terça-feira, 29 de abril de 2008
A Última Trincheira
Até onde sei, “A Última Trincheira” é o único livro de um autor brasileiro sobre as FARCs. O autor é o jornalista Fábio Pannunzio, que foi à Colômbia em 1999 para realizar uma série de reportagens para a TV Bandeirantes. Escreveu um misto de romance com relato de não-ficção que é um testemunho importante das fracassadas negociações de paz entre a guerrilha e o governo Andrés Pastrana (1998-2002).
Pannunzio chamou seu livro de romance, mas me parece que uns 80% são jornalismo. A narrativa segue duas paralelas. A primeira é a história dele mesmo, e de seu cinegrafista, indo à Colômbia e tentando entrevistar comandantes das FARCs, estabelecendo-se em San Vicente del Caguán, “a capital da guerrilha”, cidade que foi escolhida para sediar a zona desmilitarizada durante as negociações. A segunda é a de uma família de camponeses que se vê envolvida no fogo cruzado entre FARCs, Exército e paramilitares.
O livro foi publicado em 2001 e a rápida progressão dos acontecimentos na Colômbia fez com que ele já adquirisse o sabor de um relato histórico – no caso, do tenso contexto em que se deram as negociações de paz. Pannunzio descreve uma Bogotá apavorada e perigosa, que contrasta com a segurança que a capital adquiriu recentemente, ao se tornar o que um amigo colombiano chama de “ilha de legitimidade” em meio a um mar ainda turbulento. Há uma passagem tragicômica na qual o autor-narrador é assaltado em meio a um bem executado conto do vigário, em pleno centro de Bogotá.
O cerne do livro é são as duas semanas que Pannunzio passa na zona desmilitarizada e que lhe faz ver outra Colômbia. Uma de camponeses pobres, de origem indígena, que são a base de recrutamento da guerrilha. Ele descreve o alívio de San Vicente del Caguán com a interrupção dos combates, ainda que matizado pelo medo de que a guerra retornasse. Narra também os esforços da guerrilha em administrar a área.
Pannunzio traça um retrato em geral simpático das FARCs, descrevendo seus integrantes e líderes como pessoas comprometidas com um ideal de transformação social ampla. Contudo, seu livro fornece informações e detalhes que permitem interpretações mais críticas da guerrilha: o poder de vida e morte exercido sobre camponeses, o recrutamento de adolescentes (alguns de até 12 anos), ilegal pelas leis da guerra, os seqüestros e a extorsão praticados para financiar a luta armada e o desconhecimento da realidade colombiana mais ampla, fora do meio rural limitado em que se dão os combates.
Dois pontos me chamam a atenção no retrato que Pannunzio pinta da guerrilha: sua fortíssima vinculação com o meio rural e modo como a sociabilidade cotidiana no campo se impregnou da violência que consome o país sem tréguas há 60 anos.
O que faz falta no livro é a busca de informações sócio-econômicas e históricas mais amplas, que pudessem iluminar a breve experiência pessoal do autor no país. Pannunzio ouviu as FARCs e os moradores de San Vicente del Caguán, mas não há relatos de entrevistas com autoridades, com acadêmicos ou com paramilitares, nem a busca de entender melhor as transformações pelas quais a guerrilha passou em seus mais de 40 anos – por exemplo, a tentativa frustrada de se estabelecer como partido político (a União Patriótica) na década de 1980.
sexta-feira, 25 de abril de 2008
Integração Regional e Interesse Nacional
O debate na Internet com relação à vitória de Lugo no Paraguai tem se dado no tom agressivo e cheio de ódios que eu pensava estar reservado para assassinos de crianças, como se os vizinhos tivessem jogado Itaipu pela janela. Em meio ao surto de xenofobia, fica a pergunta: como avaliamos os interesses nacionais diante das decisões do processo de integração regional?
A Europa iniciou sua regionalização por uma combinação de fatores que misturavam segurança e economia. A necessidade de fortalecer a aliança para se contrapor à União Soviética foi poderoso catalisador das decisões pró-integração. Fazer concessões comerciais aos países mais pobres da Comunidade Européia era algo facilmente justificável diante do propósito de combater o comunismo – mensagem simples que mesmo os políticos e eleitores mais isolacionistas eram capazes de compreender e, em geral, de aceitar.
