quarta-feira, 5 de março de 2008

A Carta de Ingrid Betancourt


Durante muito tempo, fomos como os leprosos que estragam a festa. Os reféns não são um assunto “politicamente correto”, soa melhor dizer que é preciso ser forte diante da guerrilha, estar disposto a sacrificar algumas vidas humanas. Diante disso, silêncio.
Ingrid Betancourt

A Editora Agir publicou "Cartas à mãe - direto do inferno", da política colombiana Ingrid Betancourt, que se tornou sem dúvida o grande símbolo internacional das atrocidades cometidas pelas FARCs. Infelizmente para a senadora e ex-candidata à presidência, ela se tornou importante demais para seu próprio bem, e virou uma peça no jogo de xadrez entre a guerrilha, o governo colombiano e a opinião pública internacional.

Comecemos pelo livro. Ingrid foi seqüestrada em plena campanha presidencial, em 2002, e não dava notícias desde 2003. Com a retomada das negociações por sua libertação, foram exigidas provas de vida, divulgadas em outubro de 2007. Uma delas é a famosa foto que mostra a senadora abatida, em meio à selva, e que ilustra a capa. Outra foi a carta de 12 páginas que ela escreveu à mãe, e que é o principal documento publicado no livro. Ele também traz a resposta dos filhos da senadora e um pequeno posfácio do historiador brasileiro Francisco Carlos Teixeira sobre a situação política na Colômbia.

"A vida aqui não é a vida, é um lúgubre desperdício de tempo", escreve Ingrid Betancourt. Ela narra as agruras das péssimas condições de vida na selva, o constante movimento para escapar às perseguições das autoridades, o isolamento, o tédio, a solidão: "Estou cansada de sofrer, de carregar essa dor comigo todos os dias, de mentir para mim mesma achando que tudo vai terminar e constatar que cada dia equivale ao inferno do dia anterior."

As FARCs impõem um regime cruel aos seqüestrados. Além de privá-los da liberdade e do contato com a família e os amigos, com freqüência proibem que eles tenham livros, roupas confortáveis, etc: "Nesta selva, a única resposta para tudo é “Não”."



Ingrid Betancourt é o caso mais famoso entre os reféns, pela sua proeminência política e pelo fato de que, como cidadã francesa, virou o centro de ampla campanha internacional por sua libertação, sobretudo na Europa (França, Espanha, Itália). Me parece que, na América Latina, somos muito mais insensíveis à sua sorte. Foi preciso que Sarkozy colocasse a questão em debate, diante do silêncio dos presidentes da região, que não querem colocar a mão na casa de marimbondos do conflito colombiano, nem se indispor com as autoridades de um país que é um sócio econômico lucrativo e bastante promissor - só a Vale está investindo US$6 bilhões em mineração e geração de energia por lá.

Álvaro Uribe foi eleito em meio ao fracasso das negociações de paz promovidas pelo governo anterior, de Andrés Pastrana, e toda sua política para as FARCs é de buscar uma vitória militar (embora negocie com a guerrilha do ELN e com os paramilitares). Como vimos, o Exército colombiano está desenvolvendo tática semelhante ao de Israel com relação ao Hamas/Hezbolá: ações localizadas visando a assassinar as lideranças inimigas. Nesse cenário, negociar com as FARCs é algo que só faz contra a vontade, sob intensa pressão internacional. As famílias dos reféns são extremamente críticas à pouca disposição que Uribe tem em chegar a um acordo para a libertação dessas pessoas - a maioria, policiais e militares capturados em conflitos com a guerrilha.

No caso de Ingrid Betancourt, pesa um sério problema político. Ela é uma líder do Partido Liberal, de oposição a Uribe. Caso fosse libertada, se tornaria imediatamente uma heroína nacional e o pólo de uma coalizão que quase com certeza inviabilizaria o sonho do presidente de mudar a Constituição e concorrer a um terceiro mandato. Temo que a senadora tenha o mesmo fim dos 11 deputados mantidos reféns pelas FARCs, mortos durante um ataque do Exército...

4 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Mestre! Que saudade!
Estou muito mal impressionada com essa crise diplomática na américa latina. O comportamento que se resume à radical ou "deixa disso" chega a ser vergonhoso. Só num ambiente assim para um idiota como o Chavez se criar, literalmente.
Qusnto à questão dos reféns, embora solidária à Ingrid, temo que a libertação dela faça com que as centenas de outros reféns sejam definitivamente esquecidos. A libertação dela (caso aconteça) deve ser mais um passo rumo ao fim odesses crimes, não um símbolo único de possibilidade de diálogo, como muita gente parece encarar.
No mais, está tud bem?
Bjs
Fernanda (nanã) Saddy
fersaddy@gmail.com

Rodrigo Cerqueira disse...

Maurício,

longe de mim querer propor que negociações de paz e libertação de reféns sejam fúteis ou inócuas, mas creio que se deve ter cuidado com a comparação entre o que faz Uribe e o que faz Israel. É bom lembrar que a estratégia de Uribe remonta à época da campanha eleitoral na qual ele ascendeu em virtude do fracasso do processo de negociação de Pastrana. A estratégia de negociação de Pastrana criou a zona desmilitarizada e esta acabou ocupada pelas Farc, que ganharam espaço e poder. A Colômbia escolheu o caminho do enfrentamento, que é igualmente legítimo. E eu não teria tanta convicção para dizer o mesmo sobre Israel.

Anônimo disse...

"Como vimos, o Exército colombiano está desenvolvendo tática semelhante ao de Israel com relação ao Hamas/Hezbolá: ações localizadas visando a assassinar as lideranças inimigas."

Bem notado. Faltou lembrar, entretanto, que Israel não 'ganhou os corações e mentes' do povo palestino e que tanto a estrutura do Hamas quando do Hezbolá é bastante 'capilarizada', o que compromete o sucesso da tática. Já para as Farc capital humano não existe em abundância dado que são, efetivamente, inimigas do povo colombiano. Suponho que Reyes não vá ser de fácil reposição.
No final do post você pareceu insinuar que é do interesse de Uribe que a sra.Betancourt morra 'acidentalmente' em uma ação militar. É bom, então, que alguém avise às Farc. Dificilmente conseguiriam um golpe maior contra Uribe do que a liberação dela, se é assim mesmo que as coisas são.

Maurício Santoro disse...

Salve, Nandinha.

Há quanto tempo, hein? Os ânimos estão muito exaltados na América do Sul, e pioraram ainda mais ontem com a crise entre Espanha e Brasil, sobre a qual escreverei hoje.

O que você comenta é verdade. Se Ingrid for libertada, é muito provável que os outros reféns sejam esquecidos, a não ser que ela se torne uma líder da campanha para que sejam soltos. Difícil dizer.

Salve, Rodrigo e Bruno.

Embora eu veja métodos semelhantes entre Colômbia e Israel, o contexto é muito diferente. A Colômbia luta contra uma guerrilha interna, de baixo apoio popular, e Israel enfrenta povos estrangeiros, com grupos armados de muito mais respaldo interno.

Dito de outro modo, a política de assassinato de lideranças têm muito mais chances de funcionar na Colômbia do que no Oriente Médio...

Com relação ao risco de morte de Ingrid, penso que a solução ideal para Uribe seria que ela falecesse em poder das FARCs, seja por conta de doenças e maus-tratos, seja num ataque militar.

Esse desenlace eliminaria a principal rival do presidente e reforçaria a determinação da opinião pública em derrotar a guerrilha militarmente.

Note-se também a importância da manifestão de ontem na Colômbia, em repúdio aos paramilitares.

Abraços