segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Arte e política na Itália: Vincere e Caro Michele



Poucos países tem uma tradição de arte política tão forte quanto a Itália. Gosto especialmente do cinema na segunda metade do século XX e de sua belíssima crônica das esperanças e desapontamentos do período. A Itália contemporânea é um estudo de caso para o declínio de valores éticos, mas suas produções artísticas continuam a maravilhar, mesmo que não com a mesma freqüência da época mais rica.

“Vincere” [vencer, um dos brados dos fascistas], de Marco Bellocchio, é um olhar original sobre o fascismo, a partir de uma história pouco conhecida: o romance entre Benito Mussolini e a empresária Ida Dalser. Ela se tornou sua amante quando ele era um jovem e provocador jornalista de extrema-esquerda, nos anos que precederam a I Guerra Mundial. A eclosão do conflito dividiu os socialistas em toda a Europa, e Mussolini foi talvez o mais estridente entre os que abraçaram a causa bélica. No decorrer de quatro anos em que a Itália sofreu derrotas fragorosas, ele virou um nacionalista agressivo e um homem de direita.

Mussolini já era casado quando conheceu Ida, mas os dois tiveram um filho. A relação não era um problema nos tempos da militância socialista, porém virou um obstáculo político à medida que o fascismo ascendia e pregava um ideal bastante conservador de família, incompatível com os casos extraconjugais do Duce. Ida acabou num hospício, e o filho, criado por um ativista fascista.

Bellocchio usa a história de amor para fazer a anatomia da loucura do fascismo, sobretudo na sequências ambientadas nos diversos hospícios em que Ida é internada. Numa das melhores cenas, as internas cantam a altos brados os hinos fascistas, numa paródia que me lembrou a excelente peça Marat/Sade, de Peter Weiss, na qual o Marquês de Sade encena momentos decisivos da Revolução Francesa com seus colegas de encarceramento no hospício.

Destaque para o ótimo roteiro e uma dupla de atores sensacionais: Giovanna Mezzogiorno, como Ida, e Filippo Timi, que interpreta Mussolini e seu filho. Ele soa mais convincente e carismático do que o próprio Duce: imagens de época, exibidas no filme, o retratam como um canastrão risível, com mais do que uma semelhança ocasional com o atual primeiro-ministro Silvio Berlusconi...

Em suma, Bellocchio completa com este filme seu ensaio sobre outra loucura política italiana, a da extrema-esquerda, em seu ótimo “Bom Dia, Noite”, sobre as Brigadas Vermelhas.



A luta armada italiana é o tema de um belo e triste romance epistolar, “Caro Michele”, de Natalia Ginzburg, recém-publicado no Brasil. Ambientado no início dos anos 70, é a história de um rapaz (em italiano, Michele é o equivalente a “Miguel” em português) que se envolve com um grupo comunista em meio à uma intensa crise pessoal. Enquanto sua vida íntima cai aos pedaços, ele se envolve num conflito que não entende.

Acompanhamos seus dilemas por meio de cartas e bilhetes trocados entre ele, sua mãe, irmãs, o melhor amigo, uma moça a quem talvez tenha engravidado e outros personagens. A família é de uma confortável classe média e a correspondência entre os integrantes pulula de preconceitos: contra os pobres, homossexuais, e a incompreensão com as escolhas políticas do filho único. No belo texto de Ginzburg, a maior parte das coisas importantes não é dita, ou está nas entrelinhas, num jogo de silêncios e incompreensões que pavimenta o caminho para o destino trágico da geração dos anos de chumbo italianos.

Ginzburg escreve com conhecimento de causa: militante histórica da esquerda italiana, seu primeiro marido foi morto na prisão, durante o fascismo, e ela eurodeputada pelo Partido Comunista.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

As Guerras da América Latina



O Estado fez a guerra, e a guerra fez o Estado. (Charles Tilly)

A América Latina é um continente estranho. Tem menos guerras que a Suíça, e mais generais do que a Prússia. (Fidel Castro)

A América Latina é um continente com poucas guerras. Em quase dois séculos de vida política independente, houve apenas três conflitos de vulto entre os países da região (Tríplice Aliança, Pacífico e Chaco), com mortes na escala de dezenas de milhares de pessoas. As nações latino-americanas mais belicosas são as menores: Paraguai, Bolívia, Peru e Equador. Os maiores e mais poderosos, Argentina, Brasil e México, são bastante pacíficos. Mesmo o Chile, com todo seu estilo militar prussiano, não luta desde o século XIX. A situação é uma anomalia para os padrões internacionais e tem gerado em anos recentes uma quantidade crescente de estudos interessantes. Tratar da guerra é discutir a formação e limites do Estado.

O acadêmico que tem realizado as pesquisas mais sistemáticas sobre o tema é o sociólogo Miguel Centeno, da Universidade Princeton. Ele interpreta a baixa quantidade de guerras na região como conseqüência da fragilidade dos Estados, sua baixa carga tributária e dificuldade de mobilizar os cidadãos. Centeno tem sido também um analista crítico dos novos papéis desempenhados pelas Forças Armadas da América Latina, em especial sua utilização no combate ao tráfico de drogas.

Outro que tem se dedicado ao tema é o historiador boliviano Antonio Mitre, que observa que quase todas as guerras latino-americanas foram motivadas por disputas de fronteiras, em particular quando o território contestado envolvia recursos naturais significativos, de guano e nitrato a petróleo, passando pelo controle de rios importantes. Ainda assim, Michael Ross, da Universidade da Califórnia, trata das “missing oil wars” do continente, notando a ausência de conflitos secessionistas, em que grupos rebeldes buscam o petróleo como base para criar um país independente.