O barão do Rio Branco resolveu as disputas de fronteiras do Brasil há cem anos. O debate sobre a eficácia da política externa brasileira se dá a partir de critérios econômicos, sobre em que medida a diplomacia contribui para o desenvolvimento do país.
O Mercosul, por exemplo, é discutido na opinião pública com base nos ganhos para o comércio exterior, investimentos de empresas brasileiras e acesso a recursos naturais e fontes de energia. Contudo, a perspectiva econômica convive com os objetivos de longo prazo do Itamaraty, que caminham no sentido de consolidar a América do Sul como um espaço de liderança regional brasileira, que serviria de trampolim para a ação do país nos fóruns multilaterais, como a ONU e a OMC. Uso o condicional porque os resultados nas duas arenas têm sido modestos: não se concretizou a reforma do Conselho de Segurança e a Rodada Doha caminha para acordo bastante modesto.
A lógica político-estratégica com freqüência entra em conflito com a mentalidade econômica. Esta vê como objetivo primordial da diplomacia a defesa dos lucros que o Brasil obtém de suas relações externas. Por exemplo, a garantia de insumos (gás, eletricidade) a preços reduzidos. É visão que costuma ser hostil a qualquer tipo de ajuda internacional, afirmando que primeiro deveriam ser resolvidos os problemas domésticos. A perspectiva diplomática pode preferir realizar concessões comerciais em troca de ganhos políticos de difícil mensuração, como a preservação da estabilidade em país vizinho ou a imagem internacional do Brasil como moderado, capaz de negociar pacificamente seus desentendimentos.
No passado, era mais fácil ao Itamaraty lidar com o confronto entre as duas visões. A integração econômica do Brasil com os países vizinhos era reduzida, e política externa era tema exotérico que interessava a poucas pessoas fora de reduzida elite burocrática e empresarial. Hoje os laços regionais se aprofundaram – as exportações brasileiras para a América do Sul são tão grandes quanto para os EUA, as empresas nacionais investem pesadamente na região (sobretudo na Argentina, Venezuela e Chile) e em torno de 50% do gás e 20% da eletricidade consumidos no Brasil vêm dos vizinhos.
Natural que o debate também tenha se ampliado para diversos setores sociais. Infelizmente, a expansão não foi acompanhada de maior compreensão dos brasileiros a respeito da realidade sul-americana. É comum que os brasileiros relutem em se identificar com o resto do continente e se considerem como algo à parte, em geral por causa da língua.
quinta-feira, 24 de abril de 2008
Chile, Laboratório do Desenvolvimento
Um dos melhores professores que tive na Argentina foi Sebastián Etchemendy. Em suas aulas sobre economia política latino-americana, ele destacava que o Chile podia ser tomado como um laboratório de aplicação das principais visões sobre desenvolvimento econômico. No período de Eduardo Frei (1964-1970), era a teoria da modernização, que tanto sucesso fez entre o governo Kennedy – Walther Rostov, o pai da idéia, foi assessor-chave do presidente. Durante a presidência de Salvador Allende (1970-1973), a voga coube à teoria da dependência. E por fim, sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), a liderança ficou com o neoliberalismo. Excelente artigo de Oswaldo Sunkel na revista Diplomacia, Estratégia e Política, editada pelo Itamaraty, defende o mesmo argumento e adiciona interpretação: o Chile da redemocratização estaria gestando novo modelo, baseado em mistura da corrente neoliberal mais pragmática com maior preocupação com programas sociais de combate à pobreza e distribuição de renda, em conjunto com política externa mais próxima da América Latina.
Acredito que a condição chilena de “laboratório do desenvolvimento” se deve a algumas características incomuns do país. É pequeno, com um Estado muito centralizado e bem organizado, e com um só produto – cobre - concentrando grande importância na economia nacional. Tudo isso torna mais fácil e eficaz planejar a ação governamental do que em países mais complexos, como Argentina e Brasil. Aprendi com o texto de Sunkel que a experiência chilena com planejamento vem da década de 1930, quando a recém-instalada Frente Popular precisou enfrentar uma tragédia natural: o grande terremoto de 1938. O governo Allende também inovou: usou até primórdio de computador para conduzir o planejamento.
