sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Ditaduras


Há alguns dias a Folha de São Paulo publicou um editorial classificando o regime militar brasileiro como uma "ditabranda" em comparação com os demais governos autoritários da América Latina, que teriam sido, esses sim, "ditaduras". Embora o argumento seja utilizado há muito pela direita brasileira, a reação foi bastante intensa, tanto por parte da comunidade acadêmica quanto dos colegas blogueiros, e você pode ler balanços detalhados e apaixonados sobre a discussão nos sítios do Pedro Doria, do Idelber Avelar e do Sergio Leo, com foco na questão da responsabilidade da imprensa. Minha participação no debate vai por outro lado, justamente o da perspectiva latino-americana.

Passei boa parte dos últimos cinco anos viajando pelo Cone Sul em trabalhos de cooperação entre os movimentos sociais da região. O contraste entre a força das manifestações pró democracia e direitos humanos na Argentina, Chile e Uruguai é intenso com relação ao Brasil. Nos países vizinhos a rejeição às ditaduras é bem mais presente do que por aqui, onde ocasionalmente até políticos de esquerda fazem comentários nostálgicos sobre os grandes projetos de desenvolvimento econômico dos militares.

Evidentemente, as ditaduras da Argentina (sobretudo a de 1976-1983), do Chile e do Uruguai se defrontaram com movimentos de esquerda, armada ou não, bem mais fortes do que os que existiam no Brasil da década de 1960. O conflito político em geral foi bem mais violento lá do que cá, sendo que na Argentina foram utilizados métodos que mais se assemelham ao Holocausto nazista, ao ponto dos massacres do período serem classificados como genocídio. Contudo, a realidade da tortura, do arbítrio, das perseguições foi notavelmente semelhante na região inteira. Todas as ditaduras se parecem, ainda que a contagem dos cadáveres possa variar.

A melhor análise que ouvi sobre o assunto veio - de todos os lugares - de um coronel do Exército brasileiro. Aliás, um oficial brilhante, como muitas vezes costumo encontrar nas Forças Armadas. Conversando sobre o tema da ditadura, ele utilizou de início argumentos parecidos ao editorial da Folha, para concluir de maneira surpreendente: "A questão é que, para uma mãe que perdeu o filho, ou alguém que ficou sem um ente querido, não importa se os mortos foram 500, 5 mil ou 50 mil. A perda emocional é insubstituível e essa é a questão fundamental sobre os conflitos do governo militar."

A ditadura brasileira foi tão cruel como a dos vizinhos, apenas foi mais habilidosa politicamente, oferecendo à classe média diversas válvulas de escape, em particular pela prosperidade material, como no setor público em expansão, com empregos bem remunerados nas empresas estatais. Um quadro que contrasta com a catástrofe dos militares argentinos, ou o instável ritmo stop and go do regime de Pinochet no Chile (pelo menos até a crise de 1982 e a guinada para uma política menos ideológica e mais pragmática).

Torço para que a consciência brasileira com respeito às ditaduras da região se aprimore e nesse ponto temos muito o que aprender com os vizinhos. Confesso minha vergonha diante do debate atual, enquanto meu amigo Patricio escreve da Argentina contando as novidades sobre a inauguração de centros da memória sobre o período autoritário. Será que um dia teremos algo semelhante para expor?

11 comentários:

Sergio Leo disse...

Sem compartilhar da opinião de que vivemos uma "ditabranda", caro Santoro, no caso do Brasil há um aspecto econômico que abranda os julgamentos de nossos ditadores. Equanto os argentinos destruíram a economia deles, e Pinochet atrelou a economia chilena definitiviamente à produção de commoditties (até com algum êxito), os milicos montaram um sistema financeiro diversificado, com fundos como o FGTS e as acadernetas de poupança, e o estadista Geiosel (adjetivo aplicado pelo Lula) criou uma sólida indústria de base...

Enzo Mayer Tessarolo disse...

olá, Maurício

Esse assunto está, realmente, por todos os lados. Gostei, porém, da abordagem mais histórica que você deu ao tema, ao invés de simplesmente criticar a Folha (o que não seria muito difícil).

Aliás, com relação a história política-social da Am. Latina no século XX, você poderia me indicar um bom livro? Confesso que já comprei vários depois de ter lido suas "resenhas" aqui blog...ehhehe.

Abraços

Enzo Mayer Tessarolo disse...

