quarta-feira, 12 de agosto de 2009
Cambão
Uma amiga muito querida é neta de Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas das décadas de 1950 e 1960, e acompanho o belíssimo trabalho que sua família realiza para recuperar documentos históricos relacionados a Julião. Dias atrás ela me deu de presente um desses frutos, o livro “Cambão – a face oculta do Brasil”, obra escrita por seu avô no exílio no México, só publicada em português no mês passado, embora tenha quase vinte edições estrangeiras.
A palavra cambão é um regionalismo com vários significados no Nordeste, como o dia de trabalho gratuito que o trabalhador rural precisa conceder ao dono da terra – um desdobramento da corvéia medieval. Também é o nome de um tipo de arreio utilizado nos animais e os sinônimos dizem muito sobre o que eram (são?) as condições trabalhistas no interior do Brasil.
O livro de Julião mistura suas memórias com análise social, política e antropológica do campesinato nordestino. Os trechos autobiográficos dizem respeito à juventude do autor e a seu trabalho como advogado trabalhista, especializado em defender trabalhadores rurais. Depois veio sua passagem pela Assembléia Legislativa de Pernambuco e sua atuação à frente das Ligas Camponesas, um dos principais instrumentos nas lutas pela reforma agrária e pela efetivação dos direitos trabalhistas na zona rural, a partir do célebre caso do Engenho Galiléia.
O lado ensaístico do livro são as descrições e exames que Julião realiza da terra e das pessoas. Ele havia escrito ficção antes de ser líder político e o amor pela literatura transparece na beleza poética com que conta as histórias de sofrimento e esperança que presenciou. O rigor analítico se manifesta na dissertação sobre os diversos tipos de relacionamento entre os proprietários rurais e os trabalhadores, com freqüência definidos somente com base em acertos orais, de extrema dependência pessoal. Julião mostra como as instituições jurídicas eram manipuladas pelos fazendeiros, mas também examina as transformações pelas quais o sistema coronelista passou no século XX, com seu progressivo enfraquecimento com a proclamação da República e o avanço da legislação trabalhista e da política democrática.
Uma das minhas mentoras acadêmicas é uma antropóloga que começou a carreira estudando a zona canavieira no Nordeste. Ela me esclareceu que no Brasil a palavra “camponês” foi introduzida no debate público pelos movimentos sociais, até então se usava no país uma série de termos regionais, que variavam segundo os modos de uso da terra – colono, parceiro, morador, lavrador etc. Julião comenta que seus discursos na Assembléia Legislativa provocavam furor, pois o termo “camponês” despertava o pavor dos demais deputados. Uma colega sugeriu que ele usasse expressão mais amena para definir os trabalhadores do campo: “rurícola”.
O último capítulo do livro aborda o exílio de Julião. Como tantos de sua geração, foi o momento de descoberta da América Latina. Em seu caso, os laços mais fortes foram com México, Cuba e Chile. Países onde a palavra campesino é bastante utilizada, e onde houve reformas agrárias expressivas. Outros exemplos são Bolívia e Peru.
Embora uma série de teorias políticas previsse sua extinção, os camponeses tiveram intensa participação nas grandes revoluções sociais do século XX. Isso é válido para os exemplos latino-americanos que mencionei acima, e também para os casos da Rússia, China e Vietnã. O processo está longe de ser compreendido, e não se encerrou. Está vivo em mobilizações como as dos cocaleiros andinos, em grande parte do movimento indígena da região, no MST brasileiro, e coloca questões importantes para países de forte base agrária, como China e Índia.
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2 comentários:
Salve Don Mauricio!
Que artigo oportuno: acabei de assistir o baixio das bestas, e estava a refletir sobre a realidade social retratada na película.
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Como dizia Il Gattopardo: "mudemos nós, para que tudo continue na mesma!"
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Salve, dom Luiz.
Ainda não vi o Baixio, mas conheço a história do filme. Será que mudou tanta coisa?
Abraços
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