O debate teórico é interessante, mas a meu ver não conseguiu responder a uma contradição essencial: por que Estado tão pacíficos em suas relações internacionais são tão violentos internamente, contra sua própria população? O histórico regional de ditaduras, guerras civis, e atos de barbárie é, afinal, péssimo. E por vezes esses regimes autoritários conduzem a conflitos bélicos, como nas Malvinas.

Uma saída pode ser incorporar à discussão questionamentos de outros continentes, como o ótimo livro “States and Power in Africa”, de Jeffrey Herbst, também de Princeton, que comecei a usar em meus cursos. Faz uma ótima e fértil mistura entre teoria de relações internacionais e política comparada para examinar a realidade africana, que nesse aspecto se parece com a América Latina.

A conclusão de Herbst é sombria: os líderes da África independente teriam chegado a um arranjo político de evitar causar problemas uns para os outros além das fronteiras, de modo a poder concentrar esforços na repressão a grupos étnicos/partidários/religiosos dissidentes em seus próprios países. Há uma ou outra exceção a esse padrão não-intervencionista, sempre atreladas a cruzadas ideológicas: a África do Sul do apartheid, o coronel Kadafi na Líbia, as guerras étnicas transnacionais entre tutsis e hutus, entre Ruanda e o Congo, que acabaram engolfando toda a região dos Grandes Lagos.

Outra analogia curiosa – e preocupante – entre América Latina e África é que os anos recentes, de pós-Guerra Fria e democratização, têm sido marcados pelo aumento de conflitos internacionais por recursos naturais, nas duas região. Não são necessariamente guerras, podem ser disputas diplomáticas, choques de fronteiras, ações judiciais etc. Continuo a apostar em que razões econômicas, como a alta do preço das commodities, é a influência principal. Mas o tema é aberto a interpretações.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

John Adams



Um aluno me emprestou a minissérie “John Adams”, do canal HBO, uma excelente telebiografia de um dos pais fundadores dos Estados Unidos, que acompanha o período da Revolução Americana e dos primeiros e turbulentos anos de vida independente do país. Adams era um advogado de Boston que foi deputado no Congresso que decidiu pela separação das 13 colônias do Império Britânico, organizou o exército continental comandado por George Washington e serviu a jovem nação como diplomata na França, Holanda e Grã-Bretanha.

Adams é interpretado por Paul Giamatti, excelente ator que retrata o político como um homem atormentado por dúvidas e frustrações, mas capaz de grande perseverança. Fascinante ver as transformações e o amadurecimento do personagem, em especial quando ele é eleito presidente – o segundo, sucedendo Washington – e assume a responsabilidade em manter os EUA fora das guerras napoleônicas.

A série é muito bem-sucedida em mostrar os embates que dividiram os Estados Unidos em seus primeiros anos. Adams era membro dos federalistas, o grupo que defendia um governo central forte para consolidar a independência e fazer frente aos desafios internacionais. O mais destacado de seus integrantes foi o secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, que preconizava a criação de um Banco Nacional, que fomentaria o desenvolvimento econômico por meio do lançamento de títulos da dívida pública. Hamilton também escreveu o famoso Relatório sobre as Manufaturas, argumentando pela proteção às indústrias nascentes dos EUA, e um dos autores dos Artigos Federalistas, um clássico da Ciência Política que foi publicado como artigos em jornais, em defesa da nova Constituição americana. Na série, Hamilton é mostrado de modo hostil, como um homem ambicioso e sedento de poder, um proto-ditador.



O contraponto aos federalistas eram os republicanos democráticos (sem relação com o partido atual, que só se formou bem mais tarde, na década de 1850), dos quais o principal expoente era Thomas Jefferson (foto acima, à esquerda, com Adams). Concentrados no sul, viam com desconfiança os planos federalistas, acreditando que expressavam os interesses econômicos do norte e que acabariam por suplantar os impulsos libertários da Revolução. Preferiam uma distribuição de poder que beneficiasse a autonomia dos estados.

A política externa também dividia as duas facções. Os federalistas eram pró-britânicos e afirmavam que os Estados Unidos deveriam deixar para trás a hostilidade à Grã-Bretanha e estabelecer boas relações comerciais e políticas com o império. Os republicanos eram simpáticos à França e apoiavam sua Revolução, que viam como a continuação da experiência americana. Jefferson, o autor da Declaração da Independência Americana, ajudou a Assembléia Nacional francesa a elaborar seu próprio documento-chave, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Numa das frases mais memoráveis da minissérie, ele brinda à Revolução. Adams provoca: “Americana ou Francesa?”. A resposta de Jefferson: “They are one and the same.”

Washington era simpático aos federalistas, mas atuava como mediador entre eles e os republicanos. Nos assuntos externos, seu famoso Discurso de Despedida da Presidência alertava os Estados Unidos para os riscos de alianças permanentes e aconselhava à nação ficar fora das guerras européias, como de fato ocorreu por mais de 100 anos, até o conflito mundial de 1914-1918. É uma bela peça retórica, que não aparece na minissérie, mas o debate sobre o tema está bastante presente em cena.

Há um tema curioso que também não foi mostrado na TV. A primeira onda de sentimento anti-imigração nos EUA ocorreu na década de 1790, e veio justamente do confronto entre os dois partidos. A maioria dos novos imigrantes era favorável ao programa republicano e os federalistas acreditavam que a melhor maneira de manter sua influência era reduzir esse fluxo migratório.

