sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Entre Hamlet e Dom Quixote: a luta pela democracia na Rússia

Neste mês se completam 20 anos do fim da União Soviética e é bastante simbólico que o aniversário seja marcado pelos maiores protestos pró-democracia na Rússia desde as mobilizações que levaram à queda do regime marxista. Sinal dos tempos, agora o Partido Comunista é uma das vozes que se manifestam contra a autocracia baseada em controle da imprensa, fraude eleitoral e perseguição de opositores (incluindo assassinatos) controlada pelo primeiro-ministro Vladmir Putin.

Olhando em retrospecto, o período de 1990-3 foi o de um extraordinário interlúdio de pressões populares por abertura democrática, que culminaram com a resistência pacífica e bem-sucedida à tentativa de golpe de Estado da linha dura soviética (1991). Significativo que apenas dois anos depois, o líder dos protestos, Boris Ieltsin, tenha se convertido no algoz que mandou bombardear o parlamento da Rússia.

É bastante conhecido como Putin ascendeu de um cargo de médio escalão na KGB para se tornar o homem forte da Rússia pós-comunista, articulando uma rede oriunda do aparato de segurança que domou os oligarcas que dominavam a economia, excluindo-os da política, lançou a devastadora segunda guerra da Chechênia e consolidou seu poder em meio à alta dos preços do petróleo e do gás e da cultura do medo – do terrorismo, do fundamentalismo islâmico, do declínio russo, etc. Sua principal base ideológica é o amálgama do nacionalismo com o reviver do cristianismo ortodoxo.

O quadro partidário russo é dominado pela “Rússia Unida”, a sigla guarda-chuva criada por Putin em 2001 para abrigar seus seguidores. Ela tinha dois terços do parlamento, mas agora, mesmo com a fraude, caiu para pouco mais de 50%. A oposição mais efetiva vem dos comunistas, com cerca de 15%. O Kremlin tem um partido da oposição consentida (“A Rússia Justa”) e há um grupo de extrema-direita com o nome adorável de Partido Liberal Democrata. A cláusula de barreira russa é inusitadamente alta – os partidos precisam de 7% dos votos para ter cadeiras no parlamento, e muitos têm os registros negados, pura e simplesmente, como a sigla de oposição liderada pelo ás do xadrez Garry Kasparov (“A Outra Rússia”).

Embora a Rússia seja considerada uma potência emergente, e forme uma das letras dos BRICS, seu status é antes o de um Estado rentista que usa os recursos do petróleo para tentar restaurar sua antiga área de influência, particularmente no Cáucaso, por guerras quentes e frias, como o uso político de seus suprimentos de gás natural. O país sofre uma severa crise demográfica (sua população encolhe) e a qualidade de seu ensino e da sua capacidade de inovação tecnológica são baixas.

A identidade nacional russa é um eterno conflito entre visões liberais, pró-Ocidente, e as que advogam um caminho próprio para o país. As primeiras costumam lamentar os acontecimentos históricos que afastaram a Rússia das principais transformações sociais da Europa: a longa ocupação mongol, o isolamento do Renascimento e da Reforma, o impacto muito limitado do Iluminismo, o fracasso da rebelião dos Dezembristas e da Revolução de 1905, a persistência da servidão e da autocracia, as décadas do autoritarismo soviético.

O escritor Ivan Turguenev certa vez comparou os intelectuais russos como cindidos entre Hamlet (angústia crônica, indecisão) e Dom Quixote (utópicos, sem influência prática). Talvez isso possa ser aplicado também aos grupos pró-democracia. É uma luta dura, mas a Rússia de hoje tem desdobramentos positivos: o crescimento do ativismo político e da decepção com a autocracia, a importância de vozes independentes como as do blogueiro Alexei Navalny, o efeito contagiante da Primavera Árabe.

3 comentários:

Marcelo L. disse...

Cada dia o Putin está mais autoritário, sei não ele de presidente e se der o Gin Gin (http://motherjones.com/mixed-media/2011/11/newt-gingrich-congo-tintin-comic) nos EUA , estaremos perto de um holocausto nuclear ou o fim dos muppets que pelo visto são os culpados pela teoria conspiratória da Fox News pelos protestos no mundo (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1018779-canal-culpa-os-muppets-por-onda-de-protestos-no-mundo.shtml)

Hugo Albuquerque disse...

Um amigo meu está em Moscou agora. Ele esteve na Praça Vermelha pela manhã (nossa madrugada) e, ainda, me enviou fotos e relatos que me ajudaram a construir o post que eu estava escrevendo sobre as eleições russas. As manifestações foram gigantescas e o contingente policial enviado para contê-las era inimaginável, segundo ele. Todos protestam contra o Rússia Unida e todos brigam com todos.


Em resumo, existe um processo de degeneração política na Rússia que é um misto da tendência global com a eterna problemática russa, que eu definiria em um tripé: a questão nacional - o eterno problema étnico -, a questão da desigualdade - seja dos russos para seus aristocratas, burocratas do partido ou oligarcas - e a questão da liberdade - em relação a qual, todos fracassaram até o presente momento.

Putin e os seus podem até endurecer a repressão, mas não como não estão nem perto de encaminhar uma resposta para os probleminhas aí, podem acabar sem chão mais rápido que se supõe. Não há tirania - ou despotismo esclarecido, como no caso em questão - ou democracia que resista a crises de legitimidade tão profundas - porque o poder político é sempre afetivo, por mais que as imagens do seu discurso tentem se fazer parecer reais, sempre pende uma espada afiada sobre a cabeça do governante.

O resultado da degeneração do putinismo é tão animador quanto preocupante, uma vez que não parece haver forças organizadas tão melhores - basta ver que os comunistas, possíveis vencedores das eleições, protestam timidamente ...

Em um ano que nos reserva a possível implosão do Euro, uma crise na Rússia junto equivale a dizer que teremos o dobro de nuvens negras no horizonte.

Maurício Santoro disse...

Caros,

Tentando enxergar o copo meio cheio, o que me impressiona positivamente é a grande mobilização do povo russo em meio às fraudes e violências do governo.

A reação dos EUA tem sido o jogo de sempre de dois pesos e duas medidas: condenar atos repressivos na Rússia, ao mesmo tempo em que a Secretária de Estado visitava Myanmar (uma ditadura militar) como parte de estabelecer uma rede de aliados locais contra a China.

A tendência nas relações Washington-Moscou é de piora, mesmo que Obama permaneça na presidência, como parecem apontar as indefinições dos Republicanos quanto à escolha de seu pré-candidato.

abraços