terça-feira, 9 de agosto de 2011

Os Distúrbios em Londres: um depoimento pessoal



Por Nicole Mezzasalma
Jornalista - Blogueira Convidada

Moro em Londres há oito anos e sempre me senti segura na cidade; mesmo quando a capital inglesa foi alvo de ataques terroristas em 2005, ainda assim havia uma sensação de união, de comunidade, de resistência a tudo e todos que pudessem ameaçar nosso estilo de vida.

Ontem, pela primeira vez, fiquei preocupada. Saindo do trabalho, em Croydon, ao sul de Londres, eu vi os carros de polícia e dezenas (quiçá centenas) de jovens que se aglomeravam nas ruas se preparando para alguma coisa, por volta das seis da tarde. Horas depois, acompanhando o noticiário na TV, vi uma loja de móveis por onde passo todos os dias – e, ironicamente, de onde sou “prefeita” no jogo social Foursquare – ardendo depois de ser incendiada.

A confusão na cidade começou no sábado à noite, após um protesto pacífico em frente a uma delegacia no norte de Londres pela morte de um residente local. Mark Duggan morreu após ser atingido por um tiro de um policial, mas o contexto em que isso aconteceu ainda não está claro. A família de Duggan diz que ele era um pai de família pacífico, mas outras fontes comentam que ele estava armado e atirou na polícia primeiro.

Independentemente da causa, as consequências da morte de Duggan estão sendo sentidas até agora. Começando em Tottenham, onde ele faleceu, grupos de arruaceiros se aproveitaram do momento para saquear lojas de rua, tendo como alvo primário aquelas oferecendo celulares, productos eletrônicos, roupas e tênis.

O que teve início como um evento isolado rapidamente se espalhou pelo norte da cidade. Grandes áreas comerciais tornaram-se o objetivo, e saqueadores vieram de carro de outras partes da cidade para encher suas malas de produtos “adquiridos” no processo.

A situação piorou um pouco no domingo, quando novas áreas no norte e leste de Londres foram atacadas por grupos de jovens organizados e prontos para brigar com a polícia e saquear lojas, e atingiu ponto de ebulição na noite de segunda-feira. Ontem, o caos tornou-se generalizado e atingiu áreas diametralmente opostas da capital. Além das lojas de eletrônicos e celulares, os baderneiros pareciam atacar indiscriminidamente todo e qualquer estabelecimento comercial, desde charity shops (lojas que vendem produtos usados para arrecadar dinheiro para caridade) até cafeterias e restaurantes locais. Em Croydon, a loja por onde passo todo dia – há cinco gerações um negócio de família, que sobreviveu a duas guerras mundiais – ardia em chamas, e em Ealing jovens invadiram uma loja de roupas de criança, que foram prontamente espalhadas pela praça do outro lado da rua e penduradas nas árvores como troféus.

Os eventos das últimas noites podem ser racionalizados política e socialmente: o desemprego em Londres é alto, o mais alto dos últimos 30 anos; as comunidades onde a confusão começou são pobres e marginalizadas, além de sofrer constante repressão policial por causa de brigas de gangues e armas de fogo; os jovens sentem que não têm perspectivas, e quem não acha que tem um futuro não tem nada a perder; e com estruturas familiares pulverizadas, não há disciplina em casa ou nas ruas.

Ainda que eu compreenda as razões sociais e políticas por trás da frustração destes jovens, nada justifica a violência sem freios que mutilou Londres e outras cidades da Inglaterra (a confusão se espalhou para Bristol, Liverpool, Birmingham, Leeds e Nottingham ontem). Policiais reportaram ver mães com crianças entrando em lojas e usando seus filhos para carregar os produtos roubados, e muitos dos jovens envolvidos nem sabem qual partido político está no poder no país – eles viram uma oportunidade de ter um Xbox, o último modelo de tênis ou uma TV de 42 polegadas e aproveitaram a sua chance. Os seis mil policiais que patrulhavam as ruas da cidade ontem à noite não tinham equipamento ou preparo para lidar com a bagunça, e na maioria dos casos havia entre cinco e dez arruaceiros pra cada policial.




