sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Ditaduras


Há alguns dias a Folha de São Paulo publicou um editorial classificando o regime militar brasileiro como uma "ditabranda" em comparação com os demais governos autoritários da América Latina, que teriam sido, esses sim, "ditaduras". Embora o argumento seja utilizado há muito pela direita brasileira, a reação foi bastante intensa, tanto por parte da comunidade acadêmica quanto dos colegas blogueiros, e você pode ler balanços detalhados e apaixonados sobre a discussão nos sítios do Pedro Doria, do Idelber Avelar e do Sergio Leo, com foco na questão da responsabilidade da imprensa. Minha participação no debate vai por outro lado, justamente o da perspectiva latino-americana.

Passei boa parte dos últimos cinco anos viajando pelo Cone Sul em trabalhos de cooperação entre os movimentos sociais da região. O contraste entre a força das manifestações pró democracia e direitos humanos na Argentina, Chile e Uruguai é intenso com relação ao Brasil. Nos países vizinhos a rejeição às ditaduras é bem mais presente do que por aqui, onde ocasionalmente até políticos de esquerda fazem comentários nostálgicos sobre os grandes projetos de desenvolvimento econômico dos militares.

Evidentemente, as ditaduras da Argentina (sobretudo a de 1976-1983), do Chile e do Uruguai se defrontaram com movimentos de esquerda, armada ou não, bem mais fortes do que os que existiam no Brasil da década de 1960. O conflito político em geral foi bem mais violento lá do que cá, sendo que na Argentina foram utilizados métodos que mais se assemelham ao Holocausto nazista, ao ponto dos massacres do período serem classificados como genocídio. Contudo, a realidade da tortura, do arbítrio, das perseguições foi notavelmente semelhante na região inteira. Todas as ditaduras se parecem, ainda que a contagem dos cadáveres possa variar.

A melhor análise que ouvi sobre o assunto veio - de todos os lugares - de um coronel do Exército brasileiro. Aliás, um oficial brilhante, como muitas vezes costumo encontrar nas Forças Armadas. Conversando sobre o tema da ditadura, ele utilizou de início argumentos parecidos ao editorial da Folha, para concluir de maneira surpreendente: "A questão é que, para uma mãe que perdeu o filho, ou alguém que ficou sem um ente querido, não importa se os mortos foram 500, 5 mil ou 50 mil. A perda emocional é insubstituível e essa é a questão fundamental sobre os conflitos do governo militar."

A ditadura brasileira foi tão cruel como a dos vizinhos, apenas foi mais habilidosa politicamente, oferecendo à classe média diversas válvulas de escape, em particular pela prosperidade material, como no setor público em expansão, com empregos bem remunerados nas empresas estatais. Um quadro que contrasta com a catástrofe dos militares argentinos, ou o instável ritmo stop and go do regime de Pinochet no Chile (pelo menos até a crise de 1982 e a guinada para uma política menos ideológica e mais pragmática).

Torço para que a consciência brasileira com respeito às ditaduras da região se aprimore e nesse ponto temos muito o que aprender com os vizinhos. Confesso minha vergonha diante do debate atual, enquanto meu amigo Patricio escreve da Argentina contando as novidades sobre a inauguração de centros da memória sobre o período autoritário. Será que um dia teremos algo semelhante para expor?

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Não Alimente os Políticos?


Chris Blattman, que leciona economia e ciência política em Yale, toca um dos blogs mais interessantes que conheço. Há poucos dias ele escreveu sobre uma pesquisa dos economistas Federico Finan (Universidade da Califórnia) e Claudio Ferraz (PUC-Rio) sobre o impacto dos aumentos salariais na produtividade dos vereadores brasileiros. A conclusão do artigo, segundo Blattman:

Salários elevados atraem políticos melhor instruídos, e mais homens de negócios e advogados em comparação a fazendeiros e militares. Apresentam maior propensão a conseguirem se reeleger, e portanto ficam com experiência ampliada ao longo do tempo. Submetem mais projetos de leis e logram aprovar legislação em maior número. Isso não significa que são pessoas melhores, só que são mais produtivos. Contudo, salários altos parecem aumentar o número de clínicas médicas, escolas e programas de infraestrutura escolar (embora não haja efeitos sobre a qualidade da água e do saneamento).