No Brasil, admiradores e opositores de Pinochet tendem a ver sua política econômica como algo contínuo, mas a história é mais complexa. Nos primeiros meses, os militares adotaram decisões bastante próximas ao modelo interventor-nacionalista, como a manutenção da estatização do cobre. Em 1974 é que tomou posse a equipe liderada por Sergio de Castro e seus “Chicago Boys”. O termo, irônico, se refere ao programa de treinamento que a Universidade de Chicago desenvolveu em parceria com a Universidade Católica do Chile, a partir de 1958. O objetivo era levar economistas chilenos para cursar pós-graduação nos EUA, de acordo com os princípios liberais, e assim criar uma contra-influência para as teses industrialistas da CEPAL, então no auge de seu prestígio (a melhor narrativa que conheço da história está no livro “The Internationalization of Palace Wars – lawyers, economists and the contest to transform Latin American States”, de Yves Dezalay e Bryant Garth).
Mas o reinado dos Chicago Boys durou, grosso modo, até a crise da dívida de 1982, que teve impacto bastante severo no Chile. Pinochet se assustou e resolveu implementar diversas reformas, suavizando a política cambial e protegendo alguns setores industriais. Os governos da Concertação, a coalizão entre democratas-cristãos e socialistas que governa o país desde 1990, herdou esse enfoque mais pragmático e o consolidou com mais de 50 acordos de livre comércio.
O artigo de Sunkel traz estatísticas muito boas sobre os principais dados econômicos do Chile ao longo de sua história recente. Ao contrário do senso comum, o período Pinochet foi de desempenho apenas moderado quanto ao crescimento do PIB (3% ao ano) e terminou com um horrendo índice de pobreza (38%). No regime democrático, a proporção de pobres caiu à metade, e a economia cresce a taxas melhores – de 2005 para cá, entre 6% e 11% anuais.
terça-feira, 22 de abril de 2008
Os Sonhos de Barack Obama
No início da década de 1990, Barack Obama cursava Direito em Harvard e foi eleito editor da famosa revista do curso - o primeiro negro a ocupar o cargo. A novidade teve repercussão nacional, algo que ele atribui "à fome dos Estados Unidos por qualquer sinal otimista da frente de batalha racial" e Obama foi convidado a escrever um livro. O resultado foi Dreams from My Father, que a Editora Gente agora publica no Brasil como "A Origem dos Meus Sonhos" (clique no link para baixar o capítulo 1).
A má tradução do título desvirtua o fio condutor da obra. Ela é a história de um rapaz tentando descobrir quem é, e o que pode esperar da vida, a partir da busca por entender a trajetória extraordinária de seu pai, também chamado Barack Obama. A trama tem ressonância mítica: lembrei da Odisséia, de Têlemaco dizendo que gostaria de ter conhecido o pai, e partindo para encontrar Ulisses.
Obama pai era filho de próspero fazendeiro do Quênia e após juventude um tanto relapsa, conseguiu bolsa de estudos para a Universidade do Havaí. Lá apaixonou-se por uma moça americana, branca, casaram-se e tiveram um filho. Na época, 1960, casamento inter-racial era proibido em metade dos estados dos EUA. Obama deixou a nova família após dois anos, para cursar doutorado em Harvard. Não retornou. Voltou ao Quênia, casou-se outras vezes, teve diversos filhos e seguiu carreira de tecnocrata e alto funcionário do governo, com alguns revezes. Só viu novamente o rebento americano uma única vez, quando o menino tinha 10 anos.
O livro do filho começa pela narrativa de sua infância e juventude, dividida entre o Havaí e a Indonésia, onde morou por algum tempo acompanhando a mãe e o padrasto, natural daquele país: "Cresci sentindo-me bem com a solidão, o lugar mais seguro que conheci". Não é para menos. Seus anos de formação foram marcados pela busca incessante de identidade e o sentimento de estar no meio do caminho entre brancos e negros, pobres e classe média, primeiro e terceiro mundo. A indefinição custou sofrimento e problemas com drogas: "Eu estava tentando crescer para ser um homem negro na América e ninguém à minha volta parecia saber exatamente o que isso significava."
Obama foi para a universidade em Los Angeles e Nova York, e militou no movimento negro. Alguns de seus colegas de turma vinham dos guetos, outros eram de famílias de classe média. Descreve com argúcia os conflitos que os dilaceravam, o desejo dividido entre se integrar ao sonho americano de prosperidade e a consciência das injustiças raciais, junto com o ódio que provocavam. A palavra central é identidade, a angústia do que poderiam ser numa sociedade em que os caminhos tradicionais da fazenda ou da fábrica foram substituídos por um mundo em que "a maneira de viver é comprada numa prateleira ou encontrada numa revista... Cada um de nós escolhia uma fantasia, uma armadura contra a incerteza."
