segunda-feira, 3 de maio de 2010

O Primeiro Camus



Dias atrás li “O Primeiro Homem”, de Albert Camus, o romance autobiográfico que conta a história de um bem-sucedido escritor, Jacques Cormery, que na meia idade relembra sua infância pobre na Argélia. O livro estava inacabado quando Camus morreu num acidente de automóvel, e foi publicado postumamente. Nem parece: é uma pequena jóia e um testemunho sobre um mundo há muito desaparecido, o dos colonos franceses no norte da África.

O romance começa com Cormery visitando o túmulo do pai, morto na França na Primeira Guerra Mundial, quando ele era apenas um bebê. O protagonista percebe que é mais velho do que o pai, quando partira para a batalha, e a desorientação o leva a relembrar sua infância. A pobreza era rigorosa, e aumentada por aflições familiares: a mãe e o tio eram quase surdos, e pouco falavam. A casa era dominada pela avó, analfabeta e autoritária.

Era um mundo fechado, quase tribal, pouco conectado com o que acontecia ao redor. Cormery descreve a reação da mãe à deflagração da I Guerra Mundial: “ela não sabia história da França, nem o que era história. Conhecia um pouco da sua, e mal conhecia a das pessoas que amava... Dentro da noite do mundo, que não era capaz de imaginar, e da história, que ignorava, uma noite mais escura simplesmente acabava de se instalar.”

O que salva Cormery – e Camus – é a educação pública de qualidade, a principal conquista da III República Francesa. O menino se destaca na escola primária e conquista a admiração e afeto do professor, que o recomenda a uma bolsa de estudos para o ginásio e convence seus parentes a apostar em sua educação, em vez de forçá-lo a trabalhar para ajudar no sustento da casa. Camus dedicou o Prêmio de Literatura a esse professor, e a edição do livro contém as cartas que os dois trocaram após o seu “querido menino” ter sido laureado pela Academia Sueca. Diz o narrador do velho mestre que ele “lançara Jacques no mundo, assumindo sozinho a responsabilidade de arrancá-lo de suas raízes para que fosse em busca de descobertas ainda maiores.”



A ascensão social tem um preço alto para Cormery, pois sua vida se divide entre duas existências que não se tocam – o mundo dos livros e das aspirações despertadas pela escola, e a rotina familiar. A avó, por exemplo, não consegue entender os meses de férias aos quais o rapaz tem direito, pois ela havia trabalhado sem trégua desde menina. Cormery ganha consciência de quão pobre é sua família ao preencher uma ficha escolar onde anota a profissão da mãe: “empregada doméstica”. Ele tem vergonha, e se sente mal pelo sentimento.

Camus escrevia em meio à sangrenta guerra de independência da Argélia. Os rascunhos do romance contém apontamentos que indicam que ele abordaria o tema, por meio da amizade do Cormery de meia idade com ativistas favoráveis ao rompimento com a França. Mas esses trechos não chegaram a ser escritos, e o que ficou foi a prosa – magnífica – descritiva dos bairros populares de Argel, do anoitecer na África, das manhãs de sol à beira do Mediterrâneo, do prazer do futebol e das leituras. E também certa nostalgia pelo universo de sua infância, na qual brancos pobres conviviam de forma razoavelmente harmoniosa com os árabes, quase irmanados por suas posições subordinadas na sociedade colonial.

2 comentários:

Flavio Faria disse...

Um gênio da literatura. Este não li, mas O Estrangeiro é um dos meus livros favoritos.

Maurício Santoro disse...

Caro,

Gosto cada vez mais de Camus e achei este pequeno romance uma obra-prima, absolutamente maravilhosa.

Abraços