terça-feira, 30 de junho de 2009
A Derrota dos Kirchner
As eleições legislativas da Argentina, ocorridas no domingo, marcaram a derrota dos Kirchner. O bloco político liderado pelo casal perdeu nas principais regiões do país e até em sua base tradicional em Santa Cruz. Com os resultados, dissolve-se a frágil maioria que tinham no Congresso, e pela primeira vez um governo peronista terá que lidar com um parlamento dominado pela oposição. Não é bom augúrio para os dois anos de presidência que restam a Cristina Kirchner, num cenário de turbulências econômicas, políticas e até epidemias de saúde pública – a gripe suína matou mais na Argentina do que em todos os demais países sul-americanos somados.
A oposição conservadora do Unión-Pro venceu na província de Buenos Aires com o empresário colombiano Francisco de Narváez. Dissidente do peronismo, ele se aliou ao prefeito portenho, Mauricio Macri, e concorreu com o slogan da “mudança” (veja o vídeo de campanha, abaixo, com a cortesia de sempre de Dom Patrício Iglesias). Conseguiu chegar num apertado primeiro lugar na província que historicamente é a base peronista. Lembra um pouco o que ocorreu em 2005, quando os Kirchner desbancaram os antigos caciques locais, o casal Duhalde.
A Unión-Pro também venceu na capital, o segundo maior colégio eleitoral do país – a cidade de Buenos Aires é um distrito eleitoral separado da província. Isso não surpreende, pois tradicionalmente o eleitorado portenho vota contrariamente ao governo federal. A oposição de centro-esquerda se saiu muito bem em Buenos Aires, com destaque para o Projeto Sul, novo movimento liderado pelo cineasta Fernando Solanas, que chegou em segundo lugar. Sua plataforma é um apelo nacionalista pela retomada do controle estatal sobre os recursos naturais da Argentina. Em terceiro ficou a veterana líder anti-corrupção, Elisa Carrió, pela coalizão Acordo Cívico-Social.
Em outras províncias importantes, como Córdoba, Santa Fé e Mendoza, o governo também sofreu derrotas graves, com freqüência chegando em terceiro ou quarto lugar entre os diversos candidatos. Foi uma claríssima mensagem de repúdio do eleitorado aos problemas dos governos dos Kirchner: autoritarismo, intransigência, conflitos políticos, má gestão da economia, manipulação dos índices oficiais de inflação. O clima pré-eleição foi tenso. Acompanhei por amigos argentinos e páginas do Facebook o receio de fraudes massivas. A votação foi calma, com poucos incidentes, mas os boatos mostram a intensidade da crise política no país.
Os jornais especulam sobre uma iminente reforma ministerial no governo Cristina. É difícil imaginar uma volta por cima dos Kirchner, diante de resultados eleitorais tão arrasadores. Nestor já renunciou à presidência do partido peronista. O que se coloca como necessidade primordial é a construção de um acordo de governabilidade, para evitar uma paralisia do processo de decisões do Estado que poderia gerar graves problemas na conjuntura da crise econômica. Precedentes como os das presidências de Alfonsín e De La Rua devem estar na cabeça de muitos cidadãos argentinos neste momento.
segunda-feira, 29 de junho de 2009
Um Governo no Iraque
Rory Stewart tem uma vida impossível, que parece recortada de um folhetim de capa e espada do século XIX. Nascido em Hong Kong, de família escocesa, cresceu na Malásia, então colônia britânica, na qual seu pai militar combatia a guerrilha comunista. De volta ao Reino Unido, Stewart se destacou de tal modo numa escola privada de elite que o príncipe Charles o contratou como tutor de seus filhos. Cursou o mestrado em Oxford, serviu brevemente no Exército, e um pouco mais como diplomata, em postos na Ásia e nos Bálcãs. Obcecado por relatos de aventuras, tirou licença do Foreign Office para uma longa viagem a pé pelo Afeganistão em guerra, e também por trechos do Paquistão, Irã, Turquia, Bangladesh e Nepal. “Acidentes de trabalho: meu governo no Iraque” conta o que fez depois disso: trabalhar para a coalizão que invadiu o país, como vice-governador de duas províncias pobres do sul, Maysan e Dhi Qar.
Maysan é do tamanho da Irlanda do Norte, e tem com 54 partidos políticos, 20 tribos, e apenas mil funcionários britânicos e americanos para administrá-la. Área pantanosa, atrasada economicamente, foi um bastião da resistência xiita a Saddam Hussein. A história que Stewart conta não é tanto a da escassez de recursos financeiros - com frequencia havia mais dinheiro do que capacidade de gastá-lo - e sim a ausência de conhecimentos sobre a história, cultura e realidade do Iraque.
Stewart narra as dificuldades de lidar com as principais facções políticas da província: os diversos partidos xiitas, muitos deles próximos ao Irã, os xeques tribais em decadência, mas ainda fortes na zona rural, e uma série de oportunistas querendo dinheiro fácil da corrupção. A classe média liberal sonhada em Washington e Londres se restringia a meia dúzia de intelectuais, sem base de apoio e sem a massa de jovens desempregados, raivosos, e armados que podia lhes dar poder.
A situação foi ainda pior em Dhi Qar, onde Stewart se viu em meio ao estourar da guerra civil entre os iraquianos, que culminou no cerco e bombardeio de seu escritório, defendido de maneira precária e ineficiente por aliados italianos nada confiáveis. Sua conclusão, pessimista, é que os legados de Saddam Hussein e da história recente impedirão a consolidação da democracia no Iraque, resultando num governo autoritário, de forte influência religiosa, semelhante ao que existe no Irã atual.
