quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Um Olhar sobre Nova York

No início era Mannhata ou Manata, a “ilha das colinas”, como a chamavam os povos indígenas. Com uma excelente baía e ao lado do rio que permitia a exploração do continente americano, logo chamou a atenção dos exploradores europeus. Os holandeses a compraram a nela construíram uma pequena cidade, Nova Amsterdã, que terminava em um muro poucas centenas de metros ao norte do porto. Os britânicos a tomaram pela guerra e a rebatizaram como Nova York. Sua história se confunde com a da economia global dos últimos 400 anos, e com as próprias mudanças no urbanismo. Cheguei aqui no domingo e fico cerca de um mês, lecionando e pesquisando no Observatório sobre América Latina da New School University.

Nova York era um pequeno porto de 10 mil habitantes quando os Estados Unidos se tornaram independentes, e a cidade foi praticamente destruída na guerra de independência, com ocupação britânica e dois grandes incêndios. Mas rapidamente se recuperou, juntando suas vantagens naturais e o dinamismo empreendedor de seus comerciantes, que inventaram novas maneiras de vender seus produtos (como lançar seus navios ao mar de forma regular, com ou sem muitas mercadorias a bordo). Sediou o governo americano em seus primeiros anos, mas o impulso para o crescimento veio na década de 1820, com a construção de um canal ligando à cidade aos grandes lagos, e por tabela à próspera agricultura do Meio Oeste, então um dos celeiros do mundo.

A cidade multiplicou sua população e virou o local de algumas das favelas miseráveis para imigrantes, em particular na parte leste de Manhattan. Os ricos começaram a migrar para o norte, em especial ao redor do novo Central Park, e os avanços nas ferrovias (e posteriormente, o automóvel) permitiu que as pessoas passassem a morar bastante longe do seu local de trabalho. Nova York cresceu para além da ilha original, e no fim do século XIX incorporou municípios e vilarejos vizinhos, como o Brooklyn, interligando-os numa complexa rede de estradas, pontes e linhas de metrô. Novas tecnologias de construção permitiram o surgimento dos arranha-céus, que dominaram o horizonte da cidade e tornaram-se alguns de seus símbolos mais conhecidos.

A Nova York poderosa e orgulhosa mergulhou numa crise nas décadas de 1960 e 1970. As indústrias deixaram a cidade, a classe média fugiu para os subúrbios ou municípios vizinhos e a arrecadação de impostos caiu, ao mesmo tempo em que a prefeitura aumentava gastos, expandindo a rede de serviços públicos para tentar lidar com as tensões sociais que então explodiam pelos Estados Unidos. A cidade faliu e a degradação e violência de áreas como Times Square e Bronx viraram ícones da crise urbana americana.

Hoje sabemos que eram as dores do parto, da transição de uma economia industrial para a nova etapa de desenvolvimento baseada em serviços – financeiros, de tecnologia da informação, de design, consultorias etc. Nova York e outras cidades americanas, como Pittsburg, conseguiram resolvê-la bem. Algumas, como Detroit, até hoje não superaram a crise. Nem os ataques terroristas de 11 de setembro conseguiram alterar a guinada rumo à prosperidade. Nova York atrai pessoas de todo o planeta – quase metade dos habitantes é de fora! – e o ambiente cosmopolita, multicultural e dinâmico que eles dão à cidade não tem preço.

Contudo, há muitos problemas. A infraestrutura é deficiente e está defasada com relação às novas metrópoles do Oriente, como Cingapura e Dubai. A desigualdade é enorme, maior do que a do Brasil, e com frequência tem implicações étnicas e culturais. Manhattan é caríssima, uma espécie de playground para ricos e turistas, e muitos lamentam os efeitos negativos disso para a coesão dos bairros e das comunidades.

Ainda assim, Nova York tem lidado melhor do que os Estados Unidos como um todo com as ansiedades e tensões contemporâneas, como crise econômica, medo do terrorismo, e do declínio. A cidade tem uma capacidade enorme de se reinventar e de absorver os fluxos criativos dos seus muitos filhos adotivos.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A Dama de Ferro

Este filme é sobretudo um ensaio sobre o envelhecimento, o luto e o vazio que fica após o exercício do Poder, centrado na figura da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Duplamente outsider – por ser mulher e por suas modestas origens sociais – ela ascendeu à liderança do Partido Conservador em momento de severa crise econômica, implementou reformas controversas no Reino Unido e foi decisiva para a opção britânica de retomar pela guerra as ilhas Malvinas, após a ocupação pela Argentina. Além de tudo, Meryl Strep nos brinda com um de seus melhores desempenhos como a protagonista, pelo qual foi indicada pela 17ª vez ao Oscar.

Margaret Thatcher era filha de um pequeno comerciante, dono de quitanda, e a relação com o pai está bem mostrada no filme, que o ilustra como a fonte dos ideais de autoconfiança, ética do trabalho e uma certa obstinação – para não dizer teimosia – em suas escolhas individuais. Ela conseguiu se formar em Oxford, em Química, numa época (anos 1940) no qual poucas mulheres chegavam lá e pouco depois se lançou na carreira política, como candidata ao parlamento, apesar de atitudes condenscendentes da cúpula dos Conservadores.

