terça-feira, 4 de março de 2008

O Lado Sombrio do Nacionalismo Sul-Americano


O nacionalismo tem papel importante na América do Sul, no sentido de promover o desenvolvimento econômico, construir sociedades um pouco mais coesas em meio às horrendas desigualdades sociais do continente e fortalecer um Estado capaz de defender os direitos da população. Infelizmente, há um lado sombrio no nacionalismo, que com freqüência se expressa em agressões estridentes, overdoses geopolíticas e a exacerbação de tudo que diz respeito às fronteiras.

Esse tipo de nacionalismo agressivo foi comum na América do Sul de meados do século XIX e ressurgiu nas décadas de 1930 e de 1970, numa série de disputas que envolveram Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru. A redemocratização do continente parecia ter encerrado o ciclo, com processos de integração regional e soluções pacíficas para contenciosos territoriais. Contudo, a retomada nacionalista deste início de século XXI trouxe novamente à tona o problema, com praticamente o mesmo elenco citado acima: a novidade é a saída do Brasil e a entrada da Venezuela, da Guiana e do Uruguai. Ou seja, de 12 países sul-americanos (mais a colônia da Guiana Francesa) 10 enfrentam disputas fronteiriças.

É um padrão que desafia cientistas políticos, e estou com muita vontade de escrever algo a respeito. Antes de teorizar, vamos à análise da conjuntura. Em meio à troca de acusações entre Colômbia, Equador e Venezuela, surgiram informações razoavelmente sólidas que nos ajudam a entender o conflito.

1) A inteligência militar colombiana atacou o destacamento das FARCs no Equador porque constatou a presença da cúpula da guerrilha na localidade. Raúl Reyes é o primeiro integrante da elite das FARCs a morrer em conflito com o Exército colombiano, num duro golpe para o prestígio militar do grupo. Há notícias não-confirmadas de que o lendário Manuel Marulanda, o líder das FARCs, teria sido ferido no ataque.

2) O ataque à cúpula das FARCs foi precedido de uma série de golpes (prisão ou morte) aos chamados "coronéis" da guerrilha, líderes como o Negro Acácio e Simón Trinidad.

3) A ofensiva militar do governo Uribe ocorre em paralelo às negociações por libertação de reféns, o que pode significar uma tentativa das autoridades de negociar a partir de uma posição de força ou simplesmente de inviabilizar o processo de paz, provocando a ala mais radical das FARCs. A morte de Reyes, expoente dos moderados, alimenta tal opção.

4) Há um enorme risco de que as FARCs lancem algum tipo de contra-ofensiva extremamente violenta em represália à morte de Reyes.

5) A reação internacional foi bastante negativa à Colômbia, com os países sul-americanos e europeus condenando a violação da soberania do Equador e pedindo calma e moderação aos envolvidos. Como sempre nesses casos, a mediação se dará sob liderança do Brasil (o chanceler Celso Amorim está em ótimo momento) e da OEA.

Cumpre lembrar o importante papel moderador que está sendo desempenhado não só pelo Brasil, mas também por Chile e Peru - algo notável porque este país tem longo conflito com o Equador, além de tensões com a Venezuela, e poderia ser tentado a uma aliança com a Colômbia.

Na foto, soldados do Equador marcham rumo à fronteira com a Colômbia. Imagem sombria, que não pensava em ver em nossa América.

7 comentários:

Helvécio Jr. disse...

Acho curioso os comentários dos analistas militares sobre as possibilidades dos conflitos. Na BBC o comentário é favorável as capacidades militares venezuelanas. No The Guardian favorável aos colombianos. EU creio que são poderes equivalentes. Clausewitz já dizia que uma vez que se iniciam as hostilidades é impossível prever direções. é a fricção do conflito! Eu não apostaria em conflito militar, mas se houvesse creio que o fornecimento de armamentos por parte dos EUA a Colômbia seria muito mais rápido do que o fornecimento por parte dos Russos, os Venezuelados possuem caças Sukhoi, mas as peças de reposição e armamentos são extremamente inferiores aos usados pelos caças de tecnologia ocidental. A América Latina pode realmente ser uma região caracterizada pela ausência de conflitos militares de larga escala, no entanto, assim como na África e na Ásia, é uma região sem uma instituição regional forte como a UE que garanta mecanismos eficazes para a diplomacia preventiva. abração jogador!!!
Helvécio

Alessandro Ferreira disse...