A minissérie tem algumas cenas nas quais os personagens principais condenam a escravidão, mas são momentos passageiros. Omissão curiosa, visto que os embates com respeito ao tema foram uma das principais causas da guerra civil que quase destruiu o país na década de 1860.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Os Excluídos



Meu amigo João Daniel me recomendou este excelente romance, que na edição brasileira se chama “Os Excluídos” – em inglês o título é The Vagrants, isto é, pessoas muito pobres que se deslocam sem cessar, de um lugar para outro. Foi escrito por Yiyun Li, uma jovem autora chinesa que emigrou para os Estados Unidos na década de 1990. Menina-prodígio na matemática, ela se revelou também um imenso talento literário. Seu livro é um retrato dolorido da China após a Revolução Cultural, nos anos que antecederam a guinada rumo às reformas econômicas e à prosperidade e que foram marcados pela derrota do movimento do Muro da Democracia.

O romance é ambientado na aldeia (ficcional) de Rio Lamacento, a cerca de mil quilômetros de Pequim e começa com a execução de Gu Shan, uma jovem que durante a Revolução Cultural foi a mais radical Guarda Vermelha do local, e nessa condição cometeu diversas atrocidades contra a população do vilarejo. Contudo, ela se decepcionou com o camarada Mao e acabou denunciada às autoridades pelo próprio namorado.

A ação se inicia em 1979. Mao já morreu e seus colegas da Gangue dos Quatro estão na cadeia. Em Pequim, Deng Xiaoping disputa o poder com a corrente mais conservadora do Partido Comunista, e estimula cautelosamente protestos sociais e críticas do período da Revolução Cultural. Em Rio Lamacento, essa explosão de medos, ressentimento e expectativas frustradas ocorrerá em torno das pessoas que conviveram com Shan.

Desse modo, Yiyun Li pinta um painel fascinante do cotidiano chinês à época, por meio dos dilemas de cerca de uma dúzia de personagens. Os pais de Shan, um professor aposentado e sua esposa, se dividem entre a dor de perder a filha e a vergonha pelos crimes que ela cometeu na Revolução Cultural. O pai é especialmente traumatizado, pelas perseguições que sofreu no início do comunismo, e por ter se divorciado da primeira esposa, uma militante fanática. Kai, é uma ex-colega de escola de Shan, que se casou com um figurão do Partido e tem um confortável cargo de locutora na rádio oficial, mas cujas dúvidas com o regime são crescentes, em particular quando se torna amiga de um dissidente. Nini, uma adolescente que nasceu deformada em razão de uma agressão de Shan contra sua mãe. Tong, um menino recém-chegado do campo que vaga pelas turbulências locais sem compreendê-las – uma ignorância que se mostrará fatal num tempo de furacões políticos.

As emoções despertadas pela execução de Shan são contraditórias, e a ex-fanática maoísta vira um símbolo do amor à liberdade e à justiça para os jovens dissidentes. Embalados pela tolerância de Pequim com o movimento do Muro da Democracia, os ativistas resolvem organizar um protesto em Rio Lamacento contra a opressão comunista, mas logo ficará claro para direção sopram os ventos da nova China.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A Reforma Militar Alemã



A Alemanha deu início a maior reforma de suas Forças Armadas desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de criar uma estrutura militar mais moderna, profissional - e barata. O processo é comandado pela jovem estrela da política alemã, o barão Karl-Theodor zu Gutenberg, atual ministro da Defesa do país. Acadêmico especializado em política internacional, casado com a bela bisneta do chanceler de ferro Otto von Bismarck, com menos de 40 anos e fã de rock, sua ascensão na vida pública foi chamada de "Woodstock para conservadores".

KT, como é conhecido, tem pela frente a tarefa de reduzir as Forças Armadas de 250 mil para 60 mil integrantes e substituir o serviço militar obrigatório pelo recrutamento voluntário. A questão mais complexa é responder à pergunta: qual a principal missão das Forças Armadas da Alemanha no mundo contemporâneo?

Quando o III Reich foi derrotado na Segunda Guerra Mundial, a idéia inicial dos Aliados era desarmar a Alemanha para sempre. Mas o projeto foi rapidamente abandonado com a eclosão da Guerra Fria. Subitamente, a Alemanha Ocidental se tornou a linha de frente do enfrentamento ao bloco soviético. Em poucos anos, até os eternos rivais franceses abandonaram a oposição ao rearmamento alemão e aceitaram o país como membro da aliança militar da OTAN e como um baluarte contra a URSS.

A reunificação alemã ocorreu simultaneamente ao aprofundamento da integração européia, com o Tratado de Maastricht, as negociações que resultaram no euro e a incorporação dos países da Europa Oriental ao bloco regional e à OTAN. Mas a estrutura das Forças Armadas pouco mudou. A Alemanha foi uma das maiores financiadoras da Guerra do Golfo, no Oriente Médio, e participou de missões de paz na ex-Iugoslávia e, de modo secundário, dos bombardeios da OTAN ao Kosovo.

No entanto, o rito de passagem foi a guerra que a aliança conduz no Afeganistão. KT, na realidade, ganhou destaque na opinião pública por chamá-la pelo nome, "guerra", já que a maioria dos políticos prefere eufemismos como "conflito", e tem sido bastante crítico à atuação da OTAN no país asiático. As preocupações alemãs são grandes: é a terceira maior fornecedora de tropas, atrás apenas dos EUA e do Reino Unido, e soldados da Alemanha tem morrido e matado no campo de batalha, com traumas como o bombardeio acidental a um comboio civil, há um ano. Sempre um tema delicado, dada a história germânica.

