segunda-feira, 13 de abril de 2009

O Che de Soderbergh


Como diz meu amigo Douglas, cada um tem seu Personal Che. O do cineasta americano Steven Soderbergh é curiosamente conservador e parece ter permanecido como nos pôsteres da década de 1960. A primeira parte de seu épico sobre o revolucionário argentino é baseada nos diários do próprio Guevara sobre o período da guerrilha em Sierra Maestra, e intercala cenas da epopéia da Revolução Cubana com um discurso de Che na Assembléia Geral da ONU, em 1964. Cinquenta anos após o triunfo dos barbudos, já é hora de um olhar menos reverente sobre o mito.

Benicio del Toro interpreta Guevara com paixão que assemelha a uma possessão religiosa, e merece plenamente o prêmio de melhor ator que conquistou em Cannes. Rodrigo Santoro (não, não, nenhum parentesco com este blogueiro!) está bem como Raúl Castro, um papel pequeno mas importante para o enredo. Já Deminán Bichir, que vive Fidel, se parece tanto com Vittorio Gassman que a qualquer momento eu esperava que soasse a marcha do Incrível Exército de Brancaleone.

A alusão à ótima comédia de Mario Monicelli não é à toa. A guerrilha em Sierra Maestra pode ser narrada de várias formas, e quem leu o excelente diário de Raúl Castro sobre o conflito sabe o quanto de bom humor brancaleônico havia nos jovens combatentes, mesmo diante das situações mais difíceis como morte e fome. Nada assusta muito quando temos 20 anos, não é mesmo? Os cineastas italianos são mestres em aplicar a ironia para uma visão mais terna e humana dos conflitos políticos, e Ettore Scola deu uma boa ajuda a Walther Salles JR. como consultor do roteiro de "Diários de Motocicleta", talvez o filme mais doce e poético já feito sobre a formação de um líder revolucionário.

Contudo, a opção de Soderbergh excluiu inteiramente o humor. Seu Che parece um homem de aço forjado nos cânones do realismo socialista. Em todos os momentos do filme ele é determinado, honesto, incorruptível, duro, fazendo o que tem que ser feito - seja atender camponeses doentes e miseráveis, executar desertores, tratar prisoneiros com humanidade ou combater. Há uma cena que poderia estar na série Rambo, na qual ele toma uma bazuca de um guerrilheiro que não consegue operá-la direito, a coloca nos próprios ombros, e explode um posto do Exército cubano. Tudo muito macho man.



Guevara deixou a primeira esposa no México, antes de partir para a guerrilha, e teve uma vida amorosa bastante ativa na Sierra. Esse aspecto não é retratado no filme, embora o enredo mostre como ele conheceu Aleida, que se tornaria sua segunda mulher, e como ela se tornou sua assistente durante a Revolução.

O aspecto político do filme é bastante bem trabalhado, com mais precisão do que em qualquer outra obra de ficção que eu conheça. Vemos Fidel articulando a luta armada com os movimentos de oposição ao ditador Fulgêncio Batista, numa difícil articulação que mistura operações guerrilheiras, greves gerais, trabalho clandestino e negociações delicadas. Nestes tempos em que o Exército dos EUA debate exaustivamente táticas de contrainsurgência, talvez "Che" possa ser exibido como aula cinematográfica sobre ataques guerrilheiros. Nesse sentido, é bom ver a representação de importantes momentos da história latino-americana, como a batalha de Santa Clara, célebre pelo ataque dos guerrilheiros ao trem blindado de Batista. Ainda que eu ache que tudo tenha ficado um tanto confuso em cena.

Na realidade, esta é apenas a primeira parte de um filme que ficou longo demais para ser lançado de uma só vez, portanto é interessante esperar e ver como Soderbergh irá tratar de Guevara após a conquista de Havana e suas tentativas (Brancaleônicas? Quixotescas?) de levar a revolução ao Congo e à Bolívia. De qualquer modo, terei o filme em mente amanhã, quando darei uma aula sobre Cuba no pós-Guerra Fria, no MBA em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.

7 comentários:

Milton Ribeiro disse...

Impossível melhor comentário. Não fui ao cinema -- irei --, mas vi tudo. Não se lerá na mídia algo mais claro e esclarecedor, certamente.

Obrigado.

Maurício Santoro disse...

Não tem de quê, Milton. Fiquei pensando no "Reunião", de mestre Cortázar, e na ternura daquele conto. Será que hay que endurecer siempre? Certamente não, no caso da arte, e provavelmente a resposta também é negativa na vida.

Abraços

Isabella disse...

Olá Mauricio !

Não estou conseguindo abrir o link do
"diário de Raúl Castro". Poderia coloca novamente?

Também gostei do comentário sobre o filme. Assisti assim que lançou nos cinemas. Estava esperando você postar!

Abs Isabella

Maurício Santoro disse...

Isabella,

Tente o link abaixo:

http://www.rguama.cubasi.cu/anc/sitios/raul_castro/SierraMaestra.html

Abraços

Patricio Iglesias disse...

Caro Maurício:
Concordo totalmente. Há muitos "Ches". O "che", "gente" na língua mapuche (que significa "gente da terra"); o "che", issa palavrinha täo nossa; o "Che" das remeras que chevam pessoas que pouco savem dele; o "Che" dos nostálgicos que vem como algo passado; o "Che" dos rockeros (um pouquinho capitalista, muitas vezes); o "Che" dos partidos de esquerda... Hay muchos, ¿No, che?
Saludos!

Maurício Santoro disse...

Che, creo que tienes razón. Pero a mi siempre me gustaba cuando alguién decía che en Argentina.

Abrazos

Igor Pessoa disse...

Caro Maurício, vi o filme ontem e concordo com o seu comentário. Fiquei um tanto quando decepcionado com o enfoque dado à guerrilha. Não só pela má organização do filme em si, mas pelo modo com que o recorte foi feito. Esse Che está quase um capitão Nascimento. Por falar nisso aquela cena dele com a tropa e perguntando quem gostaria de ser dispensando, ficou assustadoramente parecida com aquela famosa do "pede pra sair" do tropa de elite. Com direito a gritos do Che de fracos, medrosos e etc. Esse herói que faz a justiça com as próprias mãos é uma abordagem um tanto quanto pobre...
Abs