sexta-feira, 27 de agosto de 2010

As Guerras da América Latina



O Estado fez a guerra, e a guerra fez o Estado. (Charles Tilly)

A América Latina é um continente estranho. Tem menos guerras que a Suíça, e mais generais do que a Prússia. (Fidel Castro)

A América Latina é um continente com poucas guerras. Em quase dois séculos de vida política independente, houve apenas três conflitos de vulto entre os países da região (Tríplice Aliança, Pacífico e Chaco), com mortes na escala de dezenas de milhares de pessoas. As nações latino-americanas mais belicosas são as menores: Paraguai, Bolívia, Peru e Equador. Os maiores e mais poderosos, Argentina, Brasil e México, são bastante pacíficos. Mesmo o Chile, com todo seu estilo militar prussiano, não luta desde o século XIX. A situação é uma anomalia para os padrões internacionais e tem gerado em anos recentes uma quantidade crescente de estudos interessantes. Tratar da guerra é discutir a formação e limites do Estado.

O acadêmico que tem realizado as pesquisas mais sistemáticas sobre o tema é o sociólogo Miguel Centeno, da Universidade Princeton. Ele interpreta a baixa quantidade de guerras na região como conseqüência da fragilidade dos Estados, sua baixa carga tributária e dificuldade de mobilizar os cidadãos. Centeno tem sido também um analista crítico dos novos papéis desempenhados pelas Forças Armadas da América Latina, em especial sua utilização no combate ao tráfico de drogas.

Outro que tem se dedicado ao tema é o historiador boliviano Antonio Mitre, que observa que quase todas as guerras latino-americanas foram motivadas por disputas de fronteiras, em particular quando o território contestado envolvia recursos naturais significativos, de guano e nitrato a petróleo, passando pelo controle de rios importantes. Ainda assim, Michael Ross, da Universidade da Califórnia, trata das “missing oil wars” do continente, notando a ausência de conflitos secessionistas, em que grupos rebeldes buscam o petróleo como base para criar um país independente.




O debate teórico é interessante, mas a meu ver não conseguiu responder a uma contradição essencial: por que Estado tão pacíficos em suas relações internacionais são tão violentos internamente, contra sua própria população? O histórico regional de ditaduras, guerras civis, e atos de barbárie é, afinal, péssimo. E por vezes esses regimes autoritários conduzem a conflitos bélicos, como nas Malvinas.

Uma saída pode ser incorporar à discussão questionamentos de outros continentes, como o ótimo livro “States and Power in Africa”, de Jeffrey Herbst, também de Princeton, que comecei a usar em meus cursos. Faz uma ótima e fértil mistura entre teoria de relações internacionais e política comparada para examinar a realidade africana, que nesse aspecto se parece com a América Latina.

A conclusão de Herbst é sombria: os líderes da África independente teriam chegado a um arranjo político de evitar causar problemas uns para os outros além das fronteiras, de modo a poder concentrar esforços na repressão a grupos étnicos/partidários/religiosos dissidentes em seus próprios países. Há uma ou outra exceção a esse padrão não-intervencionista, sempre atreladas a cruzadas ideológicas: a África do Sul do apartheid, o coronel Kadafi na Líbia, as guerras étnicas transnacionais entre tutsis e hutus, entre Ruanda e o Congo, que acabaram engolfando toda a região dos Grandes Lagos.

Outra analogia curiosa – e preocupante – entre América Latina e África é que os anos recentes, de pós-Guerra Fria e democratização, têm sido marcados pelo aumento de conflitos internacionais por recursos naturais, nas duas região. Não são necessariamente guerras, podem ser disputas diplomáticas, choques de fronteiras, ações judiciais etc. Continuo a apostar em que razões econômicas, como a alta do preço das commodities, é a influência principal. Mas o tema é aberto a interpretações.

6 comentários:

brunomlopes disse...

Salve, mestre.

Sua observação sobre as ditaduras africanas e seu pacifismo internacional e violência doméstica é interessante porque chama atenção para o aspecto étnico.

Em minhas andanças pela América Latina - a passeio, mas ainda assim que te fazem conhecer os países, conheci países com uma população de origem basicamente ameríndia (Peru e o norte do Panamá), outro com a população nativa misturada fortemente à africana (Cuba) e outro com uma população pequena, baseada em mini-fundios, e que agora está convivendo com muitos norte-americanos (Costa Rica). Em Cuba a elite branca foi embora, na Costa Rica a social-democracia fez uma partilha, e nos outros quem tem poder e dinheiro é branco (mas o inverso não é verdadeiro).

Países europeus e asiáticos são baseados em milhares de anos de história, e cada centímetro de terra é arado e habitado. Nosso continente para mim me parece às vezes um grande deserto - a população original não era grande, e foi em boa parte dizimada ou absorvida pelos conquistadores. E, é claro, em outros países a cultura original está quase à flor da pele, é como se tivessem passado um verniz latino sobre o lugar - no Peru não é difícil encontrar pessoas que falem outra língua além do espanhol, e parece que no Paraguai a situação é parecida.

O que estou querendo dizer é: os estados latino-americanos são diferentes dos europeus e asiáticos, talvez nossos conflitos domésticos não sejam tão domésticos. Os conflitos na Bolívia por petróleo não opuseram as cidades ricas e de origem espanhola daquelas cidades de origem indígena? Mesmo a nossa ditaduras não se opôs a uma classe média e um proletariado urbano que tinham origem em uma recente migração européia?

Maurício Santoro disse...

Caro,

Acho que você está corretíssimo e que há nos conflitos internos da América Latina, um forte componente étnico. Não em todos os confrontos, mas em vários deles.

E é interessante a gente se questionar em que medida as guerras acabam criando uma identidade nacional para além das divisões étnicas. Na Bolívia, a mobilização por conta da Guerra do Chaco, contra o Paraguai, foi importantíssima para a deflagração da Revolução de 1952.

Vou escrever mais sobre esses temas, penso em um artigo acadêmico a respeito.

abraços

Max Mafort disse...

Fala, MAurício. Quem vos fala é o Max que esteve com você ontem na Integração Latino-americana. Gostei mt do Blog e serei a partir de agora um frequentador assíduo! Parabéns pelos seus trabalhos e Um abraço !

Maurício Santoro disse...

Salve, Max.

Seja bem-vindo, gostei muito da nossa conversa, pena que não pude ficar para o resto do evento. O tema do post rende um bom seminário no curso de Defesa! Vou conversar com o Leo Valente sobre isso.

abraços

Anônimo disse...

Mauricio, gostaria de falar com você. Meu email é o luciano@lucianopires.com.br. Se puder me contactar eu agradeço.

Um abraço

Luciano Pires
www.portalcafebrasil.com.br

Maurício Santoro disse...

Caro Luciano,

sem problemas, lhe envio um email.

abraços