Caro Maurício,

Totalmente fora do assunto: onde posso encontrar o seu artigo “em Busca do Inimigo: Os EUA numa Era de Ameaças Difusas”? Não sei se já comentei com você, mas estou fazendo minha monografia sobre a mudança do inimigo na política externa americana... Por isso, seu artigo é pertinente e, vindo de você, deve ser interessante.

Maurício Santoro disse...

Pois é, Sergio. Detesto admitir, mas aqui tivemos uma ditadura desenvolvimentista, mais parecida com os modelos do leste da Ásia do que com os vizinhos latino-americanos.

O que me espanta é uma certa nostalgia da esquerda quando aborda o período, sem botar o dedo na ferida da exclusão social do modelo autoritário, da repressão aos trabalhadores, da falta de investimentos sociais etc.

Oi, Enzo.

Espero que as leituras estejam te ajudando... É díficil pensar num só volume que dê conta do recado, ainda mais em português. Para ficar na história mais recente (década de 70), sugiro "Fórmula para o Caos", de Moniz Bandeira, que trata principalmente do governo chileno de Salvador Allende, mas dá um belo panorama do continente naquele momento.

O meu artigo que você citou está publicado num livro chamado "Relações Internacionais: temas contemporâneos", editado pela Federação Nacional de Estudantes de Relações Internacionais. Talvez você possa consegui-lo entrando em contato com a organização, o sítio é http://www.feneri.org.br/

Abraços

Patricio Iglesias disse...

Caro Maurício:
Obrigado pela mençäo! Pra mim é um gosto poder encontrar aspeitos positivos da Argentina, coisa que é muito difícil pra nós. Pra os que estäo, interessados, as novas estäo aqui:

http://www.clarin.com/diario/2009/02/13/um/m-01858495.htm e http://www.diarioelsol.com/noticias.php?ed=12640&di=0&no=57551

Aqui se fala de "dictablandas" pra chamar aos governos militares anteriores ao Proceso de 1976-1983. Näo tinha pensado antes, mas agora näo gosto da aplicaçäo do termo. Muitos morreram durante issos regimes (especialmente com a Revolución "Libertadora" de 1955, com centos de mortes), outros foram exiliados, algúns pressos e outros perderam trabalhos, como meu avô, o qual também é muito duro.
Interessante sua comparaçäo da ditadura brasileira com as do Leste Asiático. Nunca tinha ouvido assim. Penso que é muito acertada. A diferência, sem dúvidas, é que a Corea do Sul, o Taiwán, etc. alcanzaram um grado de desenvolvimento social muito maior e chegaram a se integrar ao primer mundo, quando no Brasil as diferéncias entre classes näo melhoraram.
Saludos!

Anônimo disse...

Mauricio,

Vai ficar meio confuso para variar, mas o sudeste asiático existia uma forte ditaduras também, Corea etc. O Brasil também não se aproxima delas por que apesar do crescimento aqui não tivemos um projeto de nação, acho que esse ponto singular da coisa.

O que houve no Brasil com o medo de dividir os ganhos com todos (uma releitura da obra FHC de 1963)- e o poder - o Estado suprime as demandas sociais da sociedade, mas diferença cria mecanismos para que a situação não fique no limite do intolerável, por isso mesmo na década de 1970 em SP havia problemas assistências na periferia.

Além disso, devido a sua formação, bem ou mal com o Decreto 200, consegue-se trazer boa parte da classe média universitária para trabalhar com as estatais ou pelo menos com empresas ligadas a ela. Além de apesar ser muito ruim os avanços em termos de cargos profissionais (concursados como vc)o Brasil é uma ilha, isso impediu que o preenchimento de vagas fosse apenas mero quem indica, certo que no final dos anos 80 com as necessidades crescentes de apoio o governo militar loteou...e os quadros que saíram (e ganharam) com isso estavam na ARENA continuam até hoje e querem sempre revive-lo.

O que nos faz diferente é que aqui dividiu os lucros com a classe média universitária e elite da época sindical, apoiou-se a criação de grandes grupos econômicos para contrabalançar o poder dos grupos anteriores existentes, além das dimensões continentais explicam as dificuldades da oposição ao regime. Quer dizer eles trouxeram (ou tentaram) para o regime, o apoio dos grupos que teriam tradição e legitimidade para revoltar-se contra ele, os novos agentes teriam ainda uma longa trajetória para poder demandar pelos seus interesses.