No bairro onde eu moro, o centro comercial local foi atacado por grupos de jovens, que brigavam entre si pelos objetos saqueados e riam enquanto empurravam carrinhos de bebê recheados de brinquedos roubados de uma loja de produtos para bebês. Ao mesmo tempo, hoje a cidade está usando redes sociais como Facebook e Twitter para organizar operações de limpeza nas áreas afetadas. Enquanto alguns têm a mentalidade de “nós contra eles” (isto é, pessoas de bem contra vândalos), outros vêem os eventos das últimas noites como algo inevitável e até esperado – o jornal The Guardian publicou há algumas semanas como os cortes que levaram ao fechamento de alguns clubes sociais para jovens nas áreas mais carentes da cidade poderiam levar a surtos de violência, e o que estamos vendo agora parece ser a materizaliação da profecia anunciada.

O primeiro-ministro David Cameron e o prefeito Boris Johnson voltaram à cidade hoje, adiantando forçadamente o fim de suas férias, e o Parlamento britânico foi chamado do recesso para discutir os problemas na quinta-feira. A preocupação agora é evitar que a noite de hoje seja um repeteco de ontem e, quando a paz voltar a reinar, atacar as causas do problema. Uma coisa é certa: o que está acontecendo em Londres não é uma revolução, e as pessoas envolvidas não estão lutando pelo que acreditam – elas estão demonstrando que podem fazer o que querem, quando querem, impunemente. E se você não acredita em mim, escute essa gravação de uma repórter da BBC entrevistando garotas de Croydon envolvidas na confusão de ontem.

13 comentários:

Mário Machado disse...

Excelente o relato. De longe ontem cheguei a conclusões parecidas. Parabéns a blogueira convidada pela escrita fluida e relato corajoso.

Abs,

LLCeR aka Salazar disse...

Realmente tudo muito triste. Tenho amigos (Nicole é uma deles) em vários pontos afetados. Todos muito assustados. O relato é bem sincero e eu bato palmas.

Leandro Guiraldeli disse...

Há algo em comum nos conflitos sociais, jovens que não vêem perspectivas de um futuro seguro, em meio àqueles que possam tentar fazer algo por si próprios. Mas é a maioria que dita os acontecimentos, o que ocorre também em outros países que passam por momentos parecidos de crise.

Abs.,

Bruno Borges disse...

Ótimo texto. Realmente vai ser difícil entender exatamente as causas disso tudo. Mas tem um niilismo e desilusão enormes nisso aí. É triste ouvir isso, por exemplo, e não se revoltar:

http://www.bbc.co.uk/news/uk-14458424

Leo Teles disse...

Tendo a discordar da parte relativa aos problemas sociais (desemprego, etc) havendo afetado isso. Morei justo em Tottenham por 4 anos, 9 meses em Wood Green e conheco bem a realidade deste povo. Na sua IMENSA maioria sao criancas que cresceram acostumadas a mamar nas tetas do Estado. Cresceram em uma 'council house', enganavam o governo dizendo que estavam procurando trabalho, viviam do seguro desemprego e bicos. Cameron comecou a tentar apertar as coisas de modo a aliviar a pressao do 'bem-estar' social dos trabalhistas. O que acontece quando voce manda uma renca de vagabundo trabalhar? O problema virou cultural. Este choque ja se via acontecer desde que morei la. Wood Green era palco de brigas de gangs constantemente, so que a cultura gangster enraizou na juventude de baixa classe social/ educacional inglesa. As mocas da entrevista sao assim:inglesas brancas, baixa classe social/educacional [tudo isso é nitido na maneira delas falarem] e que nao têm NADA na cabeca. O 'The Times', lembro, ha muitos anos vem publicando reportagens ASSUSTADORAS sobre como cresciam essas gangs na capital. Grupos pequenos de arruaceiros reais, que ganham corpo em uma socieadade que esta acostumada a confrontar policiais. Quando a MET aprender que precisam reagir com brutalidade (E O POVO DEIXE DE RECLAMAR) isso melhroara... Experiencia pessoal !

Nicole disse...

LmT, eu concordo com você - também acho que o "nanny state" britânico é a maior causa por trás dessa "geração perdida", que na verdade só é perdida porque quer. Diferente do Brasil, aqui eles têm escola, hospital e casa de graça, e só não usa essas ferramentas pra sair da "pobreza" quem não quer. Mas não quis ser muito parcial no texto porque muita gente não conhece o contexto. :)

Maurício Santoro disse...

Salve, pessoal.

Bom debate, sigamos os acontecimentos. Fico me perguntando se os distúrbios atravessarão a Mancha e chegarão, novamente, às cidades francesas.

Leo, daqui a pouco desembarco em Salvador.

abraço

Glaucia Mara disse...

