segunda-feira, 1 de setembro de 2008

De Steve Biko a Barack Obama



No fim de semana assisti a “Um Grito de Liberdade”, cinebiografia do líder do movimento da consciência negra na África do Sul do apartheid, Steve Biko. É uma produção de 20 anos atrás, que comprei um pouco por acaso numa oferta. A história é tão fascinante que nem a direção melodramática de Richard Attenboroughs (o mesmo de “Gandhi”) consegue estragá-la.

Biko é interpretado por Denzel Washington. O filme retrata o personagem como sendo alguém que continua a luta de Mandela contra o regime racista, o que é verdade, mas o roteiro omite alguns dos pontos mais interessantes da história. O Congresso Nacional Africano tinha como base a Carta da Liberdade, de 1954, um documento escrito na melhor tradição do liberalismo, de direitos iguais para todos. Biko percebeu que isso não era suficiente e advogava a valorização das culturas africanas e da auto-estima negra, no contexto explosivo das rebeliões juvenis em Soweto. Black is beautiful, num de seus lemas mais famosos. Era um desvio bastante significativo com relação às diretrizes do Congresso e respondeu aos anseios de uma geração de militantes mais jovens e radicalizados, bem diferentes da liderança de elite do início da mobilização contra o apartheid.



Biko foi um pioneiro do que hoje em dia se chama de “política de identidade” mas ão faltou quem o acusasse de responder ao apartheid com sua própria versão do racismo. Sua contraparte no filme é o jornalista Donald Woods, muito bem interpretado por Kevin Kline como o arquétipo do reformista progressista e bem-intencionado, mas encastelado em suas ficções juridicas. O melhor do enredo é a descoberta de Woods de como vive numa bolha de privilégios e ilusões. O pior da trama é que Biko morre na metade do filme e a narrativa dá mais destaque aos dilemas do jornalista do que à vida e à luta do ativista.

Quando “Um Grito de Liberdade” foi lançado, Barack Obama era um jovem ativista comunitário em Chicago, e devido ao seu enorme interesse pelo tema, é muito provável que tenha visto o filme no cinema. Vinte anos é uma piscadela em termos históricos e me pergunto o que aquele rapaz inquieto tenha pensado durante a sessão. Difícil acreditar que mesmo em seus sonhos mais otimistas ele imaginaria sua própria posição atual, e uma África do Sul livre do apartheid, e que, apesar dos muitos problemas, evitou os abismos das guerras étnicas de outros países do continente.



Comentando minhas impressões do filme com amigos negros, me dei conta de que algo também mudou no Brasil. As pessoas com quem conversei eram profissionais de classe média alta, no serviço público e na iniciativa privada, muitos com pós-graduação. Meu convívio com eles representa uma experiência bastante diferente daquela que viveu a geração dos meus pais. E olhando para o Estado, vejo negros como ministros e no Supremo Tribunal Federal. A mudança é mais lenta do que eu gostaria, mas ela existe e está em avanço.

3 comentários:

P.R. disse...

é, seu maurício... mudanças estruturais são sempre mais lentas do que desejamos. infelizmente. mas só não desanimando e lutando por elas que as coisas mudam pra melhor. parece ingênuo, mas a gente precisa pensar desse jeito. só assim mesmo para não desanimar com os efeitos desse sistema patriarcalista, racista e elitista. voce viu quantos % de candidatas mulheres tem nessas eleitcoes? 21%! tem que acreditar muito nas mudancas e aceitar a lentidao delas pra nao desistir.
beijos e saudades!

Maurício Santoro disse...

Olá, querida.

Não por acaso, o meu post de hoje fala sobre as transformações na política externa brasileira, inclusive a participação crescente de mulheres, como diplomatas, pesquisadoras e estudiosas do tema. Mas isso acho que você conhece bem, não? :-)

beijo

Anônimo disse...

Nossa... esse filme foi tirado do baú. Lembro-me bem de quando o assisti e fiquei impressionada com tanta incompreensão e diferenças por conta da cor da pele. Na verdade, as vezes me sinto privilegiada por ser negra num país que, embora também tenha preconceito, é possível vivermos em sociedade, salvo exceções.
Vejo que em muitas nações a "cor" que carregamos em nossos gens nem sempre é o problema mais agravante. Há sociedades que conflitam entre si por questões de línguas, etnias, religião. É na verdade um turbilhão de intolerâncias.
Ao menos, acredito ser bastante salutar essa bandeira que vem sendo levantada em prol das identidades e direitos humanos. Uma bandeira que vem caminhando a passos lentos,mas ao menos estão caminhando.

um abraço

carla Araújo