As opções de Obama o levam para Chicago, para trabalhar com ONGs ligadas à organização comunitária entre os negros da paupérrima zona sul da cidade, area detroçada por crime, crise econômica e conflitos raciais. Seu mentor e patrão era um ativista judeu, Marty Kaufman, que lhe dá conselhos valiosos: "Com os sindicatos do jeito que estão, as igrejas são a única estratégia na cidade." Mas Kaufman desperta pouca simpatia humana e não consegue estabelecer vínculos com os negros. Obama narra então seus esforços, frustrações e alegrias no trabalho de base, principalmente nas áreas de habitação, emprego e educação. Seu modelo é o recém-eleito Harold Washington, primeiro prefeito negro de Chicago: "suas realizações pareciam delimitar o que era possível. Seus talentos, seu poder, davam a medida para minhas esperanças". Quantos garotos negros devem se sentir assim ao olhar o Obama de hoje!
A cidade era um poço de polarização política - Nação do Islã, gangues, choques entre negros, italianos, irlandeses, coreanos - e é notável a empatia de Obama em compreender as origens dos ódios, mas sem ceder a eles, logrando manter uma perspectiva mais ampla, de diálogo. Ao mesmo tempo, torna-se um admirador de figuras controversas como reverendo Jeremiah Wright, cujas explosivas declarações raciais deram trabalho ao atual pré-candidato presidencial. Obama ficou tão impressionado com Wright que batizou seu segundo livro com o título de um sermão do reverendo, "A Audácia da Esperança".
A parte final de "A Origem dos Meus Sonhos" é o fechamento de um ciclo. Obama é aceito por Harvard para cursar Direito e se despede de Chicago, aproveitando as férias para conhecer o Quênia e os parentes africanos. Ele busca as origens e descobre coisas incômodas sobre o pai e o avô - como o passado de colaboracionista deste último com o governo colonial britânico - mas também aprende muito sobre si mesmo e suas potencialidades.
O livro tem um breve epílogo, com Obama já formado em Direito, voltando ao trabalho comunitário se casando. No ano seguinte ele foi eleito senador estadual em Illinois e pouco depois foi para o senado nacional - apenas o terceiro negro na história americana a conseguir tal proeza. o resto é História, e está em curso. Espero que apenas no começo.
"A Origem dos Meus Sonhos" é um livro espetacular. Bem escrito, riquíssimo em observações humanas sobre os mais diversos temas - a situação dos negros nos EUA, as esperanças frustradas da classe média, a natureza da política de base e com comentários pertinentes e originais sobre a Indonésia e o Quênia. Ao mesmo tempo é revelador da personalidade do homem que pode se tornar um dos mais poderosos do mundo. Creio que hoje ele não escreveria um livro tão franco sobre suas inseguranças, fragilidades, medos e vícios. Sorte nossa que ficou este.
segunda-feira, 21 de abril de 2008
Lugo Lá
Este é um momento especial para a América Latina. Os 60 anos de domínio do Partido Colorado sobre o Paraguai chegaram ao fim ontem, com a vitória do ex-bispo Fernando Lugo para a presidência da República. As eleições transcorreram de modo exemplar, e os paraguaios votaram também para seu congresso, para os governos provinciais, legislaturas locais e foram os primeiros a eleger diretamente os representantes para o Parlamento do Mercosul.
A referência regional é importante. A maior parte do domínio colorado ocorreu sob a ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989), seguida por uma democracia bastante instável que incluiu de duas a quatro tentativas de golpe (dependendo da definição do termo) e o impeachment de um presidente acusado de assassinar o principal rival político. Fraudes, intimidação e violência foram constantes. A participação do Paraguai no Mercosul, e a imposição da cláusula democrática do bloco por Argentina e Brasil foram fundamentais na longa transição política do país.
Stroessner não foi o típico ditador militar. Para além de seu domínio personalista do país, ele criou um aparato de hegemonia partidária que superou o que o PRI implementou no México e se aproxima mais do modelo de partido totalitário encontrado nos países comunistas. A condição de funcionário público, em particular oficial militar, era praticamente inseparável da de filiado ao Partido Colorado. O mesmo ocorria com muitos dos empresários bem-sucedidos, que dependiam mais de seus bons contatos no Estado do que em sua habilidade de lidar com a oferta e a procura no mercado.