Nestes tempos em que o corregedor da Câmara dos Deputados consegue a proeza de construir um castelo digno da Cinderela, ninguém morre de simpatias pela idéia de aumentos salariais para políticos. Mas o artigo de Finan e Ferraz ecoa um debate clássico da ciência política, que remonta ao século XIX. Até aquela época, a atividade parlamentar era privilégio de uma pequena elite, em geral proprietários de terras e de imóveis urbanos que viviam de rendas e podiam dedicar seu ócio aos assuntos públicos. Com a expansão do sufrágio e a entrada em cena de representantes de classes populares, surgiu a demanda pelo pagamento de salários aos deputados. O objetivo era profissionalizar a política e abri-la a quem tivesse talento para a coisa, independentemente da origem social. Naturalmente, esperava-se que políticos bem remunerados fossem (relativamente) protegidos das tentações da corrupção.

Todas as democracias de massa – incluindo, evidentemente, o Brasil – passaram por um processo semelhante, no qual a vida política era exercida de início pelos notáveis locais, como o fazendeiro, e aos poucos ganhando uma coloração mais profissional. Os famosos bacharéis do Império, tão bem examinados por Gilberto Freyre ou José Murilo de Carvalho, são exemplos desse desenvolvimento. Atualmente, os estudos sobre o Congresso brasileiro destacam o declínio dos coronéis tradicionais e ascensão das chamadas “profissões da pluma”, como advogados, jornalistas e professores.

Não digo que isso, por si só, represente a melhoria do Congresso. A revolta do Baixo Clero que levou à inesquecível presidência de Severino Cavalcanti dificilmente é o momento mais belo da democracia brasileira. Tudo contabilizado, significa apenas que as regras do jogo estão mudando e que é preciso um esforço para tomar consciência do novo ambiente.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A Crise, o Brasil e a América Latina



Uma das coisas boas de estar no Ministério do Planejamento é ter acesso aos especialistas estrangeiros que executam trabalhos para o governo brasileiro. Há algumas semanas assisti a uma palestra no curso de formação de gestores do economista alemão Marko Jagger, que nos falou sobre a situaçaõ do Brasil em meio à crise mundial. Ele destacou a comparação dos indicadores brasileiros com os dos demais latino-americanos e ficou patente como o país está numa condição priviliegiada com relação ao resto da região.

No entanto, eu com minha cabeça continental, comecei a pensar nos problemas que isso traz. O mais evidente deles é o desequilibrio no comércio exterior. Crises internacionais sempre estimulam a adoção de medidas protecionistas, ainda mais quando um dos parceiros é menos atingido do que os outros. Esse tem sido um padrão no comportamento da Argentina com o Brasil desde as dificuldades do fim da década de 1990, e a questão retornou com força à agenda regional devido ao impacto da crise no país platino, agravado por problemas do governo de Cristina Fernández de Kirchner e por uma gravíssima seca que tem devastado os pampas (foto de abertura do post) e tem prejudicado as exportações agrícolas. A comparação com o Uruguai é significativa, como mostra o gráfico abaixo. Tabaré Vázquez tem lidado melhor com as atuais turbulências econômicas.



Nos últimos dias diversos ministros e autoridades argentinas visitaram o Brasil, em negociações para tentar chegar a acordos que impeçam uma onda de disputas comerciais no Mercosul. Além de evitar barreiras ao comércio, há esforços para conceder créditos as empresas que compram e vendem na região, de modo a compensar as quedas nas transações. Mestre Sergio Leo tratou do tema em sua coluna de segunda. Eis um trecho:

O Brasil busca mecanismos para facilitar não só o crédito aos compradores de mercadorias brasileiras, mas também o financiamento aos exportadores dos países do continente em negócios com importadores brasileiros. A delicada situação financeira e as turbulências políticas na vizinhança dificultam a criação desses mecanismos. Mas, na avaliação do governo brasileiro, respostas a esse problema são fundamentais para garantir a expansão das empresas brasileiras além das fronteiras e evitar um progressivo mal-estar capaz de fomentar pressões protecionistas lá fora e dentro do país.

A América Latina responde por algo em torno de 20% a 25% das exportações brasileiras, com parceiros comerciais de grande porte como Argentina, México, Venezuela e Chile, e relações importantes e delicadas – sobretudo nas importações de energia – da Bolívia e do Paraguai. Não é tarefa fácil equilibrar tantas demandas e necessidades, mas o governo brasileiro tem boas ferramentas nas mãos e uma relativa tranquilidade financeira para negociar. E, claro, a extraordinária popularidade do presidente Lula, um bônus fabuloso que na região só é comparável ao do mandatário colombiano, Alvaro Uribe. Oxalá isso permita acordos e arranjos para resolver ao menos parte dos problemas trazidos pela crise.