Ironias, a crise econômica da União Européia, e a intenção de cortar gastos públicos, parece que será um incentivo mais decisivo para reformar as Forças Armadas do que o colapso da URSS, os Talibãs afegãos e as demais mudanças no cenário estratégico internacional.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Democracia, Ditadura e Desenvolvimento



Dias atrás o economista Dani Rodrik, professor em Harvard, publicou artigo sobre a relação entre crescimento econômico e regimes políticos, onde afirma que só as democracias são capazes de enriquecer um país, e que o desenvolvimento promovido pelas ditaduras é efêmero e ilusório. O texto ignora vários debates contemporâneos na Ciência Política e na Economia – mas vale a discussão. Primeiro o argumento de Rodrik:

A relação entre a política pública de um país e suas perspectivas econômicas é uma das mais fundamentais - e mais estudadas- matérias de toda a Ciência Social. O que é melhor para crescimento econômico - uma poderosa mão guiadora livre da pressão da concorrência política, ou uma pluralidade de interesses concorrentes que estimula abertura a novas ideias e a novos protagonistas políticos?

Exemplos do Leste Asiático (Coreia do Sul, Taiwan, China) parecem indicar a primeira alternativa. Mas como, então, poderemos explicar o fato de que quase todos os países ricos - exceto os que devem suas riquezas apenas às reservas naturais - são democráticos? Deveria a abertura política preceder, em vez de suceder, o crescimento econômico?


O argumento de Rodrik é frágil, porque quase todos os países desenvolvidos foram autoritários no passado – monarquias absolutistas, ditaduras militares, regimes fascistas, o que seja. A exceção parcial são os Estados Unidos, mas mesmo por lá houve durante muitas décadas a escravidão e a exclusão de direitos para amplas parcelas da população, sobretudo no sul.

Ou seja, é possível argumentar que as bases para o crescimento econômico desses países foi lançada no período autoritário, e que as democracias construíram a partir desse legado sólido. Alguns pesquisadores afirmam mesmo que, nos estágios iniciais da industrialização, ditaduras podem ser mais eficientes. A Coréia do Sul é um exemplo importante.

Há inclusive um longo debate, que vem da teoria da modernização na década de 1960, que afirma que as nações só se democratizam de maneira efetiva após vários anos de crescimento com a criação de uma classe média ampla e de uma economia moderna. Esse pode ser o caso da Península Ibérica na Europa, e quem sabe o de algumas nações no lado oriental, como Hungria, Polônia e os países bálticos.

Há duas contestações relevantes à teoria da modernização. A primeira é a existência de países pobres, com baixa renda per capita, e que conseguiram estabelecer democracias funcionais, como Índia e Botsuana. O caso indiano é ainda mais interessante pela enorme diversidade étnica, religiosa, lingüística etc, e porque do outro lado da fronteira está o Paquistão, que tomou rumo oposto, apesar de um passado colonial semelhante. O que vai acontecer com a China, que apesar do fantástico crescimento dos últimos anos ainda é um país pobre? Façam suas apostas.

A segunda contestação é aquela que considera o aumento do PIB como apenas parte do desenvolvimento, uma condição necessária, mas não suficiente, para alcançar esse objetivo. Nessa perspectiva, um país desenvolvido é aquele cujos cidadãos tem garantidos uma série de direitos humanos, o usufruto de um meio ambiente preservado, e, evidentemente, as liberdades democráticas, e um bom padrão de vida. Esse é o enfoque do “desenvolvimento como liberdade”, do economista Amartya Sen, e de outras correntes contemporâneas da teoria do desenvolvimento.

Rodrik argumenta que os países mais promissores em termos de crescimento econômico são as democracias emergentes do Brasil, Índia e África do Sul. Por que ele não incluiu a Turquia, uma das nações que mais cresce no mundo? Bem, ele a listou – mas como uma “república do medo”, autoritária. Isso porque seu sogro é um dos generais presos pelo governo, sob acusação de tramar um golpe militar contra o AK, o partido islâmico moderado que está no poder há quase dez anos.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Por que Orwell Importa



Devo ao amigo Gabriel um excelente presente: o livro "Why Orwell Matters", de Cristopher Hitchens, que acaba de ser lançado em português comm o título "A Vitória de Orwell". Ambos compartilhamos a admiração pelo estilo literário de Hitchens e por sua verve de polemista franco-atirador, absolutamente imprevisível em suas contendas, que abarcam de Madre Teresa de Calcutá (!) a Henry Kissinger e incluem pérolas do jornalismo como seu artigo "Belive me, it´s torture", no qual descreve de forma impagável como mudou de idéia a respeito dos métodos de interrogatório usados para combater o terrorismo.

Hitchens naturalmente se identifica com George Orwell, o escritor e jornalista britânico de vida breve mas com uma obra rica em romances e ensaios, que tratam de temas como o imperialismo europeu na Ásia, o totalitarismo soviético, a guerra civil espanhola e os dilemas liberais e progressistas em meio à crise da democracia na década de 1930 e no alvorecer da Guerra Fria.

O livro não é uma biografia tradicional, e sim um perfil intelectual, no qual as idéias de Orwell são apresentadas em capítulos que sintetizam suas posições - e oposições - em relação ao imperialismo, à direita, à esquerda, ao feminismo, aos Estados Unidos e à Inglaterra, com seções um pouco menores abordando seus romances e sua recepção pelos críticos culturais contemporâneos.

Hitchens só é Hitchens se estiver defendendo ou criticando uma causa, e ele assume a defesa de Orwell com relação a seus opositores ideológicos mais ferozes, em todos os espectros políticos. É preciso ao mostrar como muitas vezes as idéias de Orwell foram deturpadas por seus críticos, mas admite que o escritor mantinha certos preconceitos com relação aos homossexuais e às mulheres emancipadas.