O que começou como um protesto pacifico para esclarecer um crime (vale lembrar que a Scotland Yard nao vive seus melhores momentos, e todos que acompanhamos as investigaçoes do caso Jean Charles, temos razoes para desconfiar), acabou virando puro vandalismo.
É verdade que existe uma verdadeira geraçao perdida, que se acostumou a viver, com o minimo esforço as custas de um estado, que agora já nao pode pagar essa conta de beneficions.
Aqui na Espanha, o desemprego dos jovens é de quase 40%, um nivel insustentavel. Tudo isso, junto com a tipica xenofobia nos momentos de crise, culpando os imigrantes por todos os problemas, é um barril de polvora pronto pra explodir. Seja na forma de protestos pacíficos, seja na barbarie recente da Noruega, ou essa confusao toda na Inglaterra. É só uma questao de tempo, e esperar pra ver onde vai ser o próximo estopin.

rafael disse...

excelente relato, não conheço o suficiente para comentar com segurança, mas esses distúrbios na Inglaterra me lembram muito mais os de Los Angeles nos anos 1990 que os dos banlieues franceses, não me lembro de ter lido sobre grande números de saques na frança.

Leo Teles disse...

Nicole,

Gostei muito da dura resposta de Cameron. Faz-se necessario algo assim em Londres, cidade que adotei como minha por paixao. Era algo que deveria haver acontecido ha tempo. Discordo que se deva incuir o exercito na jogada, acho que a Scotland Yard é mais do que capaz de lidar com a situacao, precisam apenas de LIBERDADE DE ACAO DURA. Os jovens precisam aprender da maneira dura o braco forte da lei e os limites da convicencia social - nao podem fazer o que bem quiserem. Torco para que de certo e Londres volte a ser linda e pacifica. Sorte para voces !

Wellington Amarante disse...

Disseram aos jovens que a política era algo podre e agora cobram motivações políticas. Disseram que deviam consumir e agora a forma de consumo encontrada não é aceita. Violentaram esses jovens durante toda sua vida e agora que a violência extrapolou as fronteiras "aceitáveis" ela passou a existir. Interessante ver isso ocorrer na Inglaterra. Berço do capitalismo. Talvez isso explique alguma coisa.

Anônimo disse...

Realmente acontecimentos lamentáveis, mas por outro lado trás à luz a realidade do milagre capitalista. Raras foram as oportunidades em que as mazelas existentes nos ditos países do primeiro mundo nos foram mostrada, os menos avisados, aqueles que como a maioria aqui nunca tiveram a oportunidade de conhecer em loco, viam nestes países o paraíso, onde não existia miséria nem miseráveis. As causas aqui apontadas por alguns, até pouco tempo nos era apresentado como exemplo de atuação do estado em proteção aos menos favorecidos.

bm disse...

Realmente não concordo com atos de vandalismo, e estou longe de apoiar esse tipo de coisa. Até por que vivo muito bem, tenho meu pai que, na medida do possível, pode dar tudo que preciso, paga uma ótima escola para mim e pela lógica não irei sofrer tanto com os vai e vem da economia global.
Falar que o Estado banca isso e aquilo é muito fácil, é para isso que temos grandes empresas midiáticas controladas por grandes pessoas e assim (enganam) passam qualquer informação para quem está a fim de viver em um mundo de contos de fadas onde existem apenas o bem e o mal. No entanto é quem vive lá, as custa do Estado, sabe muito bem o que está acontecendo, eles sim sentem na pele isso tudo. E o que adianta?
Em toda a história foi assim, sempre são eles, aquela maioria não escutada, que realmente entendem da economia do mundo, por sempre quando ela da uma balançadinha o desemprego, a fome, e tudo que acompanha isso, cai para o lado mais fraco, e alguém escuta eles?
Muito pelo contrario, as pessoas só pensam em julgá-los, seja pela cor da pela, pela roupa que vestem, pelo bairro onde moram. E quando andam na rua é motivo de suspeita, quando tentam falar não são escutados, quando fazem um protesto em massa são simplesmente tratados como pessoas que provocam tumultos.
Portanto, por que não fazer tudo que estão fazendo?
A mesma coisa acontece com criança que não recebe a atenção dos pais e ficam rebeldes para que assim consigam suas atenções.
Pode sim, ter jovens que estão apenas se aproveitando da situação para conseguir de uma forma injusta aquilo que por uma injustiça eles não têm, mas ninguém se rebela dessa forma atoa. Tudo tem uma explicação, e simplesmente condená-los não é a solução mais plausível.