O livro é extraordinário como relato de aventuras, mas deficiente no que toca à análise da política iraquiana. Parece haver uma curiosa ingenuidade em Stewart, de nunca discutir claramente seu papel como representante de governos que invadiram o país numa guerra com sérios problemas de legitimidade. Ele aparenta acreditar nos propósitos benevolentes dos britânicos em levar a democracia ao Iraque e se retirar o mais rapidamente possível. Também senti falta de depoimentos mais pessoais, sobre como lidou com solidão e medo durante os meses que passou no Oriente Médio.
Stewart abandonou as aventuras neo-coloniais. Passou alguns anos dirigindo uma ONG em Cabul para a reconstrução do Afeganistão e há poucos meses assumiu a coordenação do Centro de Direitos Humanos da Universidade Harvard.
sexta-feira, 26 de junho de 2009
Trajetórias de Desenvolvimento: Argentina e México
Nestes dias estive no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada acompanhando o seminário “Trajetórias de Desenvolvimento”, que examinou a história recente de 10 países: África do Sul, Alemanha, Argentina, China, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, Índia, México e Rússia. Não consegui assistir a todas, por conta de outros compromissos de trabalho, portanto destaco os dois estudos sobre países latino-americanos.
Na última década Argentina e México seguiram modelos de desenvolvimento opostos, e ambos enfrentam dificuldades sérias. Um lembrete de que nunca é fácil pensar soluções para esse tipo de desafio.
É bastante conhecida a trajetória da longa crise da Argentina, de como a crise de 1929 colocou em xeque a bem-sucedida inserção do país no modelo agro-exportador, abrindo a porta a uma série de conflitos políticos que, a rigor, até hoje não terminaram. A catástrofe de 1998-2002 é apenas o capítulo mais recentes (e, espero, o último) desse processo.
A partir de Duhalde, e prosseguindo com os Kirchner, a Argentina experimentou um modelo heteredoxo de desenvolvimento, com moratória da dívida externa, desvalorização cambial e a conquista de superávits gêmeos, no comércio e nas finanças. O PIB cresceu a taxas chinesas, ainda que boa parte fosse recuperação do colapso dos anos anteriores.
Os bons resultados iniciais se perderam em meio a uma série de crises recentes, como o conflito entre o governo e os produtores rurais, o crescimento da inflação (e sua negação pelas estatísticas oficiais) e medidas controversas, como a estatização de fundos de pensões e a adoção de controles e restrições sobre o comércio exterior. Más condições naturais, como uma seca prolongada, também atrapalharam e agora o antigo celeiro da América Latina se vê na iminente condição de precisar importar alimentos básicos como carne e trigo.
O México, como se sabe, iniciou na década de 1980 uma série de reformas opostas, que visavam a substituir o modelo nacionalista dos anos 1940 por um paradigma liberal de crescimento vinculado ao aumento das exportações para o mercado dos Estados Unidos e do Canadá. O símbolo máximo da estratégia foi a assinatura do NAFTA, mas igualmente importante foi o esforço para combater a inflação e benefícios tarifários para a instalação de maquliadoras, fábricas que processam matérias-primas, reúnem alguns componentes e exportam o produto final para os dois ricos mercados ao norte.
Como na Argentina, o modelo deu bons resultados nos anos iniciais, com alto crescimento do PIB. Com o tempo, seus problemas se tornaram evidentes: baixa integração das maquiladoras com o resto da economia nacional, dificuldades de competir com a China como plataforma de exportação para os Estados Unidos e o agravamento da dependência com a economia americana, o que torna difícil reagir a crises como a atual – o país precisou de ajuda emergencial do FMI. Os conflitos políticos estouraram sobretudo no sul indígena e empobrecido, em Chiapas e Oaxaca. Mas os problemas também se manifestam na crise de segurança pública. Até a gripe suína estourou por lá.
Os dois grandes países da América Latina têm muito a ensinar ao terceiro gigante da região, o Brasil. Para quem se interessou pelo tema, os artigos do seminário serão publicados em livro no mês de julho.
quarta-feira, 24 de junho de 2009
Os Colegas de Fidel
A Revolução Cubana tem sido uma fonte inesgotável de inspiração para escritores, e por difícil que seja pensar em uma abordagem original para o tema, ainda há possibilidades, como “Os Meninos do Dolores: os colegas de classe de Fidel, da Revolução ao exílio”, do jornalista americano Patrick Symmes.
Symmes partiu de uma velha foto em preto e branco que mostra duas centenas de adolescentes no pátio do colégio jesuíta de Dolores, em Santiago de Cuba, a escola mais tradicional da ilha, ao lado de sua instituição irmã em Havana. Por suas salas de aula passaram os herdeiros das grandes fortunas, como os Bacardi, filhos de profissionais de classe média em ascensão e os irmãos Castro - rebentos de um ex-soldado espanhol que enriqueceu como capataz das grandes empresas americanas. Desse microcosmo da elite cubana, Symmes pinta um panorama dramático e comovente das transformações da Revolução.
Quando os Castro estudaram por lá, na década de 1940, Cuba vivia sua breve primavera democrática. Os jesuítas eram, em grande medida, o que havia de mais progressista na educação da ilha, com sua ênfase no mérito, na ciência e no raciocínio crítico. Mas também eram limitados por preconceitos, como a exclusão de estudantes negros e um culto da disciplina que podia chegar à brutalidade. Fidel tivera que brigar com o pai para estudar no Dolores, que fascinava o rapaz pelo prestígio e pela qualidade das aulas. Nele se destacou como ótimo aluno, atleta entusiasmado e líder dos colegas. Inevitável que a memória tenda a ver no adolescente os sinais de sua vida posterior e vários dos entrevistados destacam o lado sombrio de Fidel, como seu autoritarismo, propensão à violência e pouca disposição ao diálogo. Me chama a atenção as inseguranças sociais que provavelmente sentiu: perto dos colegas era um caipira, sem a sofisticação de uma família culta, e deve ter tentado compensar as fragilidades pela postura macho-alpha.