O blog dá uma pausa enquanto o blogueiro segue para o carnaval do Rio de Janeiro. Volto na quarta-feira de cinzas, provavelmente com um comentário sobre o novo filme a respeito do Che Guevara, que espero ver na cidade.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Yo, El Supremo



No domingo houve mais um referendo na Venezuela e 54% dos eleitores deram ao presidente Hugo Chávez o direito de tentar reeleições ilimitadas. O resultado reverte decisão negativa tomada numa votação há 15 meses, quando Chávez havia sido derrotado por 1%. O que aconteceu no país nesse período para que houvesse a reviravolta eleitoral em favor do presidente?

É uma pergunta difícil de ser respondida. O último ano foi ruim para a Venezuela, com aumento da inflação, queda no preço do petróleo e a constante polarização política que tem marcado a década de Chávez na presidência. Não houve nenhum fato de destaque que explique, por si só, o aumento do apoio a Chávez. Meu palpite é que a lógica do eleitorado passa pela constatação de que a crise mundial trará um período de grandes obstáculos à Venezuela, e que a liderança forte do presidente, com todos os seus defeitos, é necessária para que o país possa enfrentar a turbulência.

No entanto, é apenas um palpite. Os analistas políticos em geral não gostam de Chávez e as supostas explicações sobre seu sucesso raramente vão além de expressões vagas como "carisma" e "populismo". O que foi publicado de mais interessante nestes dias destaca os desafios que o presidente venezuelano enfrentará no futuro próximo. Seus discursos têm dado ênfase à gestão da crise econômica e ao combate ao crime, sem dúvida um dos principais problemas cotidianos no país. Como observaram os jornais, é uma mudança de tom, que deixa de lado as confrontações ideológicas e se volta para uma agenda mais próxima do dia a dia das pessoas.

A oposição, resta o consolo de ter conseguido 45% do total e pela primeira vez superado 5 milhões de votos. A abstenção esteve em torno de 1/3 dos eleitores, padrão comum na Venezuela, onde votar é facultativo.

Pós-Escrito: Dica do Sergio Leo: o artigo de Fabiano Maisonnave na Folha de São Paulo, analisando as razões da vitória de Chávez. Destaque para as mudanças no sistema eleitoral e nas relações federativas na Venezuela. Aliás, esperem para breve novidades envolvendo o site do Sergio e este blogueiro.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O Leitor


Há dez anos eu trabalhava na assessoria de imprensa da Editora Nova Fronteira – o equivalente funcional de colocar a raposa para tomar conta do galinheiro, ou por o viciado para gerenciar a boca de fumo – e uma das perólas que descobri na época foi um pequeno romance alemão, “O Leitor”, de Bernard Schlink. Fiquei satisfeito em vê-lo adaptado para o cinema, e um tanto surpreso que tenha demorado tanto, dada a força da história.

Schlink é jurista, professor universitário e também se dedica à ficção. Seus romances tratam de temas relacionados ao Direito. “O Leitor” é um conto de amor e tomada de consciência, tendo como pano de fundo os processos judiciais pelos quais a Alemanha tentou lidar com o passado nazista.

O personagem principal é Michael, um adolescente que na Alemanha da década de 1950 inicia um caso com Hannah, uma mulher mais velha. No ritual que desenvolvem, o rapaz lê para ela obras clássicas da literatura e do teatro, e depois fazem amor. Michael se intriga com a relutância de Hannah em falar sobre seu passado, e como ela parece carregar um pesado fardo. O romance dos dois dura apenas um verão, e a mulher desaparece sem avisar e sem deixar vestígios.

Oito anos depois, Michael estuda Direito e participa de um seminário especial sobre os crimes nazistas e nessa situação assiste ao julgamento de um grupo de mulheres que pertenceram às SS. Entre elas, está Hannah, acusada de um conjunto de atrocidades. E alguns detalhes do comportamento da ex-amante com as prisioneiras fará Michael rever de maneira dolorosa o caso de amor entre os dois.