Caro,


Por que Amorim está em ótimo momento, como você afirmou? Vejo justamente o contrário: a ação colombiana é considerada por ele 'grave e condenável', mas nenhuma palavra sobre a pusilanimidade do governo equatoriano, que abrigava os narcoguerrilheiros em seu território, numa claríssima violação de (pelo menos) uma resolução da ONU, a qual diz que nenhum estado reconhecido pela organização deve financiar ou apoiar atos ou grupos terroristas (as Farc são terroristas, pois não?). O que as Farc faziam lá? E por que Amorim nada diz a respeito, mas se apressa - assim como Lula - em criticar o governo colombiano? Correa é amigo e Uribe é inimigo, é isso? Há mais de 40 anos a Colômbia é flagelada pelas Farc, mas Correa - e também Chavez, o porco-mor, é claro - acham pouco e querem mais? E por favor, sem essa de que o governo equatoriano negociava a libertação de não sei quantos reféns: uma negociação dessas teria que ser levada ao conhecimento do governo colombiano.

No mais, Reyes já foi é muito tarde. Se acreditava em Deus, que arda no inferno!

Abs.

Maurício Santoro disse...

Salve, Helvécio.

Também li análises muito discordantes sobre qual país tem maior capacidade militar, embora acredite que a balança pesa para o lado dos colombianos, inclusive porque numa sociedade tão polarizada quanto a da Venezuela, qualquer tipo de ação militar (ainda mais contra um país tão próximo economica e socialmente quanto a Colômbia) significaria uma enorme disputa interna.

Alessandro,

Amorim está num ótimo momento porque é a voz da razão e da moderação num continente de extremistas agressivos.

Aprovar a ação colombiana é criar um precedente perigosíssimo. Imagine, por exemplo, que um grupo anti-chavista monte uma base em território brasileiro (quiçá numa reserva indígena, como a Raposa Serra do Sol em Roraima) e Chávez resolva atacá-los em território brasileiro.

Nenhum país sul-americano tem fronteiras bem vigiadas na Amazônia , para além da cumplicidade do Equador e da Venezuela com as FARCs. O que é necessário na região é um monitoramento internacional mais rigoroso, via OEA, para impedir que as FARCs ataquem a Colômbia de bases em outros países.

Ao contrário de você, penso que a morte de Reyes é um retrocesso nas negociações de paz. Ela abriu caminho para a ala mais radical da guerrilha e temo pelo que os extremistas farão nos próximos dias na Colômbia.

Abraços

Alessandro Ferreira disse...

Caro,

Enquanto Celso Amorim não condenar publicamente Equador - por abrigar os narcoterroristas - e Chávez - por insuflá-los e financiá-los - não poderá ser considerado 'a voz da razão'. Não dá. Impressionante mesmo é que, ideologicamente, não vejo motivos para que ele não faça isso. Se fosse o Top Top Garcia, vá lá, mas Amorim me surpreeende negativamente com essa postura.

Sobre a abertura de precedente, vejamos: a hipótese que você levantou, se confirmada, configuraria questão bem diversa da presente, uma vez que o governo brasileiro é aliado declarado do Coronel. Uma base anti-chavista seria, provavelmente, caçada pelo Exército brasileiro, a mando do governo, e em apoio ao aliado. Nada surpreendente, em minha opinião: aliado - qualquer que seja - é pra isso mesmo, não? Já no caso atual, a mim parece claro que o governo equatoriano não tinha lá muuuito interesse em combater as células das Farc em seu território.

Monitoramento da OEA? Arrepio... à exceção da Otan (e de seu similar vermelho, o extinto Pacto de Varsóvia), não boto a menor fé nesses organismos intergovernamentais. Até porque os EUA têm assento na OEA. A colaboração deles seria aceita nesse monitoramento? E as acusações de que os EUA querem 'tomar a Amazônia', como ficariam?