As amizades que Fidel fez no Dolores entre famílias de elite foram fundamentais durante a Revolução, para estabelecer uma rede de contatos, informantes e de ajuda financeira que manteve seu movimento vivo mesmo nos piores períodos da repressão. Sua entrada triunfal em Havana foi recebida com entusiasmo pela maioria dos colegas, mas em cerca de dois anos quase todos já estavam contra o novo governo. O constante adiamento das eleições, a estatização da educação e a supressão do dissenso político o afastaram dos antigos amigos, e os mais ricos ainda tiveram terras e fábricas confiscadas. Muitos estiveram entre os primeiros a se exilar nos EUA e alguns tomaram parte das conspirações que culminaram na fracassada invasão da Baía dos Porcos – um dos pontos altos do livro é a narrativa da batalha mais acirrada do conflito, pela ótica de um rapaz que lutou com os anti-castristas.
O retrato feito por Symmes da diáspora cubana em Miami é o de um exército quixotesco que viu ruir todos os seus sonhos e planos, e vive no limbo entre a cultura americana e uma Cuba de nostalgia que não mais existe. Alguns raros ex-alunos do Dolores permaneceram na ilha, e sua situação é mais dramática: experimentam na pele as agruras da vida no “período especial”, a brutal crise econômica que se seguiu ao colapso da URSS. A foto dos meninos do Dolores pode ser só um retrato na parede – mas como dói!
segunda-feira, 22 de junho de 2009
Juventude
O trem da juventude é veloz
Quando foi olhar já passou
Os trilhos do destino cruzando entre nós
Pela vida, trazendo o novo
Herbert Vianna, O Trem da Juventude
No fim de semana, caí na estrada novamente. Fui ao Rio de Janeiro acompanhar a etapa final da pesquisa sobre juventude sul-americana – um belíssimo encontro entre os jovens de seis países do continente. Trabalhei no projeto durante dois anos, mas me afastei nos últimos meses, quando ingressei no serviço público federal e me mudei para Brasília. Como não tenho mais vínculos formais com as organizações que realizaram a pesquisa, o convite foi feito puramente na base do afeto, e é isso o que conta depois de tantos rostos, aeroportos, questionários e grupos focais. Revi amigos queridos e relembrei momentos emocionantes pelos quais passamos juntos.
Um rápido retrospecto do projeto, para quem chegou há pouco por aqui: tudo começou com estudos de casos sobre os principais movimentos juvenis da região, que identificaram as demandas sociais mais importantes. Depois vieram grupos focais e uma pesquisa de opinião pública, seguidas por rodas de diálogos com os jovens em cada país. A etapa final foi a conversa internacional com rapazes e moças da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Foram dois dias num hotel fazenda nos arredores do Rio de Janeiro. Cheguei para a cereja do bolo: um passeio pela cidade.
Ao longo do projeto, todos nos impressionamos com a semelhança entre as preocupações dos jovens da América do Sul, para além das divisões por classe social e fronteiras nacionais. Quer fosse com os músicos de hip hop bolivianos, os sindicalistas brasileiros, os camponeses paraguaios, o mesmo conjunto de temas dominava os sonhos, esperanças e medos. Educação e trabalho, sobretudo, mas também questões ligadas à discriminação, à saúde. Naturalmente, a integração entre os jovens no diálogo internacional foi muito fácil e rápida. Fiquei fascinado pela força das amizades e cumplicidades que surgiram entre os grupos, em tão pouco tempo.
Para muitos, foi a primeira vez em que andaram de avião e saíram do país natal. Outros descobriam o mar, em Copacabana, diante das câmeras do cineasta que registrou o encontro, e numa tarde em que tudo estava perfeito: o sol ameno do outono carioca, a música que vinha do violão de um quiosque no calçadão, a alegria de uma equipe fantástica que comemorava o sucesso da iniciativa.
Conversando com os jovens e com meus colegas na pesquisa, procurei passar um pouco das minhas experiências e impressões recentes no Estado, em particular a convicção de que as políticas públicas precisam ser mais abertas para a participação da sociedade. Não apenas por um imperativo democrático, mas porque o conhecimento necessário para a ação efetiva do governo está aí, no cotidiano das pessoas.
Insisti com os amigos para que a pesquisa não termine com a divulgação dos resultados. É preciso levar os dados para a reflexão da comunidade acadêmica e das autoridades governamentais, incluindo as novas instituições regionais, como o Parlamento do Mercosul. Há vários elementos que merecem o debate aprofundado, como a contradição entre a imagem negativa que a sociedade faz da juventude (vista inclusive pelos jovens como mais individualista e descompromissada do que os adultos) e a adesão aos sonhos e demandas dessa mesma faixa etária.
sexta-feira, 19 de junho de 2009
A Navalha Peruana
Esta década tem sido de democratização e crescimento no Peru, talvez o melhor momento na história do país em muito tempo. Mas nas últimas semanas conflitos entre indígenas e policiais na Amazônia mostraram o quanto a prosperidade peruana se equilibra no fio da navalha.
Alan García foi eleito presidente em 2006 com promessas de modernização e de afastamento ideológico de Venezuela, Bolívia e Equador, que chamou de “economias primitivas”. Era provável que essa postura acabasse por levá-lo a conflitos com os movimentos sociais, muitos dos quais são simpáticos às transformações que ocorrem nos vizinhos andinos. García assinou um acordo de livre comércio com os Estados Unidos que implicou em mudanças amplas na legislação e nas políticas públicas peruanas, com impacto em áreas como propriedade da terra, meio ambiente e direitos trabalhistas.
