quinta-feira, 16 de julho de 2009

Escudé, a Argentina e o Brasil



Recebi pela lista de discussão dos gestores o artigo “La Argentina y Brasil: cara a cara”, do historiador argentino Carlos Escudé. Publicado no La Nación há uma semana, o texto é uma comparação entre as trajetórias de desenvolvimento dos dois países, com foco em como ambos orquestraram a relação com os Estados Unidos. O argumento de Escudé é que o Brasil prosperou porque estabeleceu uma parceria construtiva com os americanos, ao passo que os argentinos teriam nos conflitos com a superpotência uma das causas de seu declínio econômico ao longo do século XX. O artigo me trouxe ótimas lembranças da entrevista que fiz com o historiador quando morei em Buenos Aires e pesquisava para minha tese de doutorado sobre o realismo periférico, a doutrina de política externa de Menem, da qual Escudé foi um dos principais formuladores.

Há grande admiração entre os acadêmicos argentinos pelo modo como o Brasil conseguiu implementar políticas públicas de longa duração em campos-chave como a promoção do desenvolvimento e a diplomacia. Com freqüência essa apreciação se torna algo exagerada, idealizando as realizações brasileiras e ignorando os aspectos mais problemáticos e falhos da história do país. Natural, o jardim do vizinho sempre é mais verde.

Escudé é o expoente de uma série de autores que nas décadas de 1980 e 1990 escreveram livros muito críticos da história argentina contemporânea. Contrários igualmente aos peronistas e às ditaduras militares, esses acadêmicos culpavam tais governos por ter implementado políticas econômicas ineficientes e desenvolvido relações diplomáticas catastróficas, culminando na guerra das Malvinas, no conflito com o Chile pelas ilhas do Canal de Beagle, e nas desconfianças e hostilidades com os Estados Unidos e o Brasil.

Para Escudé, a sucessão de erros argentinos teria começado na Segunda Guerra Mundial, quando os governos optaram pela neutralidade (e uma simpatia mais do que ocasional pela Alemanha nazista). Em constraste, o Brasil reconheceu a ascensão dos Estados Unidos como superpotência e a ela se alinhou, enviando tropas para lutar na Europa e recebendo benefícios como o auxílio para instalar indústria siderúrgica nacional. A aliança com os EUA nos campos de batalha fora cimentada quarenta anos antes, durante a longa gestão do Barão do Rio Branco à frente da chancelaria brasileira.

A crítica à política externa argentina durante a guerra é bastante difundida por acadêmicos de diversas matizes, mas o que Escudé e seus colegas do realismo periférico deixaram de notar é que a relação entre Estados Unidos e Brasil rapidamente se deteriorou após o conflito, quando a importância estratégica brasileira se reduziu muito. Em grande medida, a história diplomática do Brasil das décadas de 1950 a 1990 é a do progressivo afastamento dos EUA, com a busca de papéis mais independentes na América Latina e na África, e divergências sérias por temas como energia nuclear, mar territorial de 200 milhas, direitos humanos e comércio exterior.

Após as reformas econômicas dos anos 90, a relação melhorou, mas ainda assim uma certa cautela do Itamaraty frente aos Estados Unidos continuava a predominar, fato que às vezes exasperava meus interlocutores argentinos. Um ex-ministro de Menem que entrevistei para a tese desabafou comigo (com socos na mesa) sua frustração diante das negativas brasileiras às “relações carnais” que a Casa Rosada queria estabelecer com Clinton: “O problema é que o Brasil de Cardoso não era mais o Brasil de Osvaldo Aranha”. Bem, muita coisa mudou desde a década de 1940...



As atuais relações calorosas entre Brasil e Estados Unidos têm espantado muitos dos meus amigos na América espanhola, e não pouco dos meus conterrâneos. Washington trata o país como um interlocutor em grandes temas globais, da mudança climática ao comércio internacional, passando até pelas negociações com o Irã. E para Obama, Lula é “o cara”, o político mais popular do planeta. Diversos analistas argentinos se desesperam, ao fazer a comparação com as crises diplomáticas em que os Kirchner envolveram seu país.

Contudo, há que se manter certas reservas com respeito aos triunfalismos nacionalistas. O Brasil pode ser uma história de sucesso em vários aspectos, mas a Argentina tem melhores indicadores sociais em todas áreas, e uma vida cultural muito mais rica e diversificada. Penso também que resolveram melhor certos aspectos de sua política externa, em particular a promoção dos direitos humanos e da democracia. Enfim, todo país tem muito a aprender, e pelo menos alguma coisa a ensinar.

8 comentários:

carlos disse...

caro santoro,

deveras instigante seu post, uma vez que realça a importância de brasil e argentina no cenário das américas.

bem lembrado a era vargas durante a segunda guerra. o "velho" soube discernir pra onde os ventos sopravam e tirou proveito estratégico da situação, enquanto a argentina continuava se mirando atavicamente na europa e pior, ao lado do futuro derrotado, a nazista alemanha. até hoje, passado tanto tempo, a história ainda reverbera na vida política portenha, tanto nas forças armadas como nos herdeiros de peron. ao contrário, vargas, hoje, se manifesta em instituições como a petrobrás, bndes, volta redonda, dentre outras, e a estrutura sindical copiada do fascismo italiano que deu origem à cut,o pt e lula. fascinante as "tabelinhas" da dona história, hein?

sobre os melhores indicadores sociais dos hermanos, não restam dúvidas. sobre vida cultural, me perdoe. acredito ser difícil medí-la. pra mim, há uma grande desvantagem pro lado deles, pois exterminaram seus negros e uma significativa população de indíginas, tanto físico como historicamente. todos os seus governos, oficialmente, desqualificam essa herança, o que é uma lástima. até o "diário do beagle" de darwin dá notícias dessa política de "embranquecimento" argentino.

no mais, o assunto daria uma boas rodadas de chope ouvindo noel e gardel, né não?

abçs

Maurício Santoro disse...