Ela se casou aos 24 anos, com Denis Thatcher, um industrial retratado no filme como um homem bem humorado, íntegro e apoio fundamental na carreira da esposa. Segundo a maioria dos relatos, ele era isso mesmo, mas também um milionário com visões extremistas, como querer proibir sindicatos no Reino Unido. Tiveram um casal de filhos, que aparecem no cinema como tendo uma relação algo fria e distante com a mãe – eles questionaram essa interpretação em entrevistas após o lançamento do filme. A narrativa se passa nos dias atuais, com uma Thatcher idosa e senil, com dificuldades de distinguir passado e presente, lembrando-se de sua vida à medida que prepara-se para doar as roupas que pertenceram ao marido, falecido há anos, mas a quem ela ainda vê em alucinações. É uma opção cinematográfica bastante questionável, e que poderia ter sido um desastre se não fosse pelo desempenho extraordinário de Streep.

A política é mais o pano de fundo do que o palco central nesta produção, mas os principais fatos da carreira de Thatcher estão em tela: a crise econômica e social britânica da década de 1970, com as greves do célebre “inverno do descontentamento”, a perda de competitividade internacional do país, os atentados terroristas dos grupos da Irlanda e as polêmicas medidas de austeridade adotadas pela primeira-ministra e seu longo conflito com os sindicatos. Há ótimo apanhado de sua atuação na guerra das Malvinas, e boas cenas que mostram seu ceticismo pela União Européia, em particular na decisão de que o Reino Unido não adotaria o euro.

A visão sobre a personalidade de Thatcher é bastante equilibrada e matizada, com o desempenho de Streep ressaltando suas características positivas, como a determinação e a coragem, mas mostrando também seu lado sombrio, como a dificuldade de ouvir os outros, de fazer barganhas e concessões e uma centralização extrema que às vezes a levava a humilhar até assessores próximos.

Thatcher foi a 1ª mulher a servir como primeira-ministra no Reino Unido, e até agora a única. Também foi quem mais exerceu o cargo no século XX, por 11 anos (1979-1990). Uma vida longa e controversa que com certeza ainda alimentará diversos filmes e livros.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A Economia Política do Chavismo

Javier Corrales e Michael Penfold são dois raros acadêmicos americanos que estudavam política venezuelana antes da ascensão do chavismo. Seu recém-lançado "Dragon in the Tropics: Hugo Chávez and the political economy of revolution in Venezuela" é o mais completo panorama crítico da última década no país de Bolívar e desde já está incorporado à bibliografia dos cursos que leciono sobre América Latina.

Corrales e Penfold avaliam negativamente o governo Chávez, sobretudo pelo seu impacto sobre a democracia. Para os dois autores, a Venezuela tornou-se um "regime híbrido", que mescla elementos democráticos (eleições) com práticas autoritárias, como censura e ataques contra a imprensa e opositores - rivais do presidente foram presos ou perderam o cargo sob acusações de corrupção. Eles examinam como as reformas chavistas eliminaram ou enfraqueceram as instituições de freios e contrapesos do sistema representativo, como o Senado e a Suprema Corte, concentrando uma enorme quantidade de poderes nas mãos do presidente. Examinam também, brevemente, a nova lei eleitoral, que favorece as regiões rurais e pobres, nas quais Chávez agora tem a maioria dos votos.

Não há grande novidade nas críticas de Corrales e Penfold sobre a erosão da democracia na Venezuela, o destaque do livro é como analisam a política do petróleo da Venezuela. Eles argumentam, a meu ver corretamente, que a alta do petróleo tornou o chavismo viável em termos financeiros, mas que não explica sua ascensão. Os diversos ciclos políticos venezuelanos (ditaduras, democracias) sempre foram dependentes do petróleo e o sistema partidário se articulou em torno das rendas do Estado, gerando uma máquina corrupta e ineficiente. Chávez cresceu em cima do descrédito dos partidos tradicionais e nesse sentido faz falta no livro o exame aprofundado das tentativas de reconstrução de partidos de oposição, sobretudo a partir de ONGs.

Os autores discutem em detalhes os embates que levaram Chávez a assumir o controle da estatal petrolífera, PDVSA, que anteriormente era quase autônoma diante do presidente, e há também boa análise de como a política de nacionalizações e restrições afastou boa parte do capital estrangeiro europeu e americano, atraindo em seu lugar empresas públicas da China, Rússia e Irã. A diplomacia petrolífera do chavismo é muito bem estudada, e os autores mostram como ela tem por eixo a busca de preços mais elevados dentro da OPEP, o que significa tensões com a Arábia Saudita e um vínculo mais forte com os iranianos.

A política externa de Chávez é vista pelos autores como construída sobre dois pilares: soft balancing aos Estados Unidos (criar problemas e obstáculos, sem usar força militar) e poder social (difusão da influência do chavismo junto a partidos e movimentos de esquerda, em geral via pacotes de ajuda petrolífera e financeira). Faltou um pouco mais de debate a respeito dos objetivos chavistas na América Latina, mas o texto dá bons elementos para pensar a questão.