O tratado significou a necessidade do Peru mudar seu marco regulatório de investimentos e foram justamente essas mudanças, ao envolverem a abertura de terras indígenas na Amazônia à exploração de petróleo e gás e extração de madeira, que geraram os conflitos das últimas semanas. Os choques foram impulsionados pela falta de confiança da opinião pública nas negociações conduzidas pelo governo, em 2008 todo o gabinete ministerial do presidente García renunciou em meio a denúncias de corrupção com as petroleiras estrangeiras.
Os indígenas bloquearam estradas e ocuparam instalações governamentais, como usinas de geração de eletricidade, e a tentativa de desalojá-los resultou em cerca de 50 mortes, tanto entre os manifestantes quando entre os policiais. Foram os piores episódios de violência no país desde o auge dos combates contra o Sendero (1980-1992), e o presidente reagiu decretando toque de recolher na região norte, acusando os indígenas de subversivos que querem destruir a democracia. Vários líderes indígenas foram presos, outros fugiram ou desapareceram, e há relatos de cadáveres sendo atirados de helicópteros do governo em fossas comuns.
Tudo se parece muito aos anos de guerra suja, mas o Peru de hoje é uma sociedade bem mais aberta, com movimentos sociais fortes e conectados com suas contrapartes internacionais, sobretudo nos vizinhos andinos. Tampouco é possível para o governo ressuscitar o argumento da segurança nacional da época do Sendero (García chegou a mencionar a influência do “comunismo internacional”!), pois os protestos indígenas têm a simpatia de boa parte da população.
O Congresso suspendeu deputados opositores que participaram de protestos em defesa dos manifestantes indígenas, mas os parlamentares também aprovaram a anulação das leis que deram origem ao conflitoo. Uma ministra renunciou, o primeiro-ministro disse que fará o mesmo e o governo anunciou a criação de uma Mesa de Diálogo para tentar lidar com as tensões. Torço para que tenha sucesso.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
Pé na Estrada
Na quinzena passada participei de dois excelentes eventos acadêmicos: a Semana de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e o congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos (LASA, na sigla em inglês) no Rio de Janeiro.
Em Porto Alegre, falei sobre a política de comércio exterior brasileira diante da crise econômica internacional. Os principais impactos foram a queda dos negócios com parceiros tradicionais (América Latina, EUA, União Européia) e a ascensão da China como maior mercado para as exportações do Brasil. Abordei a perspectiva de longo prazo, que desenvolve projetos que miram para além da conjuntura difícil deste momento, como as iniciativas de integração produtiva com a Argentina. Também mencionei novas possibilidades, como as missões comerciais para a África.
Na UFRGS, encontrei um grupo de estudantes empolgados e motivados. Foi um prazer trocar idéias sobre as perspectivas de carreira . Sou bastante crítico do modo como os cursos de graduação de relações internacionais estão organizados no país, os currículos se dedicam em excesso a discussões teóricas ou a temas da agenda global com pouco impacto no Brasil. Sinto falta de abordagens mais práticas. Por exemplo, que ensinem a preparar projetos para a cooperação internacional, como tive que aprender aos trancos e barrancos nos anos em que trabalhei no IBASE. Também há diversas opções interessantes em campos ainda pouco explorados, como os diálogos entre movimentos sociais e as iniciativas culturais.
Foi bom rever Porto Alegre, onde não ia desde o Fórum Social Mundial de 2005. A cidade me traz ótimas lembranças e os estudantes da UFRGS foram anfitriões impecáveis, me levando para conhecer o Museu Iberê Camargo e para tomar um capuccino no café da Casa de Cultura Mário Quintana. Se fosse melhor, estragava.
Alguns dias depois segui para o Rio de Janeiro, onde aproveitei o feriadão no congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos. Excelente oportunidade para rever amigos acadêmicos espalhados pela região, e também pelos EUA, Canadá e Europa. Foram ótimos papos e jantares, e para não dizer que não falei de trabalho, participei da mesa redonda sobre diálogos entre o Brasil e os demais países do Cone Sul, organizada por mestre Idelber Avelar.
Falei da pesquisa sobre a juventude sul-americana, na qual trabalhei no IBASE, e apontei as semelhanças entre os movimentos sociais da região e a necessidade de que os países do continente troquem mais experiências entre si, no que diz respeito às políticas públicas. Aliás, foi muito bom debater com profissionais de altíssimo gabarito da área de crítica literária e antropologia. Os cientistas políticos sempre ganhamos, quando saímos do nosso mundinho.
O Idelber chama a atenção para o aspecto ruim do congresso, que foi o alto custo em participar do evento e os homens de preto que vagavam pelos corredores dando um aspecto policialesco ao encontro. Foi a perda de uma oportunidade preciosa para que os estudantes de graduação do Rio tivessem acesso às discussões mais atualizadas sobre os temas latino-americanos. Pena também que as editoras universitárias estrangeiras não se disporam a vir ao Brasil, impossibilitando a tradicional feira do livro que fez minha alegria no Canadá, no congresso anterior.
Fui a debates muito bons, em particular os que trataram de Cuba. Fiquei impressionado com o alto nível de cooperação e cordialidade existente entre os acadêmicos cubanos e americanos, e me surpreendi com o conhecimento avançado que os pesquisadores da Universidade de Havana tem da política dos EUA. Eram capazes, por exemplo, de listar as distintas correntes diplomáticas que convivem no Congresso daquele país, enumerando os deputados e senadores que defendem cada posição. Também fui a eventos interessantes sobre a situação dos movimentos sociais na Colômbia e com relação às divisões do chavismo na Venezuela. Entre outros temas.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Kaká Derrotou Berlusconi
A política européia neste ano tem sido uma sucessão de escândalos em meio ao agravamento da crise econômica. As eleições ao parlamento europeu registraram grau recorde de abstenção, que já vinha em queda nos últimos anos. Pouco mais de 40% dos eleitores votaram. Os resultados favoreceram os partidos de direita e, mais do que isso, marcaram derrotas históricas para a esquerda, em diversos países.
