quarta-feira, 17 de setembro de 2008
Fórmula para o Caos
Ainda é raro que brasileiros escrevam livros sobre os vizinhos sul-americanos. “Fórmula para o Caos – a derrubada de Salvador Allende”, do cientista político Moniz Bandeira, contribui não só para a história do Chile, mas também para a da região como um todo, mostrando como as tensões do país andino estavam ligadas aos desdobramentos em outras nações da região, em especial Bolívia e Uruguai. A política externa do Brasil sai mal do retrato, que mostra o quanto o governo brasileiro influenciou na destruição da democracia chilena.
Embora os fatos básicos da queda de Allende fossem bastante conhecidos há muitos anos, Moniz Bandeira conseguiu novos documentos liberados pelo governo dos EUA durante a presidência Clinton, além de ter tido acesso livre aos arquivos diplomáticos brasileiros, em função de sua amizade com a atual chefia do Itamaraty. O resultado é um levantamento detalhado sobre os mecanismos utilizados pelas autoridades dos dois países para derrubar Allende: dinheiro, propaganda e pressões econômicas, no caso dos americanos, apoio político e logístico no que toca aos brasileiros.
O governo Allende (1970-1973) se deu em meio a um contexto turbulento na América do Sul, marcado por golpe contra uma ditadura militar progressista na Bolívia e pelo combate à rebelião dos Tupamaros no Uruguai. Em meio a isso, a Argentina do general Lanusse passava por delicada transição política para o retorno de Perón, e resolveu apostar numa diplomacia de “pluralismo ideológico”, ajudando Allende e acreditando com isso que isolaria o Brasil, então no momento mais violento de sua ditadura de 21 anos.
Moniz dedica talvez metade do livro às pressões internacionais contra Allende, mas boa parte da obra aborda algo que me interessa mais: as contradições internas da política chilena. O presidente liderava a Unidade Popular, uma instável coligação dos partidos de esquerda: socialista, comunista, esquerda cristã, MAPU e Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR). Quase todos acreditavam que Allende era demasiado lento e moderado e o encurralavam com invasões de terra, tomadas de fábricas, apoio à guerrilha boliviana, formação de milícias e construção de estruturas de “poder popular paralelo”, como cordões industriais e assembléias populares. Uma longa visita de Fidel Castro, de três semanas de duração, polarizou ainda mais os ânimos.
Para piorar, a Unidade Popular era minoritária no Congresso e precisava enfrentar fortes movimentos da direita nacionalista e católica, com setores extremistas promovendo bloqueios econômicos, greves patronais (como a célebre paralisação dos transportadores, que quase destruiu a economia), marchas e atentados. Desde o início o Exército resistiu a Allende e o fiel da balança militar foram generais legalistas, como René Schneider (assassinado por golpistas) e Carlos Prats (morto por terroristas de direita, no exílio, já na ditadura Pinochet). O partido de centro, a Democracia Cristã, se dividiu aos poucos e sua parcela hegemônica apostou contra a ordem constitucional, acreditando que os militares a livrariam de Allende e abririam caminho para sua volta ao poder. Teve que esperar 17 anos.
Moniz foi, desde a época, cético com relação ao projeto de Allende de construir o “socialismo pela via chilena”, à base de “vinho e empanadas”. O cientista político questiona o mito do “excepcionalismo do Chile”, que seria supostamente mais democrático e estável, e analisa diversos episódios de golpes militares e guerras civis, em particular a que levou ao suicídio do presidente Balmaceda, em 1891, numa disputa feroz pelos espólios minerais tomados à Bolívia e ao Peru na Guerra do Pacífico.
O livro de Moniz Bandeira vai na mesma direção de vários intelectuais chilenos contemporâneos, que se mostram críticos das contradições do socialismo utópico de Allende e ressaltam o quanto a tradição política do Chile é marcada pelo autoritarismo e pela violência.
Dica: visitem o site da Fundação Salvador Allende, com excelente material multimídia.
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2 comentários:
Maurício, ótima referência.
Fiquei curioso em conhecer a nova safra de intelectuais chilenos a questionar a teoria do excepcionalismo do país. Até onde sei, o Chile esteve sempre um passo à frente da maioria dos países da região em muitos aspectos importantes ao desenvolvimento capitalista, seja em termos de capital humano (educação, basicamente), seja em termos institucionais (partidos razoavelmente estáveis) e sócio-econômicos (uma classe média considerável). No caso do Allende, a história que me foi repassada dá conta que, dadas as expectativas criadas neste processo, o Allende foi eleito para levar o país a outros patamares; contudo, tentou fazê-lo sem respeitar as instituições básicas da sociedade chilena, politizando a educação e exagerando na reforma agrágia. Eleito democraticamente, sim, mas não muito democrático na escolha das medidas a adotar, pois contrariavam muita coisa em que acreditavam os chilenos. Economicamente, o país entrou em colapso durante seu governo. Ou seja, a queda de Allende teve factores políticos fortes, com certeza, mas havia uma série de factores outros que facilitaram o processo e a aceitação dele. Sua queda fez o pêndulo oscilar para o outro extremo, no que também o país não foi bem-sucedido. Somente depois de moderar suas políticas, a ditadura de Pinochet obteve algum sucesso, lá por meados dos anos 80.
Enfim, será que o que penso ser a história chilena o foi de facto?
Abraço
Caro Jonas,
Minha análise da história chilena é muito parecida com a sua, mas hoje em dia o que predomina no país é a visão de que as coisas por lá não eram tão diferente do resto da América Latina, com golpes de Estado, intervenções militares e uma democracia no fundo bastante frágil.
Houve um episódio curioso quando dei palestra em Santiago e falei da inspiração que a democracia chilena havia sido para a região. A platéia não gostou e várias pessoas me criticaram dizendo que o Chile nunca havia sido uma país verdadeiramente livre.
Em parte essa é uma tentativa de explicar um fato muito incômodo: como a ditadura Pinochet se manteve no poder por quase 20 anos, com popularidade expressiva, e como a elite política chilena se acomodou ou não foi capaz de reagir ao alto grau de violência do regime?
Abraços
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