quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Discurso de Dilma



O político e diplomata brasileiro Osvaldo Aranha foi o primeiro presidente da Assembléia Geral da ONU e por conta disso, o representante do Brasil (presidente, chanceler, embaixador) sempre abre as deliberações desse órgão, com a tradição de que seu discurso seja uma análise panorâmica da situação mundial. Ocasionalmente primorosa, como no célebre “discurso dos 3Ds” (Desarmamento, Descolonização, Desenvolvimento) do embaixador Araújo Castro, em 1963. Com Dilma Rousseff, pela primeira vez a Assembléia Geral foi iniciada por uma mulher. O cerne da fala da presidente foi a necessidade de mais esforços multilaterais para superar a crise econômica global.

A ênfase no multilateralismo, na igualdade entre os Estados e nos direitos dos pequenos países tem sido pilar da política externa brasileira desde o início do século XX e o discurso de Dilma reforçou esta linha, centrando no enfrentamento da crise econômica mundial e ressaltando o dinamismo brasileiro como mercado emergente, fazendo o constraste entre o aumento do desemprego na Europa e nos EUA e sua redução no Brasil.

Dilma preconizou a ONU – e não o FMI ou o Banco Mundial, onde os votos são baseados em cotas de contribuições financeiras – como fórum para debates sobre a crise econômica, defendendo a criação de mecanismos de verificação mútua para políticas fiscais, monetárias e cambiais e negociações sobre as dívidas soberanas. Reforçou as críticas brasileiras às “guerras do câmbio” e ao protecionismo (embora o Brasil tenha adotado medidas assim, como o aumento de impostos a carros importados da Ásia), bem como a demanda por reformas da instituições internacionais, para torná-las mais representativas aos emergentes.

Questões de paz e segurança também foram abordadas pela presidente, sobretudo no caso da Primavera Árabe. Dilma afirmou que a liberdade é um ideal universal e que o Brasil “repudia veemente” as repressões dos governos autoritários contra os civis, mas também criticou o uso da força e frisou que as soluções devem ser buscadas pelas populações locais. Condenou as doutrinas em voga na OTAN ao destacar que além de falar em “responsibilidade de proteger” (R2P) é preciso tratar da “responsabilidade ao proteger”, isto é, como são executadas as chamadas intervenções humanitárias. E defendeu, uma vez mais, a reforma no Conselho de Segurança da ONU.

Um dos momentos mais aplaudidos do discurso foi seu anúncio ao apoio ao reconhecimento do Estado palestino pela ONU – o governo brasileiro já o reconhece há pouco menos de um ano. Frisou a tradição de convivência pacífica entre árabes e judeus no Brasil e frisou a legitimidade do pleito de todos esses povos em viver em paz no Oriente Médio.

A visita de Dilma a Nova York se deu em meio a grande destaque da imprensa internacional, com a presidente sendo nomeada semanas atrás pela Forbes a 3ª mulher mais poderosa do mundo (atrás apenas de Angela Merkel e Hilary Clinton), capa da revista Newsweek, em uma reportagem elogiosa, e lançando junto com Barack Obama uma iniciativa em defesa de governos abertos e transparentes – mesmo que o Senado brasileiro – leia-se Sarney e Collor - retarde a aprovação da Lei de Acesso a Informação.

Em suma, a presidente está em bom momento internacional, mas convém não esquecer que os problemas e contradições de seus aliados no governo representam obstáculos para que o país alcance os objetivos ambiciosos de sua política externa.

Pós-Escrito: duas entrevistas em que analiso o discurso da presidente:

- Rádio da Câmara dos Deputados: Dilma e a tradição diplomática do Brasil.

- Jornal Correio Braziliense: Um discurso contundente.

8 comentários:

Marc Jaguar disse...

Grande Mestre e Amigo!
O discurso foi bem formatado para o local e o evento em questão.
Na minha opinião, ao contrário do que estou lendo em alguns sites de notícia, o fato da Presidente Dilma ter sido a "1ª mulher a fazer o discurso de abertura da Assemb. Ger. da ONU, não se enquadra como um fato his'torico para a organização, uma vez que o Brasil, desde 1947, tradicionalmente faz o discurso de abertura do evento. Vale dizer que, se um dia tivermos um presidente negro, albino, portador de necessidade especial ou anão, do mesmo modo, o discurso de abertura será feito pelo mandatário brasileiro.
Igualmente, achei que a analogia feita pela Pre. Dilma em relação à convivência entre árabes e judeus no Brasil e no Oriente Médio é de um minimalismo primário. A construção desse convívio social aqui e lá nada tem em comum e pouco pode ser aproveitado em termos de aspectos comuns. Em suma, acho um erro a Presidente tentar passar a imagem de que poderíamos adotar algum modelo para a Cisjordânia, por exemplo, do que acontece na Rua 25 de março em SP.
De resto, achei que o discurso foi bem pontuado.
Grande abraço!