As principais ausências do livro são discussões sobre as políticas sociais de Chávez e sobre as idas e vindas da oposição a ele. Há breves referências a seus programas, incluindo uma explicação da apreciação da taxa de câmbio como explicação para a extraordinária redução da pobreza nos 12 anos de seu governo. É pouco, seria importante aprofundar a conversa. O mesmo vale para as estratégias oposicionistas, que por diversas vezes foi tão autoritária quanto o governo.

As recentes primárias que escolheram o governador de Miranda, Henrique Caprilles, como adversário de Chávez nas eleições presidenciais de 2012 tem despertado atenção internacional. Convém lembrar dos datos citados por Corrales e Penfold: desde meados do século XIX, só dois presidentes latino-americanos perderam reeleições: Daniel Ortega (Nicarágua, 1990) e Hipólito Mejía (República Dominicana, 2004). O chavismo disputou uma dúzia de eleições e perdeu somente uma, um referendo sobre mudanças na constituição. A questão central é o estado de saúde de Chávez e as muitas especulações sobre a real expansão do câncer do qual padece.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Corrupção e Sistema Político no Brasil

Este excelente livro reúne nove artigos escritos em sua maioria por professores e pesquisadores vinculados ao Centro de Referência do Interesse Público (Crip) da Universidade Federal de Minas Gerais. A reflexão acadêmica oferece um contraponto às frequentes manchetes sobre escândalos de corrupção no Brasil e mostra que, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, as instituições democráticas implementadas a partir de 1988 fortaleceram o sistema de combate às práticas ilícitas no Estado, sobretudo por meio do aperfeiçoamento da Controladoria-Geral da União (CGU), da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público (MP). O governo também tornou-se mais transpartente e sujeito a prestar contas aos cidadãos. O elo fraco nessa corrente é o Judiciário, que contiua lento, ineficaz e que pouco contribui para diminuir a impunidade de corruptos e corruptores.

(...)

O texto do cientista político Rogério Arantes (Universidade de São Paulo) examina a história de sucesso da PF após a redemocratização. Ele cita um diretor da instituição no governo Lula, Luiz Fernando Corrêa: “Depois dos generais e dos políticos, agora vivemos uma espécie de onda federal.” Desde 2003 a PF prendeu cerca de 10 mil pessoas em operações de grande impacto na mídia. Recrutando por concursos, pagando bons salários e desenvolvendo um impressionante aparato técnico, conquistou grande respaldo junto à população e aos governos subnacionais – é comum que seus delegados sejam convidados por governadores para assumir secretarias estaduais de segurança.

As raízes do sucesso estão na Constituição de 1988, a primeira a mencionar a PF. Ela manteve atribuições da época autoritária, como cuidar de ameaças à “ordem política e social”, mas também se tornou responsável por proteger o patrimônio da União e por combater tráfico de drogas, contrabando e crimes de repercussão interestadual. Tanto ativismo causou incômodos e a PF foi acusada de ocacionalmente extrapolar as fronteiras da legalidade, abusando de escutas telefônicas e outras formas ilegais de investigação. Decisões do Supremo Tribunal Federal limitaram até o uso de algemas, depois que a Polícia as utilizou em criminosos de colarinho branco, como empresários.

O cientista político Fernando Filgueiras, do Crip-UFMG, analisa os novos mecanismos de prestação de contas do governo federal, como a criação do Portal da Transparência, iniciativas de disponibilização de informações na internet, as diretrizes da Comissão de Ética e outras ações que deixaram o Estado mais aberto. Contudo, observa que “a transparência, por si mesma, não resultou em maior responsabilização dos atores perante as leis”. Pior do que isso, teria criado na população uma ojeriza moralista à política, vista como sucessão de escândalos, de modo que “a principal vítima da corrupção no Brasil democrático é a própria democracia, em especial as instituições representativas”.

O resto, na minha resenha do livro no Amálgama.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Baltasar Garzón: justiça, memória e as divisões da Espanha

Na semana passada a justiça da Espanha condenou o juiz Baltasar Garzón a ficar afastado da magistratura por 11 anos. Segundo o Tribunal Supremo do país, Garzón abusou de seus poderes e instalou escutas ilegais para investigar criminosos que estavam presos por conta do Caso Gurtel, um escândalo de corrupção que envolve o Partido Popular, atualmente no poder. A justiça arquivou um segundo processo contra Garzón, no qual ele era acusado de receber ilegalmente dinheiro de um banco para dar um curso nos Estados Unidos, e há ainda uma terceira e explosiva causa em andamento, que diz respeito às tentativas do juiz de investigar crimes cometidos durante a ditadura de Francisco Franco. Garzón é o protagonista dos novos julgamentos internacionais contra violadores de direitos humanos. Sua vida está mergulhada em política.

O juiz começou sua carreira na década de 1980, nos difíceis anos de transição para a democracia. Ele esteve à frente de casos turbulentos envolvendo terrorismo no País Basco e na Galícia, e em diversos processos contra o crime organizado. Nessas situações tornou-se muito próximo de diversos juízes da Itália, que investigavam a Máfia, e foram dessas articulações que nasceu seu interesse pelo Direito Internacional.

