quarta-feira, 29 de julho de 2009
A ONU e a Responsabilidade de Proteger
Um amigo funcionário da ONU certa vez me contou como acompanhou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, numa reunião com o então secretário-geral Kofi Annan. Chávez passou uma hora se queixando do processo de reforma das Nações Unidas, alegando que era pouco transparente e não representava as demandas dos países em desenvolvimento. Após infrutífero debate, Annan se irritou e disse ao presidente que, se ele discordava dos rumos da reforma, deveria pedir um voto contrário na Assembléia Geral: “Sabe quem acompanhará o senhor? Cuba, Irã e Coréia do Norte”. Diante da perspectiva, Chávez desistiu da idéia, mas meu amigo julgava que ele teria apoio amplo, sobretudo se moderasse seu discurso, porque havia muita insatisfação por como os países ricos conduziam a organização. Lembrei da anedota nestes dias, em função da polêmica envolvendo a “Responsabilidade de Proteger” (R2P no jargão).
Pequeno contexto: desde que a Guerra Fria terminou, houve significativo avanço dos direitos humanos nos fóruns multilaterais, por meio das conferências sociais da ONU e da criação do Tribunal Penal Internacional. Esses instrumentos não impediram as tragédias humanitárias das décadas de 1990/2000 – os genocídios nos Bálcãs e na África, a guerra no Congo – mas pelo menos estabeleceram quadro normativo que ajudou a lidar com as crises, e em alguns casos (Libéria, Serra Leoa, Kosovo, Bósnia) auxiliou na punição de culpados e na estabilização pós-conflito.
Em 2005 a ONU adotou a R2P a partir de grupos de pressão que queriam intervenções internacionais para deter governos que cometessem atrocidades contra suas próprias populações. A idéia não é nova: surgiu das experiências traumáticas do Holocausto nazista na Segunda Guerra Mundial, e se consolidou desde 1945 com uma série de transformações que levaram os indivíduos a se tornarem sujeitos do direito internacional, com uma série de garantias frente a seus próprios Estados.
Nesse sentido, a R2P refletia a conjuntura mais intervencionista do pós-Guerra Fria, quando os principais violadores não eram mais grandes potências como a Alemanha, mas Estados frágeis como Sudão ou Ruanda. Contudo, o conceito sempre foi polêmico. Países em desenvolvimento o encaravam com desconfiança, temendo que fosse manipulado em detrimento de seus interesses, como ferramenta de domínio neocolonial. Preocupações agravadas pelo uso da R2P por líderes como Tony Blair, em justificativa à invasão do Iraque.
Agora a R2P está sob ataque por coalizão basicamente formada pela União Africana e pelos países da ALBA. O presidente da Assembléia Geral da ONU é o padre nicaragüense Miguel d´Escotto, ex-chanceler da Revolução Sandinista. Ele organizou um seminário com duras críticas ao R2P que causou mal-estar nas Nações Unidas, em particular porque ocorreu poucos dias antes do tema ser debatido na Assembléia, e quase simultaneamente à cúpula de líderes africanos que atacou o trabalho do Tribunal Penal Internacional, sugerindo que as nações do continente poderiam se retirar dele.
A ofensiva contra o Tribunal em parte se deve a uma série de erros de seu presidente, o advogado argentino Luis Ocampo, mas reflete o pavor de diversos ditadores de terem o mesmo destino que o atual presidente do Sudão, Omar Bashir, que foi indiciado por crimes contra a humanidade, ou do ex-tirano da Libéria, Charles Taylor, que está em julgamento. Além do medo da cadeia, há preocupações legítimas de que o Tribunal adota posições rígidas, que dificultam a negociação de acordos de paz – que, com freqüência, implicam a concessão de anistias totais ou parciais para culpados de violações de direitos humanos.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
4 comentários:
salve, santoro,
bem na mosca o post pra quem pensa além de suas provincianas fronteiras e consideram a totalidade dos seres humanos.
sou fan incondicional da responsabilidae de proteger (r2p) e do tribunal penal internacional da onu, pois creio ser a aplicação, ou melhor, a continuação da aplicação dos direitos humanos.
diferentemente dos credos religiosos, permanentemente em conflito entre suas verdades míticas, os direitos humanos são universais, apesar do risco do modismo do relativismo cultural. seria o dispositivo humano mais próximo de ser aplicados em qualquer lugar do planeta, independentemente da tradição religiosa, política ou econômica de um povo.
por fim, pra se ter uma idéia do medo que os ditadores de plantão ou do passado recente têm do tribunal penal internaciona, vide os torturadores do golpe brasileiro e os assasinos da libéria e, como o amigo citou, do sudão.
parabéns pela aula, compadre.
abçs
Salve jogador,
Esse debate "r2p" tem uma ligação (nas origens) com Boutros Ghali. Creio que o conceito de "soberania enquanto responsabilidade" foi fundamental para a quebra do padrão seletista dos direitos humanos na era da bipolaridade.
Para não sofrer intervenções humanitárias o Estado deve, além de cumprir seu papel vestifaliano, cumprir também a tarefa de proteger seus cidadãos (especialmente não perseguir minorias étnicas). A ironia, como ressalta o Thomas Weiss é que o Estado, criado para proteger seus cidadãos, passou a ser um perigo para seus próprios cidadãos (Sudão, Ruanda, etc.)
Especialmente eu acho que Boutros Ghali foi muito importante nessas origens de reinterpretação e ampliação dos temas das intervenções.
Mas no fim, acho que muitos se esquecem que são questões sobre a estrutura do CS que limitam as opções da ONU também.
abração jogador.
Salve, Carlos.
Obrigado. Admiro o conceito de R2P, mas há um lado nele que me assusta um pouco. Às vezes, muito.
Grande Helvécio,
Tens razão, há muito da origem do conceito na Agenda pela Paz do Ghali.
Abraço
Ola'. Sou estudante de Mestrado, escrevendo sobre R2P e trabalhando atualmente como fellow no Global Centre for the Responsibility to Protect, sob o Ralph Bunche Institute, dirigido pelo Prof. Weiss. O conceito de "Soberania como Responsabilidade" foi cunhado pelo ex-diplomata Sudanes, Prof. Francis Deng, em seu trabalho sobre refugiados. Deng e Roberta Cohen escreveram varios textos sobre o assunto. Obrigada pelo espaco, Juliana Rosa.
Postar um comentário