Gostei da adaptação para o cinema, em particular pelo desempenho excepcional de Kate Winslet como Hannah – pelo qual ela está indicada ao Oscar. Infelizmente, o roteiro optou por ressaltar os aspectos mais melodramáticos da trama, incluindo um longo e desnecessário epílogo na época atual, com Michael interpretado no piloto automático por Ralph Fiennes (com a mesma expressão facial de seus últimos quatro ou cinco filmes).

A escolha do roteirista deixa de lado a possibilidade de desenvolver a relação de Michael com seu professor de Direito, vivido pelo sempre excelente Bruno Ganz. Os dois discutem a validade de julgar apenas alguns dos crimes cometidos durante o nazismo, e se as mulheres em julgamento não estariam sendo usadas como bodes expiatórios para aplacar a consciência culpada de milhões de outros alemães, que nada fizeram para impedir as atrocidades do período. Há um debate sobre as relações entre lei, justiça e moralidade, mas para Michael a questão é mais urgente e visceral: o que fazer quando ele descobre que a mulher que ama é culpada de coisas tão terríveis? Certamente uma pergunta que, em maior ou menor grau, atingiu a muitas pessoas na Velha Europa do pós-guerra.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Anatomia da Barbárie Suíça



Embora a polícia suíça especule sobre a veracidade do ataque racista ocorrido nesta semana contra uma brasileira que vivia em Zurique, a ascensão da extrema-direita no país é concreta, em particular pela ação do Partido do Povo Suíço (SVP), sigla radical que é a maior daquela nação. Ironicamente, o país sediará em abril a Conferência de Revisão de Durban, o principal fórum da ONU de combate ao racismo. A posição suíça, como a dos demais países europeus, tem sido de obstruir e dificultar os mecanismos de implementação dos acordos concluídos em Durban.

A ascensão do SVP tem preocupado os analistas políticos europeus. No Brasil, acompanhamos com mais atenção as tensões raciais envolvendo a França, Espanha e Itália - natural, dada nossa afinidade cultural com os países latinos. Mas é nas nações germanófonas, sobretudo Suíça e Áustria, que a extrema-direita racista mais conquistou força eleitoral. No caso suíço, tornou-se notória propaganda do SVP, que chegou a apresentar um cartaz no qual um pacato rebanho expulsa para fora do cercado o que aparenta ser uma perigosa ovelha negra.

Em alemão, o nome completo do SVP inclui a expressão Volkspartei. Se o nome faz você pensar nos nazistas, espere até ver as propostas do partido. Uma delas é deportar do país toda a família de imigrantes menores de idade condenados por crimes na Suíça. Há uma semelhança mais do que casual com as leis de Sippenhaft em vigor na Alemanha de Hitler, e mesmo por lá essa legislação só foi introduzida após a tentativa de assassinato do chanceler do Reich, em 1944.

Outra medida sugerida pelo SVP é proibir a construção de minaretes nas mesquitas da Suíça - trata-se da torre de onde os fiéis são chamados para a oração, e que rendeu algumas das mais belas pérolas da arquitetura islâmica. O detalhe é que o país possui apenas três minaretes, número um tanto irrisório para provocar tamanha gritaria.

A Suíça é um emaranhado multicultural de cantões de língua alemã, francesa e italiana, entre milhares de imigrantes - clandestinos e legais - que trabalham nas muitas organizações internacionais sediadas no país. Lá estava a Liga das Nações, lá fica a OMC e o Conselho de Direitos Humanos da ONU, entre outras instituições diplomáticas dedicadas a essa utopia sempre urgente de diálogos entre povos e governos.

A ONU tem tido um papel importante nos esforços para combater o racismo, em particular após a aprovação da CERD, o mais destacado tratado internacional sobre o tema. Em 2001 ocorreu a Conferência de Durban, que tratou de racismo, intolerância e xenofobia, e foi bastante tumultuada. EUA e Israel se retiraram do encontro por conta de tensões sobre a questão palestina. Esperemos que na presidência de Obama, os Estados Unidos mudem para posições mais construtivas. A transformação é fundamental para influenciar a Europa para outros e melhores rumos.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Repensar a Relação


Uma das coisas que sempre me intrigaram no debate sobre relações internacionais no Brasil é o contraste entre a reflexão acadêmica, que às vezes (só às vezes) é de excelente qualidade e a cobertura da imprensa, ainda muito baseada em clichês e opiniões absurdas, com pouca base histórica. Por isso é um prazer ler uma coluna como a de Cristiano Romero no Valor de quarta, sobre as possibilidades de maior aproximação entre Brasil e EUA na presidência de Barack Obama.

