segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Testemunhas da China
Em belíssima reflexão de Primo Levi sobre sua experiência nos campos de concentração nazistas, o escritor afirma que os que sobreviveram ao século XX não foram aqueles que o vivenciaram em seu âmago. Os que viram a face da Medusa não voltaram, ou voltaram sem palavras. Levi se referia aos horrores da Segunda Guerra Mundial, do Holocausto e do totalitarismo e creio que muito do que ele mencionou também se aplica à história contemporânea da China, com o esfacelamento da República entre os senhores da guerra, a invasão japonesa o conflito entre nacionalistas e comunistas, a Revolução de 1949 e os eventos cataclísmicos que se seguiram, em particular as perseguições políticas da década de 1960. O contraponto otimista é o espetacular progresso material dos últimos 30 anos, na qual a renda per capita do país aumentou 20 vezes! A jornalista chinesa Xinran realizou um brilhante trabalho de entrevistas com idosos que passaram por todas essas experiências, sintetizadas em seu livro “Testemunhas da China”.
Xinran tornou-se famosa como jornalista na China dando voz a grupos marginalizados, como mulheres e camponeses pobres. Ela mora há vários anos no Reino Unido e escreve no jornal The Guardian. Sua perspectiva é crítica ao Partido Comunista, mas com orgulho das realizações chinesas desde 1949, em particular a resistência e heroísmo de seu povo. “Testemunhas” segue esse espírito.
O livro é organizado em torno de 11 grandes entrevistas a idosos na faixa dos 70-80 anos, de diversas regiões, classes sociais e experiências de vida. Há pessoas muito pobres, como uma sapateira que sobrevive nas ruínas de uma fábrica, e indivíduos bem-sucedidos, como o casal pioneiro na indústria do petróleo (o núcleo duro dos tecnocratas que reformaram a China sob Deng Xiaoping) e uma general responsável pela educação em línguas estrangeiras do Exército. Outros têm posições mais ambíguas, como o artesão especializado nas tradicionais lanternas de festividades, respeitado por sua perícia mas vendo sua renda econômica decair junto com esse costume, ou o policial e juiz veterano que se aposentou com poucos recursos, após anos de conflitos contra a corrupção e o arbítrio.
Em meio à diversidade, alguns fios condutores: a experiência da miséria e da fome na China pré-revolucionária, crença quase religiosa na importância da educação, rigorosa ética de trabalho, o trauma da guerra contra o Japão (o ódio ao país ainda está muito vivo nas lembranças dos idosos) e visões geralmente benignas da Revolução, sempre descrita como Liberação.
Os dramas com a política começam mais tarde, sobretudo com a Revolução Cultural da década de 1960. Há certa nostalgia com o idealismo e a dedicação dos primórdios do regime comunista, mesmo em meio à penúria material, mas transparecem arrependimentos com a vida íntima deixada em segundo plano, em particular o tratamento frio e inadequado dados aos filhos. Chama a atenção igualmente o enorme grau de repressão sexual e dos sentimentos amorosos. Xinran não desenvolve o ponto, mas é inevitável pensar que toda essa frustração acabou encontrando um canal perigoso nos embates dos guardas vermelhos.
Após as reformas econômicas a vida melhorou muito, mesmo para os mais pobres e confortos como televisão, rádio e uma dieta mais rica se tornaram corriqueiros. É freqüente os idosos compararem os bens dos quais dispõem hoje com a miséria do passado e se orgulharem dos sacrifícios com que ajudaram a construir a China moderna. Mas, simultaneamente, há apreensões com o materialismo e o individualismo atuais, que julgam excessivo, e críticas ao aumento da corrupção dentro do partido comunista. O regime, em si mesmo, não parece colocado em questão e só os entrevistados com mais contato com a cultura ocidental mencionam a possibilidade de democracia.
Em resumo, excelente livro, dos melhores deste ano. Fiquei com vontade de ler outras obras da autora. Alguém pode me dizer o que achou de “As Boas Mulheres da China” ou “O Que Os Chineses Não Comem”?
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4 comentários:
Meu caro:
É muito positivo ver que o mundo acadêmico está interesado na China num momento no qual näo há jornal que näo fale dela.
Aqui estou umos dias em Mendoza, compreenderá minha falta nos comentários!
Saludos!
A imagem da revolução cultural me arrepia a espinha, por que uma grande lição do século XX, foi que jovens fardados, empolgados e idolatrando um líder política é a receita da desgraça.
O melhor da juventude quando nas mãos de homens torpes (não importa o lado no espctro político) é uma força capaz de crueldade inimiginaveis. E se livre é capaz de mudar o mundo, derrubar políticas injustas, impactar positivamente.
Essa humanidade tão complexa!! Mas, isso que faz da nossa profissão de analista e cientista social um desafio tão prazeiroso. Bom pelo menos eu vejo assim.
Salve, Patricio.
Nos últimos meses foram publicados no Brasil excelentes livros sobre a China. Há realmente muito material disponível.
Caro Mário,
De fato. O ser humano é um bicho complicado. Mas talvez seja por isso que tenhamos emprego! :-)
Abraços
Não conheço o livro “O Que Os Chineses Não Comem”? mas irei comprá-lo para ler porque gostei muito de "As boas mulheres da China" e muito mais ainda de "Enterro celestial" cujo enredo é simplesmente fantástico. Não deixe de ler.
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