Naturalmente, todos temos nossas limitações, mas o que impressiona em Orwell é como ele foi capaz de superar várias delas. Criado numa família de elite, optou por não cursar a universidade e serviu como policial na então colônia britânica da Birmânia, experiência que o deixou enjoado com o imperialismo. Pediu demissão e viveu frugalmente como escritor e jornalista. Lutou na Espanha com uma milícia anarquista e foi testemunha - e quase vítima - do autoritarismo dos comunistas locais.

A rejeição ao totalitarismo se manteve mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, quando a URSS era fundamental para a derrota da Alemanha nazista, mas ao contrário de muitos, Orwell nunca embarcou na ilusão de acreditar que o regime stalinista era algo mais do que uma máquina terrivelmente repressora. Daí surgiram seus romances mais famosos, "Revolução dos Bichos" e "1984".

Intelectuais independentes e críticos costumam ser leitura bem mais interessante do que aqueles que jogam as cartas marcadas das quase sempre tediosas contendas das igrejinhas partidárias. Por isso Orwell importa e os pontos que Hitchens levanta são de suma importância para manter acesa a chama da inquietação. Sempre

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O Caso Sakineh Ashtiani



Nesta semana tive tripla jornada de trabalho: como gestor de políticas públicas, como professor e como comentarista na imprensa. Além das análises sobre América Latina, já postadas no blog, também falei para rádios e jornais a respeito dos direitos humanos no Irã, em razão do caso de Sakineh Mohammadi Ashtiani – a mulher condenada à morte por apedrejamento, a quem o Brasil ofereceu asilo.

Ashtiani foi condenada por adultério em 2006, mas após a pressão internacional por seu caso, o governo iraniano acrescentou há alguns dias a acusação de homicídio, afirmando que ela teria assassinado o ex-marido, com a cumplicidade do amante. As autoridades também modificaram o modo de execução da pena, trocando o apedrejamento pela forca, para ela e para outras mulheres na mesma situação.

Líderes e artistas dos Estados Unidos e da União Européia se manifestaram em defesa de Ashtiani, no que o governo do Irã alegou ser um pretexto para intervenção em seus assuntos internos. A oferta brasileira é incômoda para a República Islâmica, porque o Brasil é, afinal, um mediador importante para buscar uma solução dialogada em torno do programa nuclear iraniano.

As reações das autoridades do país foram desencontradas – o embaixador em Brasília afirma que o pedido de asilo sequer foi feito. A controvérsia demonstra um fato que é esquecido com freqüência nas análises da imprensa, mas ressaltado nos estudos acadêmicos: o governo do Irã é extremamente fragmentado, com disputas ferozes entre clérigos, políticos, militares.

O caso atual opõe o presidente Mahmoud Ahamadinejad ao chefe do Poder Judiciário, Sadeq Larijani, expoente das facções mais conservadoras e intransigentes na República Islâmica. E não que Ahamadinejad seja um moderado...

Nesta semana Ashtiani apareceu na televisão numa “confissão” que faz lembrar aquelas que ocorriam em outros regimes ditatoriais, do Brasil à China. Seu advogado fugiu do Irã após ter seu escritório saqueado e seus parentes agredidos pela polícia. A família de Ashtiani afirma que ela foi torturada, denúncia muito verossímil no país. Outra das 12 mulheres que também esperam no corredor da morte iraniana sofreu recentemente um aborto, após ser espancada na prisão.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

América Latina e Presos Políticos em Cuba



Reproduzo abaixo meu artigo publicado ontem no jornal "Folha de S. Paulo", que desenvolve pontos que abordei anteriormente aqui no blog.

A mediação diplomática da Espanha e do Vaticano resultou na libertação de 52 presos políticos em Cuba. O governo Raúl Castro, pressionado após a morte do dissidente Orlando Zapata, em decorrência de greve de fome, percebeu a necessidade de direitos humanos.

A conjuntura cria oportunidade excepcional para os países da América Latina, em sua maioria aliados do regime cubano: um esforço conjunto para convencer Havana a libertar os cerca de cem presos de consciência que continuam detidos nos cárceres da ilha.

O Brasil pode e deve assumir a liderança deste processo. Em 2009, a Revolução Cubana completou 50 anos, e seu estágio atual se parece muito mais com o nacionalismo de suas origens do que com os dogmas marxistas-leninistas adotados durante a vigência da aliança entre Cuba e União Soviética. O fim da Guerra Fria levou o regime cubano a um severo ajuste estrutural econômico, abrindo-se ao capital estrangeiro.
Investimentos espanhóis no turismo, canadenses na mineração e chineses na infraestrutura resultaram em crescimento, apesar da deterioração da qualidade de vida, em particular das habitações.

A guinada econômica foi acompanhada por mudanças na política externa. O apoio a grupos rebeldes e insurreições armadas foi substituído por diplomacia defensiva que visa a preservação do regime cubano. Cuba conseguiu interlocutores na União Europeia, Canadá e Vaticano, mas ao custo de concessões significativas.

A aproximação com a Igreja Católica, que culminou na visita do papa João Paulo 2º à ilha, em 1998, se fez ao preço do retorno das liberdades religiosas ao país, mesmo com a apreensão de Havana quanto aos movimentos sociais cristãos pró-democracia, dos quais o mais expressivo é o Projeto Varela.

A ascensão de governos de esquerda na América Latina, a partir de 1999, deu a Cuba o cenário regional mais favorável desde a Revolução. Embora os partidos progressistas do continente tenham diversas tendências ideológicas, todos consideram Havana símbolo do nacionalismo, da busca por autonomia e por reformas sociais. Muitos tiveram no regime cubano um aliado durante o enfrentamento às ditaduras militares das décadas anteriores.

