quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Edifício Yacubian



Decidi começar a ler literatura árabe contemporânea, porque cheguei à conclusão de que somente por meio dos artistas entenderei os anseios, desejos e insatisfações que originaram as revoltas democráticas que varrem a região, do Marrocos ao Iêmen. O primeiro romance da minha lista foi “O Edifício Yacubian”, do egípcio Alaa Al Aswany. Publicado em 2004, tornou-se rapidamente um sucesso internacional e foi adaptado para o cinema. É fácil compreender por quê: seu painel de personagens retrata de maneira brilhante os impasses do Egito nos anos finais da ditadura de Mubarak.

O Edifício Yacubian existe (foto), é um prédio no centro do Cairo construído durante a monarquia por um milionário armênio como um conjunto residencial para as famílias da elite cosmpolita da cidade. Os anos foram impiedosos com o Yacubian. As comunidades estrangeiras fugiram ou foram expulsas do país pelo regime militar, oficiais do Exército ocuparam apartamentos e o telhado foi favelizado e transformado num centro de pequeno comércio. Os novos ricos trocaram o centro por subúrbios nos arredores da capital e o Yacubian ficou como um símbolo da decadência do Egito. O autor teve um consultório dentário no prédio.



A beleza do romance de Aswany é capturar o mosaico de figuras humanas cômicas, tristes e trágicas que circulam pelo edifício e formam um microcosmo da sociedade egípcia contemporânea. O mais cativante personagem é Zaki Beki el Dessuqi, um aristocrata que tenta manter os hábitos de playboy da monarquia, dedicando-se às mulheres e tentando encontrar um pouco de beleza e suavidade em meio ao declínio que o cerca. Seus diálogos com a jovem amante, que sonha em deixar o Egito, são o melhor do livro:

“Não consigo entender sua geração. Na minha época, o amor pelo próprio era como uma religião. Muitos jovens morreram lutando contra os britânicos.”
“Vocês fizeram manifestações para expulsar os britânicos? Certo, eles se foram. Isso significa que o país está bem?”

Outro bom personagem é Taha el Chazli, o inteligente e compenetrado filho do porteiro do edifício, que vê sua ascensão social barrada pela falta de conexões pessoais com as elites e pela corrupção e violência do regime, e se envolve com um grupo radical islâmico. Impressionam as descrições sobre a ação dos fundamentalistas nas universidades egípcias, agindo sobre os migrantes rurais e os jovens pobres que pela primeira vez chegam ao ensino superior.

Em certos trechos do romance, os personagens soam um tanto forçados, como a figura de Hagg Azzam, um empresário rico que resolve ingressar na política sob os auspícios do corrupto partido nacional de Mubarak, ou Hatim Rachid, um jornalista sofisticado e liberal que precisa manter sua homossexualidade em segredo. Mas o efeito mosaico, de pintar o quadro geral do Egito, compensa largamente esses pequenos problemas.

O romance mostra de forma clara as raízes da humilhação e raiva dos egípcios, mas deixou de fora outro elemento essencial das revoltas atuais: a esperança. Entre os personagens, não há nada parecido com os jovens modernos, dinâmicos e versados em tecnologia que foram tão importantes nas manifestações, embora o autor seja um profissional de classe média (dentista) e militante anti-Mubarak. A realidade será sempre mais rica do que a ficção, e ocasionalmente mais bela, como nestes tempos interessantes em que nos coube viver.

2 comentários:

Carolina disse...

Estava sentindo falta da literatura... é sempre bom saber que podemos recorrer a um bom livro para ajudar a refletir sobre o que está acontecendo ao nosso redor...

Maurício Santoro disse...

Querida,

Você sabe que as minhas férias da literatura nunca duram muito tempo e a cabeceira está repleta de autores do Oriente Médio - além de árabes, turcos e israelenses.

beijos