Garzón tornou-se conhecido mundialmente em 1998, quando o ex-ditador do Chile, Augusto Pinochet, foi preso no Reino Unido por conta de um mandado expedido por ele. Garzón se baseou na jurisdição universal prevista na Convenção da ONU contra a Tortura, de 1985. Antes dele, antigos governantes de regimes autoritários já haviam sido julgados em seus próprios países, sobretudo na Grécia e na Argentina (em muito menor grau, em Portugal), mas o seu foi o primeiro processo internacional desde os tribunais de Nuremberg e Tóquio, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Ele inspirou uma série de ações semelhantes, em particular no trabalho do Tribunal Penal Internacional, que foi criado em 2002. Para entendê-las, recomendo o livro "The Justice Cascade", de Kathryn Sikkink

A maior parte desses processos aconteceu para crimes cometidos na América Latina ou nos Bálcãs, mas a ironia da História é que a própria Espanha ficou de fora da nova leva de julgamentos, embora as atrocidades cometidas em sua guerra civil (1936-1939) e na longa ditadura de quatro décadas que se seguiu tenham sido maiores do que as de qualquer regime autoritário latino-americano, com a possível exceção da Guatemala. Só em 2007 o então governo socialista espanhol aprovou uma Lei da Memória Histórica, que contudo está bem mais voltada para questões ligadas à pesquisa, monumentos e símbolos, sem tocar no ponto de processos judiciais.

Outra diferença da Espanha é que o franquismo continua a gozar de prestígio político junto à direita forte do ponto de vista eleitoral – o Partido Popular, atualmente no poder, é um exemplo. É um contraste com o que acontece na maior parte da América Latina, na qual os políticos civis ligados aos regimes autoritários preferem se identificar como liberais, como no Chile ou perderam capacidade competitiva no plano nacional, como na Argentina e no Brasil. Há várias explicações para isso: a brutalidade do trauma da guerra civil, o sucesso econômico do franquismo na década de 1960 ou mesmo a persistência de longas tradições críticas à democracia liberal, com ampla base social.

Garzón é militante de esquerda que serviu por um breve período como deputado socialista, no início da década de 1990, e muitos de seus opositores o acusam de agir motivados por interesses partidários, mais do que por um senso de justiça. Manifestações contra e a favor do juiz na Espanha ilustraram novamente essas profundas divisões ideológicas no país, exacerbadas uma vez mais pela crise econômica atual. Curiosamente, a reação na América Latina foi diferente – tanto governantes conservadores, como o presidente da Colômbia, quanto dirigentes progressistas, como o secretário-geral da OEA (um político socialista chileno) foram unânimes em elogiar Garzón e dizer que foi condenado injustamente. Ele tem até ofertas de emprego nos orgãos regionais latino-americanos.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Malvinas: a Guerra sem Fim

Em abril completam-se 30 anos da guerra das Malvinas e o aniversário é marcado por uma série de tensões entre Argentina e Reino Unido, sobretudo em termos da nova importância econômica das ilhas, e de como as disputas sobre esse território ajudam governos em dificuldades domésticas.

As Malvinas eram desabitadas quando foram descobertas pelo holandeses e nas lutas entre potências coloniais, acabaram com a Espanha, e depois com a Argentina. Em 1833 foram invadidas pelo império britânico, como parte de uma rede de apoio para rotas de navegação no Atlântico Sul. Os diversos governos argentinos nunca abandonaram a demanda pela soberania das Malvinas – no que, aliás, sempre contaram com as autoridades brasileiras, da Regência à presidente Dilma Rousseff. Mas era uma luta por nacionalismo e integridade do território, fortalecida a partir das décadas de 1930-1940, quando a aliança com britânicos começou a ser questionada com vigor na Argentina. À época da guerra, em 1982, a principal atividade das ilhas era a criação de carneiros.

Argentina e Reino Unido permaneceram de relações diplomáticas cortadas durante a década de 1980 (o famoso gol de mão de Maradona contra a seleção inglesa na Copa de 1986 se deu nesse contexto), e elas só foram retomadas sob a presidência de Carlos Menem. Sua política para as Malvinas foi o chamado “guarda-chuva da soberania”, pela qual esse tema não era discutido, mas se buscava cooperação em outros assuntos, como a permissão para veteranos de guerra e seus parentes poderem visitar as ilhas, chorar seus mortos nos campos de batalha e nos cemitérios militares. Situação belamente mostrada no filme argentino “Iluminados pelo Fogo” (abaixo). O chanceler de Menem, Guido de Tella, enviava anualmente presentes de Natal para os poucos milhares de habitantes das ilhas, conhecidos como kelpers, que apreciaram seu gesto.

A ascensão dos Kirchner na década de 2000 significou também o retorno de um intenso nacionalismo à vida política argentina, que encontrou nova expressão em conflitos por território e por exploração de recursos naturais. Isso significou o recrudescimento das disputas com relação às Malvinas, mas também explica muito dos choques com o Uruguai pela construção de fábricas de celulose à beira do rio que divide os dois países. A descoberta de reservas de petróleo e gás nas ilhas e a alta no preço dos hidrocarbonetos aguçaram ainda mais os embates com os britânicos, com frisei em artigo que escrevi no aniversário de 25 anos da guerra. Conta também a importância das Malvinas para a exploração da Antártida, tema que cresce em relevância.