Por sua tradição de resolução pacífica de conflitos, peso econômico e diplomático, o Brasil é o candidato natural à liderança do processo. Ótima oportunidade para o governo brasileiro abandonar a constrangedora prática recente de proteger ditadores e retomar a diretriz constitucional de que a política externa deve ser regida pela prevalência dos direitos humanos.

Os principais candidatos à Presidência da República -todos veteranos da luta contra a ditadura militar- podem ser agentes importantes dessa mudança.
Uma anistia ampla, geral e irrestrita aos presos políticos cubanos é excelente avanço rumo à vigência plena dos direitos humanos na ilha e à consolidação da democracia na América Latina.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Uribe, Santos, Chávez



No fim de semana fui entrevistado pela Globonews a respeito da posse do novo presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, e das implicações de seu governo para as relações com a Venezuela e o Brasil. Meu comentário foi que sua ascensão à presidência traz uma expectativa moderada de melhorias.

Santos foi ministro da Defesa de Álvaro Uribe, posto no qual, evidentemente, se destacou pela ação contra as guerrilhas. Contudo, suas posições anteriores de alto escalão foram todas nas áreas de comércio exterior e economia internacional. Nos anos 90, inclusive advogou negociações de paz com as FARCs. A família do novo presidente é de grandes empresários, por décadas foram os magnatas da mídia na Colômbia. A ênfase nos negócios pode ajudar bastante nas relações com Hugo Chávez: apesar de todas as turbulências entre seus presidentes, Colômbia e Venezuela seguem sendo as segundas maiores parceiras comerciais uma da outra, atrás somente dos Estados Unidos.

Outro sinal de boa vontade de Santos foi nomear como ministra das Relações Exteriores a diplomata Maria Angela Holguin, que havia sido embaixadora em Caracas e mantido ótimo diálogo com Chávez – embora, ironicamente, tenha tido alguns problemas com Uribe. Chávez respondeu ao gesto enviando seu chanceler, Nicolas Maduro, para a posse de Santos. Nada mal para países que passaram os últimos anos cortando relações e fechando embaixadas.

Algumas das perguntas da entrevista disseram respeito ao personalismo na política latino-americana, no sentido que a diplomacia – que deveria ser uma política de Estado,marcada mais por continuidade do que por mudanças bruscas – tornou-se muito dependente dos humores e caprichos dos governantes. Chamei a atenção para as semelhanças entre Colômbia e Venezuela. Até a década de 1990, ambos os países tinham sistemas partidários muito fortes, que entraram em colapso, simultaneamente, por conta de problemas diversos: crises econômicas, violência política etc. Dos escombros dessa ordem institucional ascenderam dois presidentes carismáticos e centralizadores: Uribe e Chávez. Parecidos, apesar de estarem em pólos ideológicos opostos.

A meu ver, o melhor remédio para tanto personalismo seria fortalecer as instituições regionais sul-americanas, de modo a consolidar fóruns que possam amortecer os impulsos mais destrutivos que vem dos Andes. Talvez o Conselho de Defesa da região possa desempenhar esse papel, caso reforce sua capacidade e seja percebido pelos principais atores políticos do continente como um órgão neutro e de confiança. Tarefa difícil, diante da ambigüidade com que muitos países sul-americanos tratam as guerrilhas colombianas.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Império



O império britânico começou pilhando o ouro e a prata dos espanhóis, desenvolveu-se copiando as instituições financeiras dos holandeses e consolidou seu poder derrotando militarmente franceses e indianos. No percurso, governou 25% da Terra e lançou as bases para a globalização econômica contemporânea. Estas são as teses do historiador Niall Ferguson, em seu livro “Império – como os britânicos fizeram o mundo moderno”. Adaptado de uma série de TV apresentada por ele, cada capítulo é como um episódio, abordando mercadorias, migrações populacionais, idéias e guerra (clique aqui para baixar o primeiro capítulo).

A Inglaterra era a prima pobre no início da colonização européia das Américas e até o século XVII seus domínios não se estendiam muito além de algumas plantações de tabaco e cana de açúcar no Caribe e no atual sul dos Estados Unidos e de um punhado de vilas fundados por dissidentes religiosos que fugiam de guerras e perseguições na Europa. Aos poucos os lucros obtidos pelos produtos americanos impulsionaram um amplo movimento colonizador – a maior migração de pessoas da história, diz Ferguson.



No século XVIII, a Inglaterra já consolidara sua hegemonia sob as Ilhas Britânicas – Escócia, País de Gales, Irlanda - e desenvolveu um engenhoso sistema de financiamento para suas guerras e empreendimentos coloniais, baseado na venda de títulos da dívida pública. Uma bem organizada máquina militar, amparada na maior e mais eficaz marinha do mundo, permitiu aos britânicos derrotaram os franceses na Guerra dos Sete Anos, um conflito que se estendeu pelas Américas, Europa e Ásia, e culminou na supremacia britânica nas disputas imperiais globais.

O Império perdeu os Estados Unidos em 1783, mas conquistou algo mais importante – a Índia. Ferguson traça excelente síntese das diversas etapas da colonização, desde o início com a “parceria público privada” representada pela Companhia das Índias Orientais, passando pelas guerras contra os soberanos mogóis indianos até o sangrento conflito de 1857 – a “Primeira Guerra de Independência”, como dizem os nacionalistas na Índia, ou o Grande Motim, como preferem os britânicos.



A maior novidade do livro, para mim, foi a análise dos “domínios brancos” do Canadá e da Austrália. Conheço pouco da história de ambos. Aprendi com Ferguson que os dois foram beneficiados por importantes reformas no século XIX, que lhes concederam ampla autonomia doméstica. Basicamente, uma reação da elite imperial britânica aos erros cometidos com os inquietos e rebeldes colonos nos Estados Unidos.