Salve, Carlos.

Bota o retrato do Velho outra vez na parede... Para citar o cientista político Gerson Moura, Vargas soube manobrar a "autonomia na dependência", com grande habilidade.

Minha opinião sobre a vida cultural vem da enorme quantidade de eventos artísticos que acontecem em Buenos Aires, em todos os campos, e na alta qualidade da imprensa culutural. Não há paralelo no Brasil.

A questão indígena é um tema mais complexo do que parece à primeira vista, até hoje a Argentina tem mais índios do que o Brasil, apesar do nosso mito nacional da "fusão das três racas" e das campanhas de embranquecimento no vizinho platino, em especial a "conquista do deserto" do general Roca. Tabelinhas estranhas da história, é vero...

Abraços

Enzo Mayer Tessarolo disse...

Olá Mauricio,

Realmente, o Escudé parece ter apresentado a excelente condução da política externa brasileira durante as décadas de 30 e 40 como uma regra, se esquecendo de tantos outros momentos mais infelizes da nossa relação com os EUA.


Quanto a questão cultural, acho que os dois países ainda exportam praticamente a mesma imagem do período da política da Boa-Vizinhança. Como nos estereótipos dos desenhos da Walt Disney, ainda vendemos floresta, carnaval, malandragem, pampas..

Abraços,
Enzo

Murillo Victorazzo disse...

Mauricio
Tive aulas contigo no MBA de RI na FGV. Gosto muito do seu blog, e já o pus nos favoritos do meu www.comdiploma.blogspot.com. Longe de ter o conteúdo do seu, ele serve apenas para mostrar algumas matérias que publiquei ou exteriorizar algumas ideias, tendo aproveitado alguns comentários seus inclusive já. Quanto à Argentina, pelo que conheço,nossos hermanos conseguiram enfrentar a questão dos direitos humanos melhor que nós realmente. Mas no tocante a democracia interna, creio que nossas instituições, por mais imperfeitas que sejam, encontram-se melhores que as deles, não? A relação entre os poderes, suas independências. A geléia geral que é o PJ por exemplo. Sobre a vida cultural, acho que é verdade o dito sobre a imprensa cultural e que em Buenos Aires eles têm um cotidiano mais intenso na área. No entanto, creio que nossa riqueza e diversidade cultural seja igual ou maior, embora não incentivada e praticada em tantos eventos organizados.

Patricio Iglesias disse...

Meu caro Carlos:
Sim, no inconsciente coletivo dos argentinos ainda está a idéia de que "somos brancos", e issa é a imagem e o "lugar comum" repetido em tudo o mundo. De todos modos, as provas genêticas mostram que mais do 50% dos argentinos têm ascendência ameríndia e que näo säo poucos os que descendem de negros, cujo legado é forte no tango. Quem escreve descende, por numerosas linhas maternas, de ameríndios (as fotografias de minhas tataravôs o deixam muito claro), e até remontando pela linha materna "direita" sem dúvidas vou chegar aos "huarpes" (êtnia de Mendoza e San Juan). Espero que sejam de seu interés:
http://www.clarin.com/diario/2005/01/16/sociedad/s-03415.htm
Saludos!

Patricio Iglesias

carlos disse...

avoé, santoro,

“bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar, bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar, o sorriso do velhinho, faz a gente trabalhar ...".

a voz de francisco alves, o grande chico viola, divulgou em 1950 a composição de haroldo lobo pra todo o brasil pela volta vitoriosa de getúlio. parabéns pela memória musical, meu caro.

a verdade é que fiquei impressionado, também, com a efervescência cultural de buenos aires quando lá estive há dez longos anos, após um congresso de engenharia sanitária em foz de iguaçu. até, imagine voce,fomos no cemitério da ricoleta pra ver o túmulo dos próceres argentinos. constatamos que "corrientes, 348" não era mais um lupanar e por aí vai.
daí, outra coisa é estender essa efervecência para fora da área portenha, mas tudo bem, deixemos de comparações bestas. o certo é que buenos ayres nos fascina.

salve, patrício,

muitas "gracias" pela atenção, vou acessar o endereço do clarin. concordo com o amigo, todos somos latinoamericanos com antepassados indígenas. a genética esta aí pra comprovar nossa herança de dna.

reitero que o assunto daria uma bela noitada nos bares da vida, tanto de buenos aires, como mendoza, brasília ou fortaleza, né não?

abçs

Maurício Santoro disse...

Salve, Enzo.

Exato, é algo muito focado na experiência da guerra, um momento bastante conturbado.

Olá, Maurício.

Obrigado pela referência do seu blog - gostei do título! - irei lá dar uma olhada.

Quanto às instituições políticas, creio que temos mais estabilidade, mas não diria que o Senado brasileiro, por exemplo, é melhor do que o argentino. E note que não elogio o Congresso dos vizinhos...

Caros Patricio e Carlos,

Realmente, o tema merece uma boa rodada de conversa. Pena que os leitores e o blogueiro estejam dispersos por tantas cidades e países!

Abraços

Helvécio Jr. disse...

Pois é meu caro, quando lançarmos o submarino nuclear então hein?
O Escudé tem, na minha opinião, a melhor análise sobre o envolvimento argentino na Guerra das Malvinas! Muito sensato a imparcial.

me recordo inclusive que a Argentiva buscava o ingresso na OTAN. Pena que se situam no atlântico Sul e não possuem potencial militar para tel empresa!

Mas quanto aos indicadortes, li recentemente na BBC que "favelização" atinge níveis recordes em Buenos Aires.

abraços jogador!