O governo britânico está ameaçado de cair, devido ao desvio de recursos públicos pelos parlamentares do país. Mas é na Itália – como sempre – que os conflitos atingem o paroxismo da farsa. O primeiro-ministro, Silvio Berlusconi, declarou que o desempenho abaixo do esperado de seu partido nas eleições européias foi culpa do ruidoso divórcio com sua ex-mulher, da modelo menor de idade com quem que ele teve uma, digamos, amizade festiva, e do jogador de futebol Kaká, que acabou de trocar o Milan pelo Real Madri. Um elenco e tanto.
Contudo, os movimentos conservadores que venceram as eleições o fizeram sem triunfalismo, com muitas divisões, em particular entre a direita liberal e os partidos extremistas que têm expandido sua força.
Na Itália isso ficou muito evidente. O PDL de Berlusconi é uma fusão de seu antigo Forza Itália com a Aliança Nacional (uma dissidência dos neofascistas do Movimento Social Italiano). A sigla teve 35% dos votos para o Parlamento Europeu, cerca de 10 pontos abaixo do que era esperado. Quem se beneficiou não foi a oposição de esquerda, que continua desorientada diante do inimitável primeiro-ministro, e sim os adversários ainda mais à direita – a Liga Norte, que dobrou sua votação com uma campanha anti-imigração.
Em parte isso se deve às particularidades regionais da Itália. A abstenção foi mais alta no sul e nas ilhas, onde Berlusconi tem sua base de apoio. A Liga Norte bateu forte na política externa do primeiro-ministro, criticando a proposta de que a Turquia se torne membro da União Européia. Os temas diplomáticos ainda devem render mais polêmicas na Itália, agora que Berlusconi recebeu o ditador líbio Kadaffi, que tem se reaproximado da antiga metrópole por razões econômicas.
E, claro, o Milan perdeu Kaká. Talvez seja mesmo o começo do fim de Berlusconi.
sexta-feira, 12 de junho de 2009
O Groucho-Marxismo de Cuba na OEA
Na semana passada os países da América Latina comandaram votação na Organização dos Estados que autoriza o retorno de Cuba à instituição. O país estava suspenso desde 1962, quando seu governo se declarou marxista. No, entanto, Havana recusou a oferta, afirmando que a OEA é um “ministério das colônias ianques”. Para ficarmos com a ideologia dos Marx, de Karl para Groucho: aquele que não entrava para clubes que o aceitavam como sócio.
Meu palpite é que as razões da recusa cubana estão no medo do regime de que seus dissidentes usem contra o governo os instrumentos da OEA, como a Carta Democrática e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (que permite aos cidadãos apresentarem petições contra suas autoridades nacionais). No contexto atual, voltar à OEA provocaria riscos para a estabilidade política do país, num momento delicado em que por conta da crise voltam restrições econômicas, como racionamento de energia elétrica.
A OEA foi criada no início da Guerra Fria, na mesma lógica que levou os Estados Unidos a lançarem alianças regionais semelhantes na Europa, Ásia e Oriente Médio (OTAN, Seato, Pacto de Bagdá etc). Embora a retórica afirmasse a primazia da democracia, muitas vezes a organização apoiou ditaduras e golpes de Estado, e sempre se mostrou uma dócil ferramenta da política externa americana.
Isso começou a mudar na década de 1980, quando o diplomata brasileiro João Clemente Baena Soares foi secretário-geral da OEA e encontrou um importante nicho de atuação nas negociações de paz na América Central, então dividida entre ditaduras militares e guerrilhas de esquerda. Mais recentemente, a eleição do político chileno José Miguel Insulza tornou a OEA um fórum crítico às políticas dos Estados Unidos na região, em particular nos conflitos andinos, como as crises entre Colômbia e Venezuela.
O moral da História talvez seja o de que a participação na instituição ajuda a causa da democracia, e o isolamento, contribui para a permanência de regimes autoritários. Nesta perspectiva, vale a leitura do artigo que o embaixador Rubens Ricupero publicou no último domingo, no qual relembra a proposta do chanceler brasileiro, San Tiago Dantas, de uma solução alternativa para a crise que culminou com a suspensão de Cuba da OEA. San Tiago:
... percebeu que o isolamento e as sanções contra Castro apresentavam o mais grave defeito de qualquer política, a de ser contraproducente, tornando inevitável o que desejava evitar: a consolidação da influência soviética. (...) San Tiago não desistiu e continuou a insistir na sua proposta de “finlandização” de Cuba, isto é, um acordo pelo qual os americanos aceitariam a opção marxista de Havana em troca da neutralização da ilha nas questões políticas e estratégicas da Guerra Fria. Da mesma forma que ocorrera com a Finlândia em relação à URSS de Stalin após a guerra.
Nos livros de auxiliares de Kennedy, menciona-se o interesse que a proposta despertou. A fórmula de San Tiago teria poupado ao mundo a crise dos mísseis de outubro de 1962, o mais perto que se chegou do aniquilamento nuclear durante a Guerra Fria. Pena que a ideia fosse racional demais para o estágio de amadurecimento de americanos e cubanos.
quarta-feira, 10 de junho de 2009
As Letras que Formam os BRICs
No fim de maio o Sergio Leo lançou em seu blog uma discussão sobre a política externa brasileira no que diz respeito aos BRICs. Os textos citados pelo Sergio, e os comentários dos leitores, basicamente apontavam para duas vertentes: aqueles que vêem a aproximação entre Brasil, Índia, Rússia e China como o embrião de uma aliança de potências emergentes e os que consideram que os interesses entre esses países são muito divergentes e que sigla pouco mais significa do que uma etiqueta de firmas de consultoria para designar nações de grande potencial econômico.
