se oponendo á criacão do Banco Central e apoiando a integracao com as potencias vencedoras da Guerra. Hipólito Yrigoyen sim foi muito mais "popular" e "estatista", mas o alcanco das suas medidas foi muitissimo limitado. A Corte Suprema era claramente conservadora e no Senado nunca posso chevar adiante projetos como a nacionalizacao do petróleo. Definitivamente, nao houve mudancas economicas importantes nos tempos da chamada "República Radical" - 1916 - 1930 - . Todo ficava oculto pela grande prosperidade que permitia ás classes manter seu nivel de ingresos e a classe média se desenvolver economica e socialmente - a época de "Mi hijo, el doctor" -. Mas a crise de 1929 rompeu a "ilusao" de que todos podiam ser felizes com uma simple estrutura agroexportadora...

Ao meu ver, os primeiros governos radicais nao supusieram mudancas importantes na economia, e ate se reforcaram os lacos com o RU e houve repressoes maiores em issos tempos do que as houve nos governos conservadores. O grande logro dissos anos foi a transparencia eleitoral e a integracao a política das classes médias, compostas na maioria dos casos pelos filhos dos imigrantes. A transicao dos governos conservadores e do radicalismo parecia "feroz" pelas revolucoes radicais de 1890, 1893 e 1905, mas finalmente foi muito pacifica, porque o rumo do pais foi tomado pelos conservadores mais pragmaticos, como Figueroa Alcorta ou Saenz Peña, que creiam que era melhor deixar o fraude e dar passo ao radicalismo que permitir que a exclusao politica da classe média chevara ao caos generalizado.

Respeito á participacao dos estrangeiros na UCR, li que houve nissos tempos conferencias de partidários naturalizados e que a Marcha Radical esta baseada num canto popular de imigrantes italianos integrados ao partido.

O Flávio me tem feito pesquisar sob o caso do voto femenino na provínica de San Juan, que só tinha escuto, e encontrei iste ótimo artigo que também fala das mulheres que votaram na mesma província em tempos do Sarmiento no século XIX: http://www.amanza.com.ar/amanda/Notas/Voto%20femenino.htm

Obrigado André por ler o artigo. Espero que tenha sido util.

Abracos pra todos e perdão que o teclado não funcione bem - e que eu não dominho a ortografia portuguesa.

Patricio Iglesias

Maurício Santoro disse...

Caríssimo,

Muchas gracias pelos seus esclarecimentos, uma bela aula sobre o desenvolvimento da democracia na Argentina.

Hoje almocei com um amigo argentino que escreve para o La Nación sobre política brasileira. Conversamos muito sobre o bicentenário e as perspectivas do país.

Abraços