O texto de Romero é basicamente uma entrevista com meu amigo e antigo chefe na Fundação Getúlio Vargas, Matias Spektor, um dos mais dinâmicos acadêmicos que conheço. Também há declarações da historiadora americana Julia Sweig, uma especialista nas relações dos Estados Unidos com a América Latina, em particular com Cuba. O ponto essencial da entrevista com Matias é sua crítica a uma das contradições da política externa brasileira:

O Brasil tem uma tensão não-resolvida em nossa política externa. Por um lado, o país quer mais poder, prestígio e influência no mundo, mas, por outro, diz que não não é bom estar no radar dos EUA. Ora, se você quer ter força e se quer contribuir para a ordem global, tem que estar no radar dos EUA, mesmo que isso traga problemas (....) Isso não quer dizer alinhamento automático. É o contrário. É usar a relação privilegiada com os EUA como uma alavanca para aumentar o multilateralismo no mundo. É trazer à mesa questões que hoje não estão na mesa. Trata-se de uma oportunidade gigantesca.

Para ele, e para Julia Sweig, o melhor modo de realizar esse objetivo é concentrar os esforços diplomáticos brasileiros em áreas onde existam boas convergências entre os dois países, como a agenda de mudança do clima. Os dois defendem que o Brasil pode ter posições mais cooperativas com os Estados Unidos nesse campo, e colocar em segundo plano pontos muito conflitivos do debate internacional, como o protecionismo americano ao etanol brasileiro.

O Brasil é um país repleto de contradições e nada é muito simples na maneira pela qual ele se insere nas relações internacionais. Acredito, de fato, que é possível e desejável uma política externa de maior entendimento com os Estados Unidos, mas essa aproximação nunca será tão grande quanto, digamos, aquela que o Canadá ou o Japão têm como a terra de Barack Obama. Por sua condição de país em desenvolvimento, e por suas ambições diplomáticas de exercer liderança para nações em situação semelhante, é interessante para o Brasil ter certa distância de muitas das posições americanas, em particular aquelas que implicam perda de autonomia para Estados do sul global.

Encontrar o ajuste fino entre esses pólos tão diversos é sempre uma questão difícil e delicada, mas é dessas escolhas que se faz boas políticas.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Foi Apenas um Sonho



Continuemos com os comentários sobre os filmes candidatos ao Oscar. Gostei de "Foi Apenas um Sonho", título com o qual os sempre criativos tradutores pátrios resolveram batizar "Revolutionary Road", dirigido por Sam Mendes e estrelado por Leonardo Di Caprio e Kate Winslet. Os dois atores repetem a parceria de Titanic, mas graças ao bom Deus num contexto bastante diferente. A única coisa que naufraga no filme é o casamento dos protagonistas.

Os astros interpretam Frank e April Wheeler, um casal de boêmios e aspirantes a artistas que acabaram tendo filhos antes do que planejavam e ficaram presos na próspera vida suburbana dos Estados Unidos da década de 1950. Frank tem um emprego tedioso, mas bem remunerado, no setor de publicidade de uma empresa de máquinas industriais. April vive a frustração de não ter se tornado uma atriz e se sente infeliz na rotina de dona de casa. Ambos têm casos extraconjugais, mais para matar o tédio do que por desejo.

Os dois se acham mais inteligentes e sofisticados do que os vizinhos algo tacanhos de sua bela casa (bem, isso foi muito antes do estouro da bolha imobiliária...) na Revolutionary Road. Mas para a vizinhança, os Wheelers são ídolos, o modelo do sucesso e das realizações. É especialmente forte a relação com a vizinha interpretada por Kathy Bates, cuja personagem os idolatra ao ponto de apostar que a convivência com os dois poderá curar o filho que sofreu um colapso nervoso e passou algum tempo num hospício. Os comentários mordazes e duros do rapaz funcionam como uma espécie de consciência dos protagonistas, em particular de Frank.

À beira do desespero com a vida do subúrbio, April bola um plano mirabolante de ir viver em Paris e tenta convencer Frank de que poderá sustentá-lo enquanto ele se dedica a... Bem, a questão é que nenhum dos dois sabe muito bem que tipo de talento estaria supostamente desperdiçando.

