segunda-feira, 13 de julho de 2009

A Invenção da Argentina



Entre Rosas y Sarmiento, Don Segundo y Martín Fierro
la barbarie y los modales europeos
el país de los inventos, Maradona,
los misterios del lenguaje metafísico del gran resentimiento
Bienvenidos inmigrantes a ese paraiso errante

Fito Páez, La Casa Desaparecida

O historiador americano Nicholas Shumway chegou à Argentina em meados da década de 1970, para pesquisar para sua tese de doutorado sobre Borges. Encontrou um país polarizado entre peronistas e conservadores, às vésperas de sua mais sangrenta ditadura militar – até sua faxineira entrou na polêmica, dizendo que ele jamais entenderia a Argentina se ficasse conversando com Borges, e o levando para ver sua mãe colecionadora de fotos de Evita. Fascinado e assustado com o que encontrou, Shumway terminou por buscar no século XIX as raízes do radicalismo político do país, e expôs suas reflexões no livro “A Invenção da Argentina”, que agora as editoras da USP e da UnB lançam no Brasil.

Shumway examina o pensamento dos principais intelectuais e líderes políticos da Argentina entre 1810 e 1880, identificando duas grandes correntes de “ficções-diretrizes”, um conjunto de pressupostos que tinha como objetivo construir um modelo de nação. A primeira é o liberalismo, centrado na elite de Buenos Aires, que mirava a Europa como o paradigma do que deveria ser feito na Argentina e defendia um Estado centralizado sob controle portenho. A segunda é o nacionalismo, em suas várias vertentes, que preconizava a valorização da cultura popular, dos gauchos e às vezes dos indígenas, rejeitava o ideal europeu e se voltava para a América do Sul, enquanto se batia por um regime federativo mais atento às necessidades das províncias do interior.

Os liberais foram a corrente hegemônica dos homens que fizeram a independência e boa parte do processo de construção do Estado: Mariano Moreno, Bernadino Rivadavia, Bartolomeu Mitre, Domingos Sarmiento e Juan Batista Alberdi. Os nacionalistas tiveram seus expoentes em Juan Rosas, o homem forte da Argentina nas décadas de 1830 a 1850, em caudilhos regionais como Artigas, Güemes, Urquiza e nos poetas da tradição gauchesca, como Bartolomeu Hidalgo e José Hernandez, o criador do épico de Martin Fierro.



Uma e outra vertente resultaram em governos autoritários e repressivos, que negavam legitimidade à oposição e perseguiam opositores. Shumway traça analogias assustadoras entre os conflitos ideológicos do século XIX e aqueles que dividiram a Argentina cem anos mais tarde. Algumas soam um tanto forçadas – violência política, afinal, é algo comum em toda parte, e é difícil atribuir sua ocorrência a uma determinada tradição intelectual.

Com ou sem exageros, o leitor se surpreende com a relevância e atualidade dos temas tratados por Shumway. Em alguns momentos, tinha a impressão que ele comentava o noticiário cotidiano, como o golpe em Honduras ou as controvérsias sobre o MERCOSUL.

Shumway faz breve menção, no prefácio, à possibilidade de pesquisas comparadas sobre as invenções da Argentina e do Brasil. E, de fato, uma agenda desse tipo vem sendo desenvolvida em excelentes livros e artigos pelo cientista político brasileiro Bernardo Ricupero, da USP.

8 comentários:

carlos disse...

caro santoro,

o seu post me motivou a se informar sobre a história dos hermanos. coisa que me fascina em sua literatura de borges, cortazar, sábato e puig, dentre outros. além da música de gardel e piazzola, é claro.

apesar da sinopse agradável da obra do pesquisador americano, prefiro que o estudioso me faça a gentileza de indicar os historiadores argentinos que tentaram desvendar a invenção de seu próprio país e que foram publicados no brasil.

abçs

Maurício Santoro disse...

Caro Carlos,

Recomendo "História Contemporânea da Argentina", de Luiz Alberto Romero, um belo balanço da trajetória do país no século XX, escrito por um jovem historiador que muito promete.

Abraços

Mário Machado disse...

Toda vez que vou a Argentina, sempre me impressiono, como todo mundo é peronista, quem ganha a eleição, quem perde a eleição, não importa o partido, quase todos se chamam de peronista... vou ler esse livro ver se consigo entender esse fenomeno, alias, isso deve levar anos..rs..

Maurício Santoro disse...

Salve, Mário.

Há uma anedota fantástica em que Perón descreve a um visitante estrangeiro o quadro político da Argentina: tantos por cento de conservadores, outros quantos de nacionalista, socialistas, liberais etc.

"E os peronistas, meu general?", quis saber o visitante.

"Ora, peronistas somos todos!", responde Perón.

Abraços

Mário Machado disse...

rs..perfeito... ainda vou ver em algum grafite em BsAs um grupo punk anarquista peronista..rs..

Patricio Iglesias disse...

Meu caro:
Näo tinha escuto do livro, que imagino interessante. Faz alguns anos eu pensei numa divisäo dicotômica similar, onde há "axiológicos" (morenistas, rivadavianos, federais doctrinários, alberdianos, sarmientistas e finalmente radicáis) e "pragmáticos" (saavedristas, federáis netos, rosistas e finalmente peronistas), mas é uma simplificaçäo excesiva.
O tema do peronismo é muito interessante, e conheço muita gente (até na minha família) que näo gosta do Perón mas se fez peronista "porque es la única forma de progresar y cambiar un poco las cosas".
Näo concordo com isto: "Encontrou um país polarizado entre peronistas e conservadores". Peronistas e conservadores? Meu caro, o peronismo oficial nos '70 era conservador! Como todos dizem, Perón "volvió con las botas puestas", com um gabinete de extrema direita (López Rega e amigos), fazendo golpes de Estado contra os governadores do peronismo mais progressista em Córdoba e Buenos Aires! "¿Qué pasa, qué pasa, qué pasa General, que está lleno de gorilas el gobierno popular?".
Saludos!

Maurício Santoro disse...

Olá, Patricio.

Tens razão, nada mais conservador do que a Triple A e o Bruxo. Que termos eu poderia usar? Peronistas e militares, talvez?

O paradoxo da Argentina dos anos 70é que ao mesmo tempo que havia a polarização extrema entre os peronistas e os "outros", o PJ também estava mais dividido do que nunca, como no trágico massacre de Ezeiza.

Abraços

Patricio Iglesias disse...

Meu caro:
Poderia chegar ser esquerda e direita? Näo é täo assim; a esquerda e a direita estivam polarizadas dentro... Peronistas e antiperonistas? Tampouco; os radicáis apoiavam muito ao Luder, peronista... sinceiramente näo sei. Lembro o que você dizia, de que a realidade latinoamericana escapa às categorias tradicionáis das ciências sociáis.
Saludos!