Não vejo retrocesso nas negociações, e por motivos muito simples: primeiro, é inaceitável usar 700 reféns para impor exigências, quaisquer que sejam elas, ao governo colombiano. Não se negocia nada imprensando um dos lados - nesse caso, o lado legalmente constituído - contra a parede. Segundo, não enxergo disposição dos narcoguerrilheiros para qualquer outra coisa que não seja subjugar a democracia colombiana e dar um golpe pelo poder - coisa que não fazem por estarem enfraquecidos, em parte pelos esforços da Colômbia em isolá-los e persegui-los. Sim, o apoio americano tem sido fundamental nessa questão.
Para os guerrilheiros, só vejo duas opções: a rendição - a maior parte das tropas escolheria essa e entregaria as armas em troca de punições mais brandas, vide o caso do ELN - ou a caçada implacável e incessante, a qualquer custo - esta seria a escolha dos líderes das Farc, que têm contas muito altas a acertar com a democracia colombiana.

Last but not least, que papelão faz o Sarkozy nessa história toda. Devia se resumir a comer a Carla Bruni - o que, convenhamos, já está de ótimo tamanho, não?


Abs.

Maurício Santoro disse...

Alessandro,

O ato da Colômbia, caso aprovado, criaria um precedente inaceitável para a América do Sul. Não é à toa que mesmo regimes anti-chavistas, como o de Alan García no Peru, se opuseram à violação da soberania do Equador - e olha que os dois países disputam território!

Imagine situação análoga entre Brasil e Colômbia, se nosso país resolvesse atacar o vizinho porque os traficantes colombianos exportam drogas para cá. Seria a mesma coisa.

A OEA é uma organização internacional pequena, mas tem trabalho importante e pouco conhecido no monitoramento de processos de paz e do diálogo entre os países da região. É o melhor instrumento à disposição, com todas as fragilidades.

Meu post de hoje será sobre os reféns e concordo que é inaceitável usá-los como moeda política. Infelizmente, é exatamente isso o que as FARCs vem fazendo...

Abraços

Alessandro Ferreira disse...

Caro,


Acho que seu paralelo acerca da crise andina é totalmente equivocado. Traficantes colombianos usam o Brasil como corredor para sua cocaína? Sim, sem dúvida usam. Traficantes colombianos pretendem depor o governo brasileiro? Não, né? Logo, são apenas um problema de segurança pública, não de soberania e de defesa da democracia. Creio que o amigo usou pesos e medidas diferentes, o que resultou numa comparação torta. Mas vou tentar manter na mesma seara: caso todas as facções criminosas brasileiras (CV e PCC à frente) se unissem e formassem um 'supercomando' criminoso e terrorista, iniciando ataques dentro do Brasil e em seguida se refugiando na Colômbia, ou em qualquer outro país vizinho, o Brasil deveria atravessar a fronteira e caçá-los, analogamente ao que fez Uribe? Para mim, a resposta é SIM, deveria. Principalmente se percebesse alguma leniência do governo colombiano para com os criminosos-terroristas.

Atente para o detalhe: quem violou o território equatoriano primeiro foram as Farc, não o governo colombiano. Certo? Se não, o que os narcoguerrilheiros faziam lá? Estavam a convite do governo de Rafael Correa, ou com sua autorização? Se for esse o caso, então o presidente do Equador terá tomado atitude hostil ao governo da Colômbia, não? Seria quase como uma declaração de guerra ao vizinho. Correa não deu um pio sobre esse fato até agora, mas chama Uribe de canalha. Cara-de-pau é pouco.

Maurício Santoro disse...

Salve, Alessandro.

Na realidade, Rio de Janeiro e São Paulo são mais violentos e inseguros do que Bogotá, o dá certo argumento para afirmar que o tráfico de drogas é tão ou mais danoso ao Estado brasileiro do que a ação das FARCs na Colômbia... Nem por isso devemos sair por aí violando fronteiras alheias.

O que torna o caso do Equador e da Venezuela mais sério, sem dúvida, é a cumplicidade dos dois governos com um grupo armado ilegal que tenta derrubar uma democracia vizinha e comete atrocidades contra civis. É óbvio que esse apoio deve cessar, ou qualquer possibilidade de paz nos Andes será sempre travada.

Não vejo nenhuma possibilidade de entendimentos no curto prazo, o que me parece o menor dos males é OEA desempenhar o papel de "algodão entre cristais" e tentar estabelecer algum tipo de monitoramento internacional na área.

Ela fez exatamente isso na América Central, nos anos 80 e 90, pondo fim a um ciclo ainda pior de guerras civis e ditaduras.

Abraços