"Foi Apenas um Sonho" é um bom filme, sustentado sobretudo pelo roteiro e pela excelente atuação de Kate Winslet. Uma sequencia, em especial, me impressionou: aquela em que April serve o café da manhã ao marido, num estado de absoluto desespero diante da vida. Mas isso não está no texto, nem nas atitudes da personagem, e apenas nos gestos, tons de voz e expressões faciais. É preciso ser uma excelente atriz para segurar um rojão assim.

O problema é a impressão de que já o vimos anteriormente. Lembra muito "Beleza Americana", do mesmo diretor, embora não tenha o humor e o lirismo daquela produção. E em outros aspectos se parece bastante com "Pecados Íntimos" (Little Children), também estrelado por Winslet. A diferença principal é que se foco é na deterioração do casamento dos protagonistas - um rapaz e uma moça legal, que realmente se amavam, e se vêem numa situação grave de agressões mútuas e vazio existencial.

Às vezes tive a sensação de que a dificuldade do casal era o tempo. Se a história se passasse dez anos mais tarde, em plena eferverscência da década de 1960, talvez tivessem encontrado nos movimentos da época um eco às suas preocupações. Ou pelo menos, companhia para o infortúnio. Mas os outros dois filmes que mencionem se passam nos dias atuais, e nem por isso seus protagonistas conseguiram escapar do tédio suburbano. Não duvido que ele exista, mas nossa, que jardins bonitos essas pessoas têm!

sábado, 7 de fevereiro de 2009

O Sonho Europeu



"O Sonho Europeu - como a visão européia do futuro vem eclipsando silenciosamente o sonho americano", de Jeremy Rifkin, é um livro um tanto mal organizado, mas com duas ou três percepções brilhantes sobre as relações entre Estados Unidos e União Européia, pelo prisma da cultura política. Rifkin é um escritor e consultor americano autor de livros de boa vendagem sobre temas como Meio Ambiente e transformações no mercado de trabalho. Esta obra tem o mérito da coragem: é uma defesa do modo de vida europeu, publicada em pleno fervor patriótico dos anos Bush.

Todos conhecemos o sonho americano - é o do self made man, o desejo de enriquecer por conta do esforço próprio. A ele se soma um segundo componente: a crença na América como a nação escolhida por Deus para realizar o potencial humano. Rifkin está bem informado sobre os dados sociológicos dos últimos 30 anos, que mostram como esse mito se tornou ainda mais difícil de ser concretizado, em função das esigualdades sociais crescentes, da deterioração do sistema de ensino público e dos obstáculos dos trabalhadores com pouca qualificação de encontrarem estalidade no contexto da competição global com suas contrapartes nos países emergentes. O ponto, afirma Rifkin, é que o sonho continua vivo e as frustrações crescentes na economia levam os americanos a se concentrarem no segundo aspecto do mito, a idéia da missão divina. Com as consequências trágicas que vimos no pós-11 de setembro.

O contraste de Rifkin é com o que ele chama de sonho europeu - uma vida tranquila e segura, baseada nos serviços públicos fornecidos pelo Estado de Bem Estar social e pela adesão a uma série de valores como preservação do Meio Ambiente, dos costumes tradicionais, do usufruto do tempo livre para passear, estar com os amigos e a família. Sem dúvida, a Europa Ocidental é a região do planeta onde o maior número de pessoas têm alta qualidade de vida, mas as idéias de Rifkin refletem muito mais a utopia da classe média alta do que a realidade do continente. Todos os exemplos que cita em seu livro vêm de profissionais liberais, e nunca de trabalhadores braçais, de pobres e/ou imigrantes.



Eis meu ponto: será que ainda é possível falar de um sonho europeu? O modelo do Estado de Bem Estar Social do pós-guerra entrou em crise na década de 1970, e embora não tenha acabado, sofreu limitações e questionamentos. Que tendem a se agravar por fatores demográficos (o envelhecimento da população) e pela competição internacional crescente da China e da India. A crise econômica atual talvez indique o retorno de projetos sociais ambiciosos, inclusive no mundo em desenvolvimento.

Rifkin tem uma excelente caracterização da União Européia como algo que não é um Estado, mas uma rede de governança onde se entrelaçam governos nacionais, regiões (Catalunha, Escócia, Sicilia etc), organizações da sociedade civil, empresas... É uma das boas percepeções do livro, mas ele tem uma visão demasiado otimista do suposto compromisso europeu com a diversidade. As tensões raciais, culturais e religiosas da integração dos imigrantes no Velho Mundo são muito grandes. Para Le Pen e cia, o sonho europeu é jogar os argelinos e turcos no Mediterrâneo.