Proponho uma terceira interpretação, baseada em alguns debates dos quais tenho participado no Estado: a idéia de que os BRICs se tornaram uma importante referência internacional para a formulação de políticas públicas, e que a tendência é que seus membros passem a olhar com mais atenção uns para os outros, em busca de lições para seus processos de desenvolvimento. De modo crescente, é também nesse grupo que os EUA e a União Européia têm classificado o Brasil.
Talvez quem mais tenha dado voz a essas inquietações dentro do governo seja o ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, que tem destacado em diversas entrevistas as possibilidades da maior aproximação entre os BRICs. O Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas (IPEA), vinculado à pasta de Mangabeira, também tem feito uma série de levantamentos sobre as transformações recentes desses países.
Um exemplo é o estudo recém-publicado sobre a internacionalização das empresas chinesas, e das políticas de apoio governamental a esse movimento. Pouco antes de me tornar funcionário federal tive a oportunidade de participar de um debate com o presidente do IPEA, o economista Marcio Pochmann, e fiquei impressionado com a atenção que ele tem dado às mudanças nas relações internacionais. Sua ênfase me surpreendeu, já que sua especialização era em outros temas, mais ligados a mercado de trabalho e combate ao desemprego.
Variação sobre o tema dos países emergentes é usar outras combinações de países que não as dos BRICs, e no governo brasileiro há iniciativas interessantes envolvendo outra sigla, o IBAS – Índia, Brasil e África do Sul. Três democracias com graves problemas de inclusão social, mas também de experiências para tentar superar esses problemas. A Escola Nacional de Administração Pública criou um fórum de intercâmbio com suas congêneres nesses países, e o Ministério das Relações Exteriores inaugurou uma divisão para cuidar das relações entre as três nações.
No momento atual, me parece que o desafio para o governo brasileiro é coordenar e sistematizar diversas iniciativas dispersas pelos vários órgãos públicos, ou mesmo as ações individuais, como pesquisas apresentadas nas escolas militares e diplomáticas. É preciso fazer o levantamento do que se procura em cada país e de como seus programas podem contribuir para as políticas públicas brasileiras. Há candidatos óbvios, como as ações chinesas de estímulos às exportações, ou os projetos indianos de incentivo às indústrias de software e tecnologia da informação.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
Alexander Herzen
Vasculhando as prateleiras de um sebo, encontrei velho exemplar de “Meu Passado e Pensamentos”, de Alexander Herzen. Caindo aos pedaços, mas leitura agradabilíssima. Herzen foi um intelectual russo do século XIX, em geral considerado o pai do socialismo naquele país. Contudo, minha impressão é de que ele se situa muito mais na tradição liberal da época romântica, da valorização dos direitos individuais diante da autocracia czarista – não é à toa que o grande responsável por sua redescoberta contemporânea tenha sido Sir Isaiah Berlin.
Controvérsias classificatórias à parte, Herzen tem muito a dizer ao nosso tempo. O volume que comprei é uma coletânea que reúne material disperso por livros de memórias e panfletos políticos. O melhor, sem dúvida, é o relato autobiográfico sobre a juventude do autor na Rússia. Ele era filho de um poderoso aristocrata e freqüentou a Universidade de Moscou, então o bastião da luta pela liberdade no país. A vida de Herzen se confunde com a turbulenta história daquele período: nasceu quando seus pais fugiam da invasão de Napoleão, em 1812, e o acontecimento decisivo de sua adolescência foi a frustrada rebelião dezembrista. Ficou para sempre marcado pelos ideais libertários dos oficiais do Exército que desafiaram o czar Nicolau I.
Agitações estudantis que seriam inofensivas na França ou na Inglaterra levaram Herzen a ser banido para províncias distantes, onde foi obrigado a trabalhar como funcionário governamental. Após alguns anos, foi autorizado a voltar a Moscou e São Petersburgo, mas resolveu ir para o exterior. Viveu as revoluções da Primavera dos Povos de 1848 e passou por Itália, Suíça, Alemanha, França e Inglaterra, em companhia de rebeldes e revolucionários como Garibaldi, Bakunin e Proudhon. Como se vê pelo catálogo, a ideologia está mais para romantismo do que para o “socialismo científico” que começava a tomar forma, e de fato Marx e Herzen se detestavam, embora eu acredite que nunca tenham se conhecido pessoalmente.
O fracasso político das revoluções de 1848 foi acompanhado por uma série de tragédias pessoais para Herzen, como as mortes de sua esposa, de sua mãe e de um de seus filhos. Acabou refugiado Londres, um tanto desiludido e melancólico, mas a década de 1850 foi o auge de sua influência, exercida por meio de diversos jornais e revistas. O mais famoso foi “O Sino”, decisivo nos debates sobre a abolição da servidão na Rússia, e célebre pelas denúncias do abuso de poder czarista.
Herzen foi derrotado por uma das forças mais poderosas a emergir das revoluções de 1848: o nacionalismo de massas. Sua posição em defesa da rebelião da Polônia, então sob domínio do Império Russo, o tornou persona non grata em seu país, mesmo entre os que combatiam o czar. E a nova geração de rebeldes o achava um dinossauro liberal, de muitas palavras e poucas ações, e adotou uma postura radical (o termo “nihilismo” foi inventado para descrevê-los). Alguns viraram terroristas, e acabaram assassinando o imperador, na vã esperança de que, eliminando uma pessoa, fossem avançar as causas progressistas na Rússia.