Os britânicos reagiram com sua arma de mídia: enviaram o príncipe William, 2º na sucessão do trono, para passar algumas semanas nas ilhas (foto acima) e levar junto a atenção da imprensa. Algo parecido havia sido feito com seu irmão caçula no Afeganistão. O Reino Unido também despachou um navio de guerra e talvez tenha feito o mesmo com um submarino armado com mísseis nucleares. São gestos simbólicos que tentar demonstrar uma capacidade de poder global que dificilmente a combalida economia britância teria como sustentar, em particular depois dos enormes gastos da intervenção na Líbia.

A estratégia argentina tem sido a de criar obstáculos para os britânicos na ONU, denunciando a permanência de sua posse das Malvinas como uma situação colonial, e criticando o que chamam de militarização dos recursos naturais do Atlântico Sul. O Reino Unido afirma que não se pode abandonar o direito de autodeterminação dos kelpers e o primeiro-ministro David Cameron chegou a afirmar que colonialistas são os argentinos. Poderia ser pensada algum tipo de solução como a de Hong Kong, com a manutenção de grande autonomia para as ilhas, cidadania dupla aos kelpers ou saídas semelhantes, mas no momento não há disposição para diálogos.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O Dia em que Adiaram o Carnaval

Há 100 anos morreu o barão do Rio Branco, um dos melhores diplomatas de todos os tempos e o profissional que definiu de forma pacífica as fronteiras do Brasil, dando a um país de dimensões continentais uma enorme estabilidade geopolítica que deu a seus governantes a capacidade de concentrar seus esforços de política externa na busca do desenvolvimento econômico, sem se preocupar com longas e desgatantes disputas territoriais como as que continuam a afligir a maioria de seus vizinhos na América do Sul. Rio Branco continua a ter lições a oferecer para o Brasil atual: necessidade de integração Defesa-Relações Exteriores, preocupação com a estabilidade da região, análise da arguta das mudanças no equilíbrio do poder mundial.

Na juventude, Rio Branco serviu como secretário de seu pai, o Visconde do Rio Branco, um experimentado político e diplomata cujas realizações só são comparáveis às do filho. Ele o acompanhou em diversas missões aos países da bacia do Prata e foi testemunha em primeira mão das devastadoras guerras que o Brasil travou na região entre as décadas de 1820-1870. Tais custos e sacrifícos praticamente sumiram da memória histórica brasileira, mas só no conflito com o Paraguai estima-se que morreram 50 mil soldados do país – uma cifra trágica, semelhante às perdas dos Estados no Vietnã nas décadas de 1960-1970. A guerra também destruiu financeiramente o Império, lançando o regime numa crise econômica da qual jamais se recuperou.

Os militares e civis que proclaram a República estavam cientes dos custos das guerras platinas e se esforçaram em reverter o curso da diplomacia imperial e estabelecer boas relações com as nações vizinhas, notadamente com a Argentina, que o Brasil enfrentara em dois conflitos, e com quem manteve uma tensa aliança contra o Paraguai. Nos anos finais da monarquia o barão começara um trabalho bem-sucedido de delimitação das fronteiras brasileiras por negociações pacíficas, sobretudo por arbitragens jurídicas internacionais. Esses foram os serviços que lhe renderam o título de nobreza (que no Império não era hereditária). A República lhe deu novas tarefas e o promoveu a ministro das Relações Exteriores, cargo que desempenhou para uma sucessão de presidentes entre 1902-1912.

Rio Branco foi bem-sucedido nas negociações porque era um exímio historiador, profundo conhecedor de temas militares e geográficos do Prata e do Amazonas. E um político habildoso que percebeu que a ordem mundial do século XX seria do declínio da Grã-Bretanha e da França, e da ascensão dos Estados Unidos, com o qual estabeleceu uma “aliança não-escrita”: apoiar suas ambições internacionais em troca de seu auxílio para as demandas brasileiras na América do Sul. A mais grave delas, a complexa fronteira com a Bolívia, envolvia empresas americanas interessadas em explorar os seringais da região.

A proximidade com os Estados Unidos veio acompanhada da preocupação da construção de boas relações com as nações mais importantes do Cone Sul, Argentina e Chile, na qual ele também foi bem-sucedido, apesar de rusgas com Buenos Aires, em particular sua longa rivalidade com o chanceler argentino Estanislao Zeballos, que vinha dos tempos em que ambos eram jornalistas de pena mordaz.

O barão foi um diplomata notável, mas morreu amargurado com os fracassos da modernização brasileira na República, e sua interminável sucessão de rebeliões, insurreições armadas e instabilidade política. Faleceu durante o carnaval e o governo tentou adiar a festa por decreto, gesto inédito e nunca mais repetido. Não funcionou, claro: o povo foi em massa ao seu funeral e depois comemorou nas ruas a festa. Duas vezes. Na definição precisa de meu amigo João Daniel Lima de Almeida, o Brasil deve ao barão não só suas fronteiras, mas também a invenção da Micareta, o carnaval fora de época. Boêmio e farrista em sua juventude carioca, Juca Paranhos, o barão do Rio Branco, certamente teria adorado.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A Separação

Há tempos não vejo um filme tão forte quanto “A Separação”, escrito e dirigido por Asghar Farhadi. É um drama familiar que nos diz muito sobre os conflitos políticos do Irã atual, mas acima de tudo é um exemplo de cinema humanista que transcende culturas e faz pensar nos trabalhos de velhos mestres como Roberto Rosselini ou Ingmar Bergman, pelo modo como apresenta dilemas individuais num mundo desordenado e injusto. Quase uma semana depois de vê-lo, me pego pensando em suas cenas e refletindo sobre seus diálogos.