Outro problema é sua caracterização da democracia européia como uma espécie de paraíso pós-material no qual cidadãos esclarecidos bebem suas xícaras de capuccino enquanto discutem como salvar Darfur. Não é bem assim. Estudos recentes apontam para o declínio das redes de confiança e sociabilidade entre os cidadãos, em particular entre os mais pobres. Embora essa queda não seja tão significativa quanto nos Estados Unidos, é algo que precisa ser levado em conta pelos analistas políticos.

Por fim, Rifkin tem uma visão da Europa muito concentrada nos países da região ocidental do continente. Seu livro foi publicado em 2004, e de lá para cá a União Européia quase dobrou de tamanho, com a incorporação um tanto problemática das nações da porção oriental do Velho Mundo. Dizer que a Romênia é européia pode ser uma cortesia geograficamente verdadeira, mas e quanto às condições de vida? Talvez seja mais correto afirmar que o sonho europeu é um projeto em construção e ainda não é claro para quais caminhos ele aponta. Em todo caso, Rifkin faz pensar e joga questões interessantes para o debate.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Benjamin Button


"É preciso muito tempo para se tornar jovem"
Pablo Picasso

Começaram a chegar aos cinemas brasileiros os filmes que disputam o Oscar 2009, e nos últimos dias vi alguns deles, incluindo o campeão de indicações "O Curioso Caso de Benjamin Button". A fábula sobre um homem que nasce velho e vai se tornando jovem aos poucos é um trabalho bastante atípico no currículo do diretor David Fincher (de "Seven", "Clube da Luta" e "Zodíaco"). Ele fez uma bela obra, mas que se apega aos clichês hollywoodianos quando poderia ter sido uma reflexão bem mais crítica sobre a obsessão com a juventude.

Button é interpretado por Brad Pitt, que se contém na atuação e evita ousadias. Seu personagem é um sujeito simples, um pouco como Forrest Gump, que é abandonado ao nascer e criado pela governanta de um asilo de velhos. Passa seus primeiros anos em meio a pessoas idosas, acreditando ser uma delas. À medida que vai se tornando jovem, desperta nele a paixão pelo mar, e ele roda mundo embarcado num navio rebocador, no qual participa da Segunda Guerra Mundial. Volta para casa a tempo de viver um grande amor com a amiga de infância, vivida por Cate Blanchett, e o auge de sua forma física coincide com a explosão juvenil do fim da década de 1950 e início dos anos 60.

À primeira vista, Button parece livre dos problemas relativos ao envelhecimento, e poderia desfrutar das benesses da juventude quando já tivesse acumulado experiência de vida. Mas isso só acontece num primeiro olhar. Quando os anos passam, Button começa a se tornar uma criança do ponto de vista biológico, ficando em grande descompasso com relação às pessoas que ama. No limite, suas incapacidades físicas vão se parecendo muito àquelas de uma pessoa muito idosa, criando problemas semelhantes para se locomover e falar. Toda juventude é passageira, mesmo quando se fica mais jovem com o tempo.

Como era de se esperar num filme desse tipo, o trabalho de maquiagem é sensacional. Não apenas no sentido de mostrar Brad Pitt e Cate Blanchett mais velhos - algo que o cinema faz à exaustão - e mais pela impressionante capacidade de mostrar Pitt como mais jovem, usando roupas e penteados para dar a impressão de que ele voltou a ser um adolescente.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Uma Década de Chávez



Nesta segunda Hugo Chávez completa 10 anos como presidente da Venezuela - o recorde desde Bolívar! No dia 15 haverá um referendo (mais um) para decidir se poderá concorrer a (mais uma) reeleição. No balanço geral da década, impossível escapar da sensação que o país perdeu (mais uma) excelente oportunidade do boom petrolífero para se desenvolver, e que sua política se tornou um emaranhado de instituições frágeis, sempre ameaçadas por personalismos e tendências autoritárias de diversos matizes ideológicos.