Há pouco tempo, o dramaturgo Tom Stoppard (do qual comentei recentemente a peça “Rock and Roll”) escreveu a triologia “A Costa da Utopia” (a segunda foto do post), sobre os exilados russos, na qual Herzen, Bakunin e o crítico literário Belinsky, amigo de ambos, desempenham os papéis centrais. Como em muito da obra de Stoppard, o diálogo é entre os sonhos, esperanças e frustrações das revoluções. A triologia foi elogiada e premiada pela crítica – será que um dia será montada no Brasil? – e o mais interessante foi a experiência da encenação na própria Rússia:
Eles chegaram às praias russas logo que começou a disputa pela história do pensamento russo, quando uma luta está em curso pela identidade e pelo passado do país. Tudo que Herzen detestava está ressucitando: censura, a autocracia do Estado russo, a união macabra da ortodoxia, nacionalismo e autoritarismo. Depois de quase 15 anos do experimento democrático que seguiu o colapso do comunismo, a classe média russa está voluntariamente cedendo liberdades pessoais em troca de estabilidade nacional assim como os franceses fizeram em 1848. Como alguém da platéia declarou, “Sinto que a produção é tão atualizada que poderia ser fechada [pela polícia].”
sexta-feira, 5 de junho de 2009
O Grande Cunhado
O humor político na Argentina tem sempre boas iniciativas. A mais recente é o programa “Grande Cunhado”. Trata-se de uma paródia do Big Brother, na qual atores interpretam os principais políticos do país: a presidente, seu marido, líderes da oposição, ativistas de movimentos sociais etc. A lógica da atração é a mesma do programa que ela satiriza, ou seja, os telespectadores telefonam para a emissora e votam em que políticos serão eliminados no paredão.
Segundo o que tenho lido nos jornais – e o correspondente do Estadão em Buenos Aires, Ariel Palácios, escreveu um ótimo resumo do que aconteceu no Grande Cunhado – o desempenho dos atores está excelente, com caricaturas bem-humoradas da vida política argentina.
Como não poderia deixar de ser, a realidade está sempre um passo à frente. O ex-presidente Kirchner teria pedido à emissora que não incluísse sua esposa como personagem do show. Claro que não funcionou, o ponto alto do programa foi um clipe da atriz que interpreta Cristina cantando “Material Girl”, da Madonna (foto). Já o líder piquetero Luis d´Elia (que chegou a ser o equivalente a ministro da habitação, foi exonerado após declarações desastradas defendendo o Irã, cujo governo é suspeito de ter patrocinado uma série de atentados terroristas contra alvos judaicos em Buenos Aires, na década de 1990) fez o oposto, e importunou os produtores para que houvesse um humorista que o imitasse.
E se você acha que o midiático ex-presidente Carlos Menem estaria morrendo de inveja, pode tirar o alfajor da chuva. O próprio fez uma participação no Grande Cunhado, na qual disparou uma saraivada de ataques contra os Kirchner e anunciou sua intenção de voltar a ser candidato à presidência. O programa é humorístico, mas suponho que a declaração tenha sido a sério...
Com tantas emoções, é fácil entender por que o Grande Cunhado bateu o índice de audiência do Big Brother Argentina e analistas políticos de prestígio, como Rosendo Fraga, especulam sobre o impacto do programa nas eleições legislativas que ocorrerão no fim deste mês.
Alguém tem sugestões para uma eventual edição brasileira?
quarta-feira, 3 de junho de 2009
Simonal: MPB, racismo e política
Wilson Simonal era dos cantores de mais sucesso no Brasil na década de 1960, rival em popularidade com Roberto Carlos. Carismático, capaz de reger o Maracanãzinho como se fosse coral de escola, com jeito irônico e malicioso de brincar com as letras. Mas também arrogante, orgulhoso, um negro que ousara sair do samba e invadir os domínios brancos do rock e do pop. Sua carreira foi interrompida de forma repentina quando o astro se envolveu num escândalo com a polícia política da ditadura. Condenado ao ostracismo por seus colegas artistas, nunca mais se recuperou. O filme “Simonal: ninguém sabe o duro que dei” é uma bela reflexão e homenagem que emociona e faz pensar sobre os caminhos da MPB na história recente do Brasil.
O documentário é construído a partir de entrevistas com pessoas que conviveram com Simonal, como os jornalistas Nelson Motta, Ricardo Cravo Albin e Sérgio Cabral, o produtor Luiz Carlos Miele, os humoristas Chico Anysio e Castrinho, os cartunistas Ziraldo e Jaguar, os filhos Max de Castro e Simoninha, a segunda esposa, Sandra e até com Pelé, que fala da paixão do artista pelo futebol – ele acompanhou a seleção à Copa do México, em 1970. Os comentários dos entrevistados são contrapostos de modo brilhante às imagens de arquivo, que mostram o protagonista em seus melhores momentos.
O filme é dirigido por Micael Langer, Calvito Leal e por Cláudio Manoel, este último humorista do grupo Casseta e Planeta. Há muitas risadas no documentário – não poderia deixar de haver, dada a vitalidade do protagonista – mas a história não é engraçada. O sucesso do cantor começou a ruir quando ele mandou amigos do DOPS torturarem seu contador, que ele suspeitava de tê-lo roubado nos negócios. O caso foi a público e se transformou num processo ruidoso. Simonal nunca foi de esquerda e se referia aos ativistas políticos como “a turma da canhota”. Numa época de maniqueísmos e radicalizações, era o suficiente para que ele fosse tratado com desconfiança e tudo se agravou quando ele alegou, durante a investigação policial, que era colaborador da ditadura.