O flime começa com o divórcio de um casal que está junto há mais de uma década e tem uma filha no início da transição da infância para a adolescência. A causa da separação é que a esposa quer emigrar, pois não vê futuro no Irã para a família, diante das “atuais circunstâncias” – que ela não explica, apesar de questionada por um juiz, mas que todos sabemos quais são. Seu temperamento inquieto é visível nos cabelos pintados de vermelho, entrevistos por baixo do véu. O marido quer ficar. Não por lealdade à República Islâmica, mas porque deseja permanecer ao lado do pai idoso e doente, que sofre de Alzheimer.

A esposa se prepara para sair do Irã e o casal decide quem ficará com a filha. Enquanto isso, o homem contrata uma empregada para cuidar do pai doente, enquanto ele está no trabalho. O salário é baixo, mas a mulher é muito pobre e enfrenta dificuldades extras: está grávida do segundo filho e o marido está desempregado e ocasionalmente na prisão, por não pagar suas dívidas. Ela está sob intensa pressão e tem problemas de saúde, não consegue lidar com o árduo trabalho físico de cuidar de um idoso, e sofre também com a dor de romper tabus religiosos, tendo que tocar um homem estranho. Acaba cometendo erros sérios, que darão origem a uma confrontação violenta com o patrão, numa escalada de conflitos que opõe as duas famílias e na qual todos e ninguem estão com a razão.

Como em no filme anterior do diretor, “À Procura de Elly”, é um ato inesperado de violência que revela as fissuras de uma sociedade aparentemente civilizada e organizada. São muitos focos de tensão: o econômico, entre os patrões de classe média (e suas redes de parentes e amigos) e os empregados pobres. O religioso, entre uma família quase laica e outra para quem as regras do Islã estão muito presentes no cotidiano e constituem a referência ética fundamental. O político, na relação com as autoridades do Estado que podem ser bastante duras na aplicação da lei, e bastante falhas no fornecimento de uma rede de proteção social e solidariedade.

O excelente roteiro coloca em cena personagens muito humanos: ambíguos, contraditórios, capazes de atos mesquinhos, mentiras, traições e egoísmos, e de gestos de generosidade e dedicação. Impossível esquecer a filha quase adolescente, que fará seu doloroso aprendizado da vida madura e da liberdade, sendo chamada a tomar decisões difíceis num ambiente de adultos confusos e que não servem como referência moral. O diretor afirma que ela representa a geração de jovens iranianos que, quiçá, poderão ter que aprender a viver na democracia. Terão um belo exercício neste filme de tantas vozes e visões de mundo.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O Conselho de Segurança e as Leis de Hama

No sábado o Conselho de Segurança da ONU votou proposta de resolução que condenava o governo sírio pela repressão à rebelião democrática e demandava a renúncia do presidente Bashar al-Assad. A iniciativa recebeu 13 votos favoráveis, mas foi vetada pela Rússia e pela China. Em entrevista à Globo News, afirmo que o resultado imediato será o aumento da violência contra os manifestantes, pois Damasco interpretará o impasse internacional como sinal verde para esmagar a revolta. A outra consequência é que agora a possibilidade de solução do conflito recai sobre Turquia, Liga Árabe e França, numa situação de tensão com a oposição cada vez mais armada.

Há duas explicações principais para a posição da Rússia e da China. A Síria é o último aliado russo no Oriente Médio, o que sobrou da antiga zona de influência soviética na região. Moscou não pode abandonar um amigo tão importante, ainda mais no contexto de sua própria rebelião democrática, com o primeiro-ministro Vladmir Putin disputando a presidência em março.

O segundo ponto é a disputa mais ampla por influência no Norte da África e Oriente Médio. Quando a Primavera Árabe começou, Rússia e China estavam satisfeitos em ver aliados ocidentais como Egito e Tunísia balançando. A Líbia mudou o jogo, em especial quando o mandado da ONU de intervenção para proteger os civis foi transformado no apoio da OTAN aos rebeldes na guerra civil contra Muhamar Kadafi. Moscou e Pequim temem a repetição dessas circunstâncias na Síria e a consolidação desses precedentes para outros países-chave, como o Irã. Há sugestões de mediação de mais nações emergentes, como Brasil, Índia e África do Sul.

A rebelião na Síria já dura 11 meses, mas nas últimas semanas ficou mais séria, porque finalmente os protestos haviam chegado à capital, Damasco. O governo respondeu com o aumento da repressão e, segundo desertores das Forças Armadas, com ordens de atirar a esmo nas multidões. O oficial mais graduado a fugir do país afirma que o Exército está à beira do colapso e só um terço dos homens está em condições de combater, fazendo com que o regime recorra sobretudo às milícias, em particular aquelas recrutadas entre os alauítas, grupo religioso minoritário que domina o governo.