No fim da década de 1950 a ditadura militar venezuelana foi substituída por um acordo entre os dois principais partidos da elite civil, o chamado Pacto de Punto Fijo, que equilibrou o jogo político por 30 anos, evitando novos golpes mas às custas de excluir a participação de muitos movimentos sociais importantes da esquerda. Ainda assim, os analistas acadêmicos em geral consideravam a democracia da Venezuela como uma das mais sólidas da América Latina. A ilusão foi destruída em 1989, quando uma rebelião popular contra um duro pacote de estabilização econômica foi reprimida pelo Exército em um banho de sangue nas favelas e bairros pobres de Caracas.

Não havia ficado claro na época, mas o evento marcou o fim de Punto Fijo e despertou a inquietação política de um grupo de jovens oficiais militares que viam seus superiores com deprezo, como lacaios da oligarquia corrupta e violenta que controlava o país. Há muitas semelhanças com o tenentismo brasileiro da década de 1930 e com o movimento militar peruano dos anos 1960. Contudo, essas duas correntes tiveram seu auge num momento em que a democracia estava sob ataque no continente, ao passo que os soldados venezuelanos tentaram derrubá-la quando ela havia se tornado praticamente consensual na região. O resultado foram os dois golpes fracassados de 1992, mas a derrota da insurreição transformou-se em vitória política para o tenente-coronel Hugo Chávez, o carismático oficial pára-quedista que comandou o movimento.

A popularidade conquistada pela tentativa de golpe surpreendeu o próprio Chávez, que levou a década de 1990 inteira para perceber que poderia ter grande sucesso eleitoral. O mais complicado foi transformar seu grupo de conspiradores militares em alguma coisa próxima a um partido político - a rigor, até hoje o processo não se completou, e os métodos hierárquicos de liderança de Chávez frequentemente entram em conflito com as demandas dos movimentos sociais que se aliam a ele. A dificuldade de institucionalizar o movimento vem do personalismo extremo do presidente, que afasta todos os colaboradores que começam a ser algo mais do que sua sombra. Chávez não tem um Número 2. É um Perón sem Evita, que depende de parentes próximos - como o pai e o irmão mais velho - para cargos de confiança.

A falha em criar um partido democrático de massas é um dos principais problemas do Chavismo, outro é a dificuldade do movimento em aceitar a legitimidade dos grupos de oposição, insistindo em classificá-los sob rótulos insultosos de traição da pátria. A mudança constante e casuística das regras eleitorais tampouco ajuda a consolidar um ambiente favorável à democracia venezuelana. Temos também os impactos da Constituição de 1999, que comentei em post da semana passada.

O panorama é melhor quando abordamos as políticas sociais de Chávez. Em que pesem as manipulações partidárias da distribuição de benefícios, elas de fato proporcionam avanços significativos no atendimento de saúde, expansão de oportunidades de educação e ampliação da segurança alimentar, via preços subsidiados. O ponto é que tais ações também tem sido implementadas, até com mais sucesso, por governos moderados como os do Brasil e do Chile, e mesmo por presidentes conservadores com os do México. É um preço alto, e questionável, a pagar pela "Revolução Bolivariana".

No que toca à controversa política externa de Chávez, creio que o balanço é matizado. Muito da agenda chavista - petróleo barato em troca de influência política no Caribe, América Central e Andes - repete paradigmas clássicos da diplomacia venezuelana, em particular a agenda terceiro-mundista que teve seu auge na década de 1970, após o choque petrolífero e no governo de Carlos Andrés Pérez. A novidade são os ataques retóricos aos Estados Unidos, que fazem sucesso com a população mas afastam presidentes que de outro modo poderiam encontrar bons pontos de convergência com Chávez - o Peru é o exemplo mais forte. Para não mencionar as trágicas intervenções venezuelanas no conflito armado da Colômbia.

Para as nações do Cone Sul, Chávez é um aliado importante, apesar dos ocasionais constrangimentos políticos. Suas ofertas de energia e o atrativo mercado consumidor estimulado pelo câmbio sobrevalorizado tornam a Venezuela um parceiro muito sedutor para Argentina e Brasil, que têm ampliado muito seus negócios (exportações e investimentos) no país.

Os ciclos políticos da Venezuela tem sido dominados pelas altas e baixas do petróleo desde a década de 1920 e tudo indica que continuará a ser assim. Os indicadores econômicos do país estão muito ruins diante da crise atual e a perspectiva é de tempos difíceis para Chávez, com o crescimento de alternativas eleitorais na oposição, como mostraram as eleições regionais de novembro.