A produção do documentário conseguiu encontrar o ex-contador de Simonal, que narra sua versão da história. Nela, o cantor teria resolvido castigá-lo por vingança contra um processo trabalhista. O filme segue a linha de que Simonal nunca teria delatado ninguém para a polícia política e que seu envolvimento com o DOPS seria limitado a amizades com alguns agentes. O que não se explica é como foi possível armar tamanho circo de mídia contra a instituição, em plena ditadura, por um caso de tortura, quando dezenas de incidentes igualmente sérios aconteciam sem ser noticiados. Simonal foi condenado, preso e ostracizado pelos artistas, sem conseguir se apresentar e gravar discos.
Além de lançar luzes sobre a polêmica, o filme também ajuda a entender as posições de Simonal nos debates sobre racismo. Embora os entrevistados afirmem que ele não era militante, o artista parecia ser bem consciente do problema, atacando-o com humor e até escrevendo um tributo a Martin Luther King Jr.
Me impressionou a empatia da platéia com Simonal. Na sessão a que assisti, o público ria, vibrava, se emocionava e ao fim, aplaudiu longamente. Talvez este seja o início da correção de um certo olhar sobre a história da MPB, dando a Simonal o crédito que lhe é devido na tradição musical brasileira. Os entrevistados reclamam do modo como o cantor foi tratado, mas não chegam a fazer seu mea culpa – a turma do Pasquim é quem chega mais perto, sem contudo pedir desculpas.
segunda-feira, 1 de junho de 2009
Nixon e Kissinger
“Nixon e Kissinger: parceiros no poder”, do historiador Robert Dallek, que a Zahar acaba de lançar no Brasil, traça um retrato completo da ambiciosa política externa empreendida pela dupla e de como o lado sombrio do governo a prejudicou e ameaçou. O livro foi escrito a partir de pesquisa em arquivos recém-liberados da Casa Branca. Ainda que eu ache que muitos dos detalhes são dispensáveis, e que a obra poderia ter metade do tamanho, o resultado impressiona.
Nixon teve infância pobre, mas conseguiu formar-se em direito em Duke. Após breves passagens pelo governo e em postos burocráticos na Marinha, na Segunda Guerra Mundial, teve meteórica carreira política. Entre 1946 e 1952 passou de deputado novato à vice-presidente do general Einsenhower. O segredo da rápida ascensão foi perceber e expressar de modo magistral o medo ao comunismo e à URSS, que se materializava na Guerra Fria recém-iniciada. Após oito anos como vice, Nixon foi derrotado por John Kennedy na corrida pela Casa Branca, e depois perdeu a disputa pelo governo da Califórnia. Mas seguiu como voz importante no Partido Republicano, estabelecendo-se como autoridade em assuntos internacionais. No contexto do colapso dos EUA no Vietnã e na fragmentação dos democratas, foi finalmente eleito presidente em 1968.
Kissinger cresceu numa família de classe média judaica na Alemanha, mas a ascensão do nazismo fez com que perdessem dinheiro e segurança. Fugiram do país em 1938 e nos EUA o rapaz serviu ao Exército, em operações de inteligência e propaganda, e depois fez brilhante carreira acadêmica como especialista em política externa. Nessa qualidade, começou a prestar consultorias tanto para os democratas quanto para os republicanos, até ser convidado por Nixon para ser seu conselheiro de segurança nacional.
Ambos eram muito inteligentes, mas outsiders inseguros, ansiosos por reconhecimento e aceitação por parte do establishment. Essas fragilidades com freqüência degeneravam em comportamentos agressivos, paranóicos. Os dois se compraziam em atacar o outro pelas costas, com ditos sarcásticos que no caso de Nixon incluíam expressões antissemitas.
Nixon era fascinado pelos temas diplomáticos, que considerava os únicos dignos de serem tratados pelo presidente, e desconfiado dos funcionários de carreira do Departamento de Estado. Quis centrar as decisões de política externa na Casa Branca e contou com o apoio entusiasmado de Kissinger para a tarefa. As realizações de ambos impressionam: reestabelecimento de relações com a China, relaxamento das tensões com a União Soviética (culminando nos acordos SALT, de controle de armas nucleares), o fim da guerra no Vietnã e esforços para mediar os conflitos no Oriente Médio, abrindo caminho para a paz entre Israel e Egito.
Contudo, há um lado sombrio nessa agenda. A excessiva concentração de poder em Nixon e Kissinger os levou a cometer erros graves, em particular nos conflitos entre Índia e Paquistão, que tendiam a ver em termos dos interesses da China e da URSS, ignorando os aspectos locais. Na América Latina, houve o envolvimento do governo americano na derrubada do presidente chileno Salvador Allende e no banho de sangue que se seguiu. E a retirada do Vietnã se deu de maneira tortuosa, motivada muitas vezes por ganhos no curto prazo (vencer eleições) e resultou em tragédias como a ampliação da guerra para o Camboja e o Laos, pontapé inicial da ascensão do regime genocida do Khmer Vermelho.
O livro não é sobre Watergate, mas o escândalo é o pano de fundo de seus capítulos finais. À medida em que Nixon se embrenhava nas acusações de abuso de poder, se afundava em álcool, em devaneios suicidas e procurava usar seus ganhos em política externa para se sustentar domesticamente. Nessa época, já havia promovido Kissinger a secretário de Estado, e ele assumira tanto poder e autonomia que o autor o chama de “co-presidente”.
Nixon morreu apenas em 1994 e nos 20 anos que se seguiram à sua renúncia à presidência, escreveu diversos livros que tentavam consolidar sua imagem como estadista global, especialista em temas diplomáticos. Morreu amargurado pelo que considerava falta de respeito dos sucessores com seu legado. Kissinger ainda serviu ao governo de Gerald Ford e depois prosseguiu sua extraordinariamente bem-sucedida carreira como acadêmico e consultor.
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