Por uma coincidência macabra, o aumento da violência se deu em meio ao aniversário de 30 anos do massacre de Hama, no qual o presidente Hafez al-Assad (pai do atual mandatário, a imagem dos dois está na foto que abre o post) matou entre 10 mil e 20 mil rebeldes da Irmandade Muçulmana, no ato de maior brutalidade interna de um governo na história moderna do Oriente Médio. A repressão implacável garantiu estabilidade à sua presidência, que só acabou com sua morte em 1999, e sua substituição pelo filho – algo que nem Mubarak nem Kadafi conseguiram.

As Leis de Hama, como as chamou o jornalista Thomas Friedman, eram claras: opor-se ao governo tem preço, e altíssimo. O regime foi hábil em manter o apoio das elites econômicas do país, em Damasco e Aleppo, mas é nas províncias empobrecidas que a rebelião foi fomentada e deflagrada. As lições das revoltas na Tunísia e no Egito é que para derrubar pacificamente as ditaduras é necessário ocupar a capital, o caso da Líbia mostra que sem essa capacidade de mobilização política, o único modo é a guerra civil – com necessidade de auxílio estrangeiro para enfrentar o Estado, mais forte.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A Batalha pelo Partido Republicano

Mitt Romney venceu as primárias do importante colégio eleitoral da Flórida com cerca de 46% dos votos e ficou mais perto de conseguir a indicação dos Republicanos. Os eleitores conservadores são maioria, mas estão divididos entre três candidatos: Newt Gingrich, Rick Santorum e Ron Paul. Eles também eram a principal base de apoio de outros políticos, que desistiram da corrida (gráfico abaixo), como Rick Perry, Sarah Palin e Michelle Bachmann. Romney é o mais competitivo nacionalmente contra Obama por sua capacidade de atrair eleitores centristas, mas terá problemas como um Partido Republicano no qual o termo “moderado” passou a ser pejorativo. Este é um desdobramento recente e importante, que contraria uma tradição centenária da sigla.

O Partido Republicano nasceu das tensões da década de 1850, em torno da persistência da escravidão no Sul, de sua expansão para os novos territórios do Oeste e dos debates como como incorporar as levas crescentes de imigrantes. Os dois grandes temas da sigla eram a manutenção da União e de tarifas industriais altas. Foi bem sucedido em ambas, comandando a vitória na guerra civil e administrando o boom econômico que se seguiu. Os republicanos governaram os EUA quase sem interrupção por 50 anos, até a década de 1910. Os democratas haviam se reduzido a um pequeno partido regional do sul americano.

Isso começou a mudar com as grandes transformações sócio-econômicas da primeira metade do século XX: crescimento das cidades, mais migração de minorias religiosas (católicos, judeus) e a primeira leva de mudança dos negros para os centros industriais do norte, a partir da I Guerra Mundial. Os democratas se reestruturaram como uma aliança entre esses segmentos emergentes, mais progressistas, e os setores tradicionais do Sul. Era uma formidável combinação eleitoral, como demonstraram as quatro vitórias de Franklin Roosevelt e as de John Kennedy e Lyndon Johnson.

O ponto fraco da aliança era a pressão para expandir as reformas sociais para o Sul, o que ocorreu entre 1954-1965, destruindo o sistema de segregação racial e o secular domínio dos democratas na região. A classe média e a elite locais migraram em massa para os republicanos, como mostra o mapa abaixo. Os estados vermelhos são aqueles nos quais o partido obteve a maioria no colégio eleitoral nas disputas à presidência. É quase todo o sul, a exceção significativa é a Flórida. Os democratas se concentram nas principais zonas industriais: costa leste e oeste, e grandes lagos.

Essas regiões também elegeram políticos republicanos para governos estaduais ou senados, mas que em geral ficaram conhecidos por sua moderação e liberalismo, como Nelson Rockefeller em Nova York ou o pai de Mitt Romney no Michigan. Isso começou a mudar na década de 1950, com a ascensão de um tipo de político conservador mais radicalizado ideologicamente, primeiro nos temas da Guerra Fria, como o senador Joseph McCarthy, e mais tarde na oposição à expansão do governo federal (exceto em Defesa e segurança nacional). Sobretudo no Sul, onde o assunto era inseparável das tensões raciais – o senador Jess Helms é um bom exemplo. É um forte contraste aos republicanos de outra era, como o presidente Dwight Einsenhower, que aceitara as reformas do New Deal, ampliara o investimento público em infraestrutura, construindo uma excelente rede rodoviária, e alertara os Estados Unidos contra o risco do crescimento desmensurado do complexo industrial-militar.

Em boa medida essa nova guinada ideológica se deveu à mobilização política de movimentos religiosos, assustados com as rápidas mudanças da década de 1960 e com o que parecia ser o declínio americano no Vietnã e no Terceiro Mundo de modo geral. Esses grupos foram importantes no apoio a presidentes como Ronald Reagan e George W. Bush, ele mesmo um evangélico convertido.