Ferguson não aborda a África em muitos detalhes, a não ser para tratar do trauma da guerra dos bôeres na África do Sul – um longo conflito de guerrilhas no qual o Império quase foi derrotado, e que levou a terríveis violações de direitos humanos, como a construção de campos de concentração para os descendentes de holandeses em guerra contra os britânicos. Em suma, o Vietnã do Reino Unido.

Ferguson não nega as atrocidades cometidas pelo Império, mas coloca-se explicitamente contra aqueles que o consideravam imoral e injusto, atribuindo à colonização britânica muitas virtudes, em especial quando em contraste contra outros impérios, como o francês e o russo. É um hobby tradicional dos acadêmicos oriundos de grandes potências (Ferguson é escocês) mas me sinto mais à vontade na tradição autonomista dos países em desenvolvimento, em busca de seus próprios caminhos.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Cúpula do Mercosul em San Juan



Muitos alunos têm me perguntado o que irá acontecer com o Mercosul, em particular caso a oposição vença as eleições presidenciais brasileiras. O bloco perdeu importância e enfrenta problemas sérios, mas a recente Cúpula de San Juan, realizada nesta semana, marcou avanços importantes. Primeiro, foi finalmente aprovado o Código Aduaneiro do Mercosul, que entre outras coisas elimina a dupla cobrança da Tarifa Externa Comum (TEC). Explico: Além um produto que era importado, digamos, pelo Brasil, pagaria novamente a tarifa quando ingressasse no Paraguai. Era necessária coordenação entre as autoridades alfandegárias para eliminar o problema. Agora, parece que isso acabou. A ver.

Mas a TEC continua a apresentar dificuldades. Os países do bloco supostamente cobram os mesmos impostos de importação para produtos que vem de fora de sua área geográfica, enquanto entre eles a maioria das mercadorias circula livremente (há exceções importantíssimas, como automóveis e açúcar). Mas há variações na TEC. Uruguai e Paraguai têm mais flexibilidade nela, e a Argentina a modificou na marra e impôs proteções extras aos parceiros, em meio às suas turbulências políticas e econômicas.

Os membros do Mercosul acordaram em San Juan beneficiar o Haiti com tarifas de importação mais baixa. A idéia tinha sido lançada pelo Brasil há alguns meses, e o objetivo era fazer algo parecido com o HOPE Act, por meio do qual os Estados Unidos abrem seu mercado para as exportações haitianas. Sobretudo de têxteis e vestuário, que chegaram a ser uma atividade econômica importante no país, antes das sanções da década de 1990. Difícil prever se o Haiti pós-terremoto poderá se beneficiar das oportunidades no Cone Sul. Fica a torcida.

O Mercosul acordou em San Juan um tratado de livre comércio com o Egito. É o segundo que o bloco assina com um país de fora da América Latina – anteriormente, só havia um com Israel. O Egito é um mercado promissor para o agronegócio da região, e o acordo pode ser uma porta de entrada importante para aumentar os negócios com o mundo árabe.

Brasil e Argentina também aprofundaram entendimentos na área nuclear. O presidente Lula aproveitou a ocasião para defender o direito iraniano a um programa nuclear pacífico. Acredito que o discurso foi motivado pela determinação em manter o diálogo com o governo Ahamadinejad com respeito à libertação de Sakineh Mohammadi Ashtiani, a mulher condenada à morte por apedrejamento por supostamente ter cometido adultério, e a quem o Brasil ofereceu asilo.

A Argentina tem apoiado a mediação brasileira nas crises envolvendo o Irã, apesar das autoridades da República Islâmica terem patrocinado dois terríveis atentados em Buenos Aires, na década de 1990, que destruíram a embaixada de Israel e a organização judaica AMIA. A Interpol tem mandatos de prisão para vários dirigentes iranianos, inclusive para o atual ministro da Defesa.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Uma Noite em 67 e Dzi Croquettes


Cultura, contracultura e o dinamismo artístico do Brasil durante a ditadura militar. Estes são os temas de dois ótimos documentários recém-lançados: “Uma Noite em 67” e “Dzi Croquettes”.

O primeiro foi dirigido por Ricardo Calil e Renato Terra trata do III Festival da Canção, realizado pela TV Record. Os eventos eram famosos por reunir a nata da então nascente MPB e o de 1967 foi marcado pelo surgimento da revolução do Tropicalismo – um impacto tão grande que ainda hoje inquieta e desnorteia os protagonistas.

O filme contrasta as imagens da época com entrevistas com os principais artistas e organizadores do festival. Hoje são senhores de 60 e 70 anos, mas na ocasião eram inacreditavelmente jovens, levando em conta a qualidade de sua produção artística. Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque tinham pouco mais de 20 anos quando compuseram clássicos absolutos da MPB como “Alegria, Alegria”, “Domingo no Parque” e “Roda Viva”. Já Sérgio Ricardo parece mesmo um moleque, na inesquecível sequência em que quebra o violão e o lança sobre o público, após uma longa vaia.

A platéia vibra, vaia, aplaude e participa de modo fantástico – bem, talvez o auditório da TV fosse o único espaço público para manifestações disponível na ditadura... Com direito aos exageros da época, como a passeata contra o uso de guitarras elétricas. Mas a televisão brasileira parecia muito mais velha. A pompa dos jornalistas e o estilo formal (cantores de MPB se apresentando de smoking, Caetano sendo chamado de "Veloso"!) mostra o quanto a cultura brasileira se transformou. Em grande medida, sob o impacto da contracultura e de movimentos como o Tropicalismo.