Mário Machado disse...

Faço minhas as palavras de Marc Jaguar.

Maurício Santoro disse...

Salve, meus caros.

Acho que algumas das minhas amigas vão brigar com vocês :=)

Falando sério, é importante para o Brasil, e para a ONU, ter uma mulher abrindo a Assembléia Geral, ainda mais num momento de grandes mudanças nos países árabes, em que os direitos femininos estarão na ordem do dia.

O tema dos árabes e judeus no Brasil sempre é muito citado nos discursos diplomáticos brasileiros. Claro que é um certo exagero, mas valoriza a convivência pacífica entre religiões por aqui, um trunfo e tanto no mundo do jeito que está.

abraços

Anônimo disse...

Maurício,
concordo contigo, é importante ter uma mulher discursando. Quando ela diz que é a voz da democracia, mostra o avanço dos últimos anos, elegendo mulheres, negros ou indígenas para o cargo máximo do executivo de muitos países.
Confesso que fiquei emocionada ouvindo ela falar. É uma conquista, e o Marc que me desculpe, não importa que este rito caiba ao Brasil desde a criação da ONU. Essa é uma conquista da sociedade brasileira, e precisa ser sim mostrada!
Carol

Glauco Paiva disse...

Pois é... Mas toda essa coisa de "Primeira Mulher a abrir a UNGA"... Sei não. Achei um pavão enfeitado, para dizer a verdade. Há décadas temos um representante brasileiros proferindo o discurso inicial, então sabe-se que ela poderia levar esse troféu pra casa desde outubro de 2010. Por que tanto estardalhaço? No mais, penso que o dicurso foi baseado na arte do possível. Mas pelo menos marcou uma posição: foi mais digno do que tímido voto de não-intervenção no Conselho de Segurança enquanto o Khaddaffi bombardeava civis na Líbia.

Marcelo L. disse...

Prezado Maurico,

Tenho como o Marc Jaguar e o Mario que o discurso é bem pontuado, acredito sim ela ser mulherser importante.

Em termos de política externa a Dilma assim como em política interna carrega a ambiguidade de seus apoios.

De um lado fala em democracia enquanto o Chaves desinstitucionaliza a Venezuela, a declaração desastrada do Brasil sobre a Síria, além de grandes desconfianças entre os árabes (posso citar os lugares que acompanho na internet e foruns não vejo a menor simpatia ao conrátio)sobre a posição pró-ditadures como Gaddafi etc.

Há fortes críticas no Paraguai sobre o imperialismo brasileiro.

Em termos de projeção de força o F-X-2 e seus adiamento são o retrato da falência entre discurso e ação de nossas autoridades.

No campo interno bem o que falar de governo que de prático vai diminuir atenuar ainda mais as proteções a sociedade da lei 8666 e das licenças ambientais.

As contradições internas do governo refletem o presidencialismo de coalizão, mas perpassam para atuação internacional onde as empreteiras e grandes firmas ligadas ao agro-negócio tem interesses em países pouco afeitos aos direitos humanos ou que tem projetos mirabulantes como o bolivariano.

Abs

Maurício Santoro disse...

Salve, Carol.

Fiquei impressionado com a ótima repercussão do discurso entre muitas amigas que em geral não acompanham temas internacionais ou política externa. Dilma tocou em algo importante.

Dom Glauco,

Não estou certo se, em termos protocolares, ela poderia ter discursado em nome do Brasil sem ser chefe de Estado, chanceler ou embaixadora na ONU. No entanto, este último posto é ocupado já a algum tempo por uma diplomata, a embaixadora Maria Viotti. Nesse sentido, a abertura feminina da AGNU poderia ter ocorrido antes, mas não teria o mesmo impacto do que foi com a presidente.

Caro Marcelo,

Talvez o maior desafio para a diplomacia brasileira, no curto prazo, seja como se posicionar com relação à Primavera Árabe. Isso vale um post por aqui. Com certeza, eu gostaria de ver posições pró-direitos humanos. É difícil conciliá-las com os interesses brasileiros na região e significa ter que mudar vários pontos tradicionais da agenda externa. Mas creio que chegou a hora.

Vou desenvolver o tema pelas próximas semanas, porque rende um ótimo papo.

abraços

Raphael Tsavkko Garcia disse...

Inluí citação sua a post no blog internacional colaborativo Global Voices Online!=) http://pt.globalvoicesonline.org/2011/09/30/brasil-dilma-rousseff-onu/