Reagan e Bush foram habilidosos em criar coalizões que envolviam as várias facções dos republicanos: o meio empresarial, religiosos, libertários, neoconservadores, liberais. Não há hoje ninguém no Partido que consiga isso, em meio à rebelião das bases partidárias do Tea Party. Romney tem contra ele não só suas posições político-econômicas mas até sua religião – os mórmons são menos de 2% da população americana e em geral são vistos com desconfiança pelos eleitores conservadores, que tendem a considerar o grupo uma seita fechada. Um terço da população dos Estados Unidos sequer sabem que os mórmons são cristãos!

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

J. Edgar

Se homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se anjos governassem os homens, não seriam necessários controles externos ou internos ao governo. Ao planejar um governo que será administrado por homens, sobre homens, a grande dificuldade é esta: você precisa primeiro habilitar o governo a controlar os governados, e em seguida obrigá-lo a controlar a si mesmo.”

Alexander Hamilton e James Madison, “Os Artigos Federalistas

“J. Edgar”, novo filme de Clint Eastwood, é um ensaio sombrio a respeito dos impactos do (abuso de) poder sobre o caráter de um homem extremamente habilidoso e dedicado a seu país, mas atormentado por fantasmas emocionais que pioram ao longo dos anos e o transformam numa pessoa ruim e mesquinha, corrompida pela enorme influência que obteve por seu trabalho policial. Está longe de ser o melhor filme de Eastwood - há problemas com o elenco e o roteiro – mas é mais um forte trabalho em sua trajetória como cronista e intérprete da democracia nos Estados Unidos.

Seu biografado é John Edgar Hoover, que chefiou o FBI entre 1924-1972 e o transformou de um insignificante escritório no Departamento de Justiça numa das forças policiais mais eficazes do planeta, uma referência em termos de ciência e tecnologia aplicadas às investigações e com uma história de realizações no combate ao crime organizado nos EUA. Contudo, Hoover também era responsável por muitos casos envolvendo delitos políticos e ameaças à segurança nacional, e extrapolou por diversas vezes os limites da lei, da ética e de suas responsabilidades – ocasionalmente por ganho pessoal, em outros momentos por fanatismo e paranóia, que o levaram a enxergar maquinações comunistas em grupos democráticos que questionavam as ações dos presidentes americanos, como o movimento dos direitos civis. Ele não hesitava em chantagear os ocupantes da Casa Branca com base num enorme arquivo pessoal secreto, com gravações, fotos e documentos incriminadores sobre os governantes ou seus parentes próximos. Nenhum deles ousou demiti-lo do cargo.

Hoover nunca se casou e morou com a mãe até a morte desta. Houve muitos rumores sobre sua sexualidade, atribuindo-lhe um romance homossexual com seu principal assistente no FBI e até o hábito de usar roupas femininas em casa. O filme toma esses boatos como verdadeiros, e os mostra de maneira mais explícita do que acho necesário. O ponto essencial é que se tratava de um homem infeliz e amargo, com dificuldades de se relacionar com as pessoas e com uma formação moral muito rígida que se manifestava com frequência em perseguições aos seus próprios agentes no FBI, proibindo-os de usar certos tipos de terno, de ter bigode ou barba.

Ele foi um administrador eficiente, inovador e habilidoso nas disputas burocráticas com o Congresso com outros departamentos do Executivo. O filme mostra sua importância em usar as impressões digitais como uma técnica de investigação, em criar laboratórios para apoiar a ação do FBI e conseguir a aprovação de leis que permitissem mais campo de atuação para seus agentes, por vezes se aproveitando de casos dramáticos que levaram o pânico aos EUA, como os atentados da extrema-esquerda após a Revolução Russa, ou o sequestro do filho do aviador Charles Lindbergh. Ele também era atento à importância da imprensa e da arte, buscando contatos com jornalistas, desenhistas de quadrinhos e roteiristas de Hollywood para que retratassem com simpatia as proezas do FBI.

Há dois problemas significativos no filme. O primeiro é a fragilidade como ator de Leonardo DiCaprio para encarnar um personagem tão complexo. Ele não dá conta da tarefa, imaginei como seria ter um mestre da atuação, como Phillip Seymour Hoffman ou Gary Oldman como Hoover. Teríamos outro filme, muito melhor.

O segundo obstáculo é o roteiro. A narrativa é confusa, dividida em três momentos: Hoover na década de 1960, narrando sua juventude para agentes do FBI, depois o próprio período dos seus anos iniciais, 1919-1934, e posteriormente seus últimos meses de vida, já no governo Nixon. As idas e vindas são um tanto confusas e não funciona bem do ponto de vista dramático a autojustificativa de Hoover ao narrar sua própria trajetória.

*** Abusos de poder e necessidade de controles democráticos sobre o governo não são, evidentemente, um problema exclusivo dos Estados Unidos. Nesta semana em que a presidente Dilma Rousseff visita Cuba, vale sempre boa discussão sobre o tema. Abaixo, duas de minhas intervenções recentes:

Entrevista à Globo News – Uma sociedade mais democrática no Brasil pressiona por posições pró-direitos humanos nas relações com Cuba, em meio a um novo contexto regional na América Latina.

Entrevista à Rádio Holanda Internacional – Por que a diplomacia brasileira passou a criticar o Irã por violações de direitos humanos, mas mantém a postura de não-intervenção com respeito a Cuba.