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Poucos países tem uma tradição de arte política tão forte quanto a Itália. Gosto especialmente do cinema na segunda metade do século XX e de sua belíssima crônica das esperanças e desapontamentos do período. A Itália contemporânea é um estudo de caso para o declínio de valores éticos, mas suas produções artísticas continuam a maravilhar, mesmo que não com a mesma freqüência da época mais rica.
“Vincere” [vencer, um dos brados dos fascistas], de Marco Bellocchio, é um olhar original sobre o fascismo, a partir de uma história pouco conhecida: o romance entre Benito Mussolini e a empresária Ida Dalser. Ela se tornou sua amante quando ele era um jovem e provocador jornalista de extrema-esquerda, nos anos que precederam a I Guerra Mundial. A eclosão do conflito dividiu os socialistas em toda a Europa, e Mussolini foi talvez o mais estridente entre os que abraçaram a causa bélica. No decorrer de quatro anos em que a Itália sofreu derrotas fragorosas, ele virou um nacionalista agressivo e um homem de direita.
Mussolini já era casado quando conheceu Ida, mas os dois tiveram um filho. A relação não era um problema nos tempos da militância socialista, porém virou um obstáculo político à medida que o fascismo ascendia e pregava um ideal bastante conservador de família, incompatível com os casos extraconjugais do Duce. Ida acabou num hospício, e o filho, criado por um ativista fascista.
Bellocchio usa a história de amor para fazer a anatomia da loucura do fascismo, sobretudo na sequências ambientadas nos diversos hospícios em que Ida é internada. Numa das melhores cenas, as internas cantam a altos brados os hinos fascistas, numa paródia que me lembrou a excelente peça Marat/Sade, de Peter Weiss, na qual o Marquês de Sade encena momentos decisivos da Revolução Francesa com seus colegas de encarceramento no hospício.
Destaque para o ótimo roteiro e uma dupla de atores sensacionais: Giovanna Mezzogiorno, como Ida, e Filippo Timi, que interpreta Mussolini e seu filho. Ele soa mais convincente e carismático do que o próprio Duce: imagens de época, exibidas no filme, o retratam como um canastrão risível, com mais do que uma semelhança ocasional com o atual primeiro-ministro Silvio Berlusconi...
Em suma, Bellocchio completa com este filme seu ensaio sobre outra loucura política italiana, a da extrema-esquerda, em seu ótimo “Bom Dia, Noite”, sobre as Brigadas Vermelhas.
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A luta armada italiana é o tema de um belo e triste romance epistolar, “Caro Michele”, de Natalia Ginzburg, recém-publicado no Brasil. Ambientado no início dos anos 70, é a história de um rapaz (em italiano, Michele é o equivalente a “Miguel” em português) que se envolve com um grupo comunista em meio à uma intensa crise pessoal. Enquanto sua vida íntima cai aos pedaços, ele se envolve num conflito que não entende.
Acompanhamos seus dilemas por meio de cartas e bilhetes trocados entre ele, sua mãe, irmãs, o melhor amigo, uma moça a quem talvez tenha engravidado e outros personagens. A família é de uma confortável classe média e a correspondência entre os integrantes pulula de preconceitos: contra os pobres, homossexuais, e a incompreensão com as escolhas políticas do filho único. No belo texto de Ginzburg, a maior parte das coisas importantes não é dita, ou está nas entrelinhas, num jogo de silêncios e incompreensões que pavimenta o caminho para o destino trágico da geração dos anos de chumbo italianos.
Ginzburg escreve com conhecimento de causa: militante histórica da esquerda italiana, seu primeiro marido foi morto na prisão, durante o fascismo, e ela eurodeputada pelo Partido Comunista.