É patente a mágoa de Chico Buarque e Edu Lobo porque eram considerados “velhos e conservadores” diante de Caetano, Gil e dos Mutantes, embora fossem todos da mesma geração. A desorientação com os tropicalistas também atingiu a Jovem Guarda – uma das melhores cenas do documentário são os integrantes do MPB4 contando uma conversa com Erasmo Carlos, no banheiro de uma boate onde Caetano se apresentava, e todos confessando não entender nada do que acontecia. E como é curioso ver Roberto Carlos cantando samba, em pleno festival!




Se em 1967 a revolução nos costumes apenas começava, em meados da década de 1970 ela já havia explodido, e é disso que trata “Dzi Croquettes”, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, que faz um retrato afetuoso do grupo que misturava teatro, dança e música e lançou o embrião de uma guinada irreverente nas artes cênicas. Formado por 13 homens, homossexuais, que se apresentavam vestidos como mulheres mas com símbolos de virilidade, as Dzi Croquettes desafiavam esteriótipos e lotaram casas de espetáculo do Rio de Janeiro a Paris. A ditadura levou um tempo até perceber o que ocorria – seus shows não tocavam em temas abertamente políticos, mas eram desafios ao conservadorismo do regime autoritário

Tatiana é filha de um dos cenógrafos do grupo e destaca bastante o aspecto de “grande família”, que permeava as Dzi Croquettes – todos moravam juntos, por exemplo. Há um forte esforço de memória, de lembrar a importância de pessoas como o ator e humorista Wagner Ribeiro e do bailarino e coreógrafo Lennie Dale, um bad boy da Broadway que acabou em Copacabana, apaixonado por Bossa Nova e pela música brasileira - impressiona ver como muitos dos entrevistados choram ao se lembrar dele.

Oito das Dzi já morreram. Quatro por AIDS, um por aneurisma e três assassinados. Mas, curiosamente, a mensagem subversiva e questionadora do grupo se adaptou muito bem à TV, encontrando continuadores e difusores na geração de atores e humoristas formados no teatro do Besteirol – pessoas como Miguel Falabella, Pedro Cardoso, Cláudia Raia, todos entrevistados no documentário. A própria Tatiana foi atriz da Globo, e hoje vive em Nova York e trabalha no mercado financeiro. Talvez seja o caso de inverter o famoso verso de Caetano Veloso: de perto, todos são normais. Dolorosamente normais.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A Sombra de Pinochet



Uma aluna que é amiga do político chileno Heraldo Muñoz me deu de presente seu excelente livro: “A Sombra do Ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet”. É uma mistura de análise e autobiografia que cobre do golpe militar contra Salvador Allende até a morte do general Augusto Pinochet, em 2006.

Quando Allende foi eleito presidente, em 1970, Muñoz já era um ativo membro do Partido Socialista, o mesmo do chefe de Estado. Em seu governo, exerceu o cargo de chefe de um sistema de lojas populares e recebeu (precário) treinamento para o caso da eclosão de uma guerra civil. O que veio foi um golpe militar clássico, mas inusitado para os padrões chilenos, onde as Forças Armadas se orgulhavam do respeito à lei e à democracia.

Pinochet era o típico oficial de carreira do Exército – um burocrata, não um fanático, e sua carreira havia sido conduzida de forma metódica, mas sem brilho. Ele se destacava pelo respeito e cordialidade aos superiores, inclusive por políticos de esquerda, como Allende e os prisioneiros comunistas que vigiou quando capitão, numa prisão no norte do Chile. Para Muñoz, Pinochet havia amargado uma vida de ressentimento e frustrações, que explodiram na forma de crueldade e fome de poder, quando se viu alçado à presidência.



A análise da ditadura no livro segue três eixos: o relato das principais atrocidades e massacres cometidos pelo regime (as execuções no Estádio Nacional, a Caravana da Morte, a Operação Condor, o assassinato de dissidentes nos EUA e na Argentina); as disputas pelo poder entre a cúpula das Forças Armadas e a guinada na política econômica, com a adoção do programa liberal dos “Chicago Boys”, e suas mudanças em momentos como a crise de 1982.

O mais interessante do livro é o relato autobiográfico de Muñoz sobre sua participação na formação da coalizão internacional contra a ditadura, focada na defesa dos direitos humanos no Chile. Durante o regime de Pinochet, o autor alternou temporadas no país, trabalhando como professor universitário, e períodos nos Estados Unidos, como doutorando e pesquisador. Era um jogo arriscado e ele escapou por pouco, muito pouco, de ser preso. Muñoz foi uma figura importante na reforma do Partido Socialista, trabalhando junto com Ricardo Lagos para a construção da Concertación, a aliança de centro-esquerda que governou o Chile de 1990 até o início deste ano.

Os capítulos sobre o retorno da democracia ao Chile são marcados pela presença de Pinochet no poder – ele continuou a comandar o Exército por muitos anos, e depois se tornou senador vitalício – e pela longa série de processos judiciais que começaram com a prisão do ex-ditador na Inglaterra, em 1998, por ordem de um juiz espanhol. Pinochet conseguiu voltar ao Chile, mas nunca mais teve paz. As investigações por violações de direitos humanos foram aumentadas pelas ações sobre corrupção – frutos, ironicamente, das leis anti-terrorismo nos EUA, que apertaram o cerco às fraudes financeiras.

Pinochet morreu sem ter sido condenado pelos tribunais. Mas algo do legado das investigações permaneceu. O recém-empossado presidente Sebastián Piñeira recusou a proposta da Igreja Católica em anistiar militares que cometeram violações de direitos humanos na ditadura.