domingo, 10 de junho de 2007
As Mulheres do Meu Pai
Uma vez alguém perguntou ao escritor e jornalista polaco Ryszard Kapushinski o que mais o impressionara em África. Kapushinski não hesitou: “A luz!”. É isto: onde uns vêem luz outros apenas distinguem sombras. Os que vêem sombras constroem muros para se protegerem.
José Eduardo Agualusa
Aproveitei o feriadão para ler “As Mulheres do Meu Pai”, o novo romance de José Eduardo Agualusa. O angolano é um dos meus escritores favoritos, das mais belas expressões contemporâneas da língua portuguesa.
O livro recém-lançado conta a história de Laurentina, cineasta moçambicana há muito residente em Portugal, que descobre que seu pai verdadeiro não era o pacato burocrata lusitano que imaginava, e sim um músico angolano, famoso pelo talento e por ter quase 20 filhos com diversas esposas, namoradas e companheiras. Em busca de suas raízes, ela realiza uma viagem pelos países que seu pai percorreu: Angola, Namíbia, África do Sul e Moçambique. Em cada lugar, conversa com as pessoas e aos poucos desvenda uma teia que demole o mito do “macho alpha africano” e revela a enorme força das mulheres do continente.
O romance segue dois fios paralelos: a viagem de Laurentina e uma espécie de “making of” do livro, no qual Agualusa narra seus esforços para produzir um documentário sobre a música na África Austral, ao lado de Karen, uma cineasta inglesa (na foto, os dois em Angola). Das conversas dos dois nasce a aventura de Laurentina, que incorpora paisagens e cenas da outra história.
A ficção se constrói em coral, com diversos personagens dando sua versão dos acontecimentos: Laurentina; Mariano, seu namorado português, filho de angolanos que rejeita a África; o motorista Pouca Sorte; um primo de Laurentina que ela conhece em Luanda e por quem se sente atraída; além de entrevistas ao longo da estrada.
O que une toda essa gente? São pessoas divididas entre a busca de raízes e/ou da memória histórica e o desejo de esquecer, de romper barreiras e fronteiras e (re)inventar a própria identidade. A segunda corrente ganha de longe: os personagens mais interessantes são os que redesenham a si mesmos diversas vezes, mudando de nacionalidade, profissão, ideais políticos. Tudo que é sólido desmancha no ar, parece nos dizer Agualusa, e a vida sempre caçoa daqueles que acham que podem domesticá-la com verdades irrefutáveis.
Além de tudo, o romance é um formidável mosaico da África Austral, montado a partir de fragmentos de lembranças, sonhos, esperanças e frustrações das guerras de libertação, dos regimes marxistas, do apartheid mal-resolvido e não de todo terminado, da nova burguesia que ascende veloz e quer esquecer o passado pouco recomendável. E dos muitos encontros culturais e amorosos do continente, entre africanos, europeus, asiáticos, brasileiros.
Música, amor, culinária, está tudo lá. Infinitamente mais interessante, humano, divertido e emocionante do que essa África de exclusivas calamidades que nos chega pela TV e pelo cinema.
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6 comentários:
Promessa de boa leitura. Acho que agora já nem me sinto mais bagunçado por suas inúmeras recomendações, Mau.
O sentimento certo é impotência mesmo..hahahaha
Maurício:
Qué interessante conhecer um pouco mais da África, continente que näo é olhado pelos argentinos como uma terra hermana.
Um abraço
v. ja leu as cartas do Lobo Antunes para amulher, escritas quando ele lutava na Angola ?
recomendo
H
Salve, Igor.
Que posso fazer, há muita gente talentosa neste planeta... Por falar nisso, obrigado pelo artigo, já o repassei aos alunos da turma 2007.
Meu caro Patricio,
o laço entre Brasil e África é muito forte, mas não creio que seja o mesmo para outros países da América Latina, a não ser uma ou outra ilha caribenha, como Cuba e Haiti.
Debytes,
entre as minhas muitas lacunas culturais está nunca ter lido Lobo Antunes, mas espero corrigir em breve esse grave defeito. Me recomendaram muito "Os Cus de Judas", sei que é sobre Angola, mas ignoro se é o mesmo que você menciona.
Abraços
Uau....
deu água na boca.
vou ler.
gosto de romances com cheiro, odor, molhados.pela sua descrição, esse me pareceu assim.
gosto muito do gutierrez...
será que tem a ver ou é viagem minha de leitora nova de angolano?
vou pagar pra ler...
um abraço.
Salve, Marília.
Com certeza, o Agualusa é uma festa para os sentidos, mas o tom de seus livros é (em geral) alegre e otimista, contrasta com aquela perspectiva desesperada do Pedro Juan Gutierrez. Leia que você vai adorar.
Abraços
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