E retornando ao tema apoio de classes, o exercito sempre teve forte apoio na classe média de onde vinham boa parte dos seus membros, esse divórcio só ocorrerá na década de 70, quando a classe média torna-se maior e o ideal de emprego torna-se outro.

Na Argentina e outros países latino-americanos por já terem sido muito mais evoluídos socialmente, não tinham espaço para aglutinar tantos grupos, por isso quando cada um agiu como sempre o fez, deu no que deu.
Concluindo: A sorte (se pode dizer isso) é que o Brasil até 1960 era um país agrário, sem excedente, com população carente aos milhares, classe média ratifica,

Por isso, nada de se estranhar que a FSP como grupo empresarial tenha apoiado o regime e queira fazer uma releitura do que ela foi beneficiada, já que no modelo anterior o regime apenas exigiria sem contrapartidas, temos que até louvar essa atitude do editorialista de não ser ingrato com seu passado e não devemos confundir a posição da empresa (e sua história) com os jornalistas que pode ser bem outra.

Maurício Santoro disse...

Olá, Patricio.

Obrigado a você, pelas indicações sempre interessantes. É curioso o que você menciona sobre as interpretações a respeito das diversas ditaduras argentinas, me pergunto se algo assim não ocorre no Brasil quando comparamos o Estado Novo de Vargas ao regime militar.

Caro Marcelo,

o seu comentário tem tantos pontos interessantes que eu precisaria escrever um livro para responder a você (risos).

Mas falando sério, acho extremamente interessante uma comparação entre as ditaduras asiáticas e a brasileira. Com certeza, em países como Coréia do Sul e Taiwan havia uma série de questoões de construção nacional que iam para além do projeto do "Brasil Potência".

Me pergunto se um modelo mais adequado para a comparação com o Brasil não seria a Indonésia, onde houve um crescimento econômico expressivo, embora com uma repressão muito mais violenta.

abraços

carlos disse...

meus caros,

vocês estão falando do brasil mesmo, é?

pelo que me consta, as nossas vítimas da ditadura não são somente aquelas das estatísticas oficiais do "tortura nunca mais".

e o clima de delação implantado em todos os rincões do país, que levou pessoas a perderem o emprego, sofrerem sevícias em delegacias obscuras, enloquecerem, se suicidarem, e que nunca foram relacionadas à época ditadorial?

por fim, esse discurso de que o período do golpe de vinte anos foi uma modernização conservadora, infelizmente, ainda continua insepulto, apesar de sua podridão.

saudações

Maurício Santoro disse...

Carlos,

com certeza o número de vítimas oficiais é subestimado, sem contar que é difícil mensurar o puro e simples processso de cala boca e emburrecimento nacional. Ainda assim, em termos de números, a coisa foi pior na Argentina e no Chile.

Abraços

Anônimo disse...

Modernização conservadora é isso mesmo. O Brasil foi o país do mundo que teve o maior crescimento econômico entre 1930 e 1980, mas manteve intocado o problema da miséria e das desigualdades. Progresso material sem progresso político.

Sobre a habilidade dos militares brasileiros para se manterem no poder, vale a pena citar a política cultural, especialmente no governo Geisel, com o ministro Ney Braga.

Teve a Embrafilme, a Funarte. Com uma mão o governo "prende e arrebenta" e com a outra financia a maior parte da produção cultural, amenizando as possíveis críticas.

Neste ponto, apesar de em um extremo oposto do espectro político, a ditadura brasileira se pareceu com a de Fidel.

Maurício Santoro disse...

Página de Cultura,

Sem dúvida. Uma vez eu assistia a um filme sobre a ditadura chilena com meu irmão e ele ficou muito impressionado com o caráter bem mais conservador, do ponto de vista cultural, do regime de Pinochet.

Contudo, a política cultural da ditadura brasileira é bastante ambivalente, para dizer o mínimo. Por um lado temos muita repressão, em especial contra o teatro e a música, por outro a abertura de válvulas de escape, como a Embrafilme.

É preciso considerar também o papel que a TV, sobretudo a Globo, desempenhou no período, como máquina ideológica a serviço do regime, mas ao mesmo tempo protegendo muitos artistas de esquerda, perseguidos pela ditadura. Todo o povo do CPC da UNE, por exemplo, foi para a empresa.

Abraços