Poucas vezes vi um país onde os hábitos autoritários estivessem tão incrustados na sociedade, no nível mesmo das relações sociais, entre pais e filhos, professores e alunos. Mas o Paraguai está na história, e na América do Sul os ventos de mudança e renovação sopram mesmo nas circunstâncias mais dramáticas. Seria difícil imaginar Lugo sem o contexto regional da ascensão da esquerda. O Brasil, por exemplo, sempre foi fidelíssimo apoiador dos ditadores locais, fossem Stroessner no Paraguai, Banzer na Bolívia ou Pinochet no Chile. Aliás, velhos hábitos demoram a morrer em Brasília.
A imprensa brasileira preferiu destacar as posições nacionalistas de Lugo, em particular seus ataques à Argentina e ao Brasil pelos contratos restritivos de venda de energia das usinas de Yacyretá e Itaipu. O ressentimento paraguaio com relação aos dois vizinhos é grande, mas penso que a vitória de Lugo se deveu aos sentimentos de mudança e esperança que ele despertou na sofrida população paraguaia. Meus amigos no país estão otimistas, e fiquei bem impressionando com os líderes estudantis e camponeses que conheci por lá. Há uma base sólida para construir a democracia paraguaia.
Muitos se perguntam sobre com que líder sul-americano Lugo irá se parecer. Ele tem trajetória muito própria, como um prelado católico vindo da Teologia da Libertação e dos movimentos camponeses. Nesse sentido, está mais próximo dos setores da Igreja brasileira que foram uma das bases mais importantes para a criação do PT. Lugo não é o líder de um partido de longa tradição, como Cristina Fernández ou Michelle Bachelet. Tampouco tem uma cartada étnica como Evo Morales ou uma liderança carismática de perfil militar, como Hugo Chávez.
Lugo tomou decisão curiosamente semelhante à de Lula em 2002, chamando para vice em sua chapa um político de um partido conservador, no caso a oposição liberal aos Colorados.
A pauta das negociações paraguaias com Argentina e Brasil será difícil: energia, soja, migrações. Mas não creio que teremos momentos tão dramáticos quanto a nacionalização boliviana, provavelmente o que virá pela frente serão concessões dos sócios mais ricos no sentido de obras de infra-estrutura, benefícios comerciais e ajuda financeira à nação guarani.
sexta-feira, 18 de abril de 2008
Mulheres nas Relações Internacionais
A teoria clássica das relações internacionais é cega com relação a gênero. Os textos descrevem um mundo sem sexo, habitado por abstrações como “equilíbrio de poder” e grandes potências que se comportam como crianças mimadas. Quando comecei a lecionar RIs na universidade, me deparei com turmas de maioria feminina. Surgiu um problema: como aquela matéria se relaciona com o cotidiano, expectativas e preocupações das minhas alunas?
Os filhos ensinam aos pais e os estudantes ensinam aos professores. Há autoras feministas que incoporam as questões de gênero à teoria de RIs, como Christine Sylvester e Cynthia Enole e costumo citá-las. No entato, as contribuições das próprias alunas têm sido muito mais interessantes, me forçando a refletir sobre temas que num primeiro momento não faziam parte da minha agenda de pesquisas.
Por exemplo, a situação das mulheres nos países islâmicos. Na minha turma de 2007, duas estudantes fizeram excelentes estudos a respeito do assunto – uma abordou os filmes do Irã e do Afeganistão que tratam dos direitos femininos, outra realizou uma série de entrevistas com refugiadas dos países muçulmanas no Rio de Janeiro. Conheço pouco ou nada da cultura islâmica, e tenho aprendido muito com elas, muito mais do que ensinado.
Uma perspectiva que tem me interessado é a do papel das mulheres na resolução e mediação de conflitos políticos, sobretudo aqueles que envolvem violência. Me parece que esse olhar é um modo de superar a visão tradicional das mulheres como vítimas em confrontos armados (situação que, evidentemente, é gravíssima, em particular pelo uso do estupro como crime contra comunidades em casos de massacres étnicos).
Esta é uma época promissora para as pesquisas de gênero, quando mais não seja pela grande quantidade de mulheres em chefia de Estado ou postos de proeminência política, da Alemanha à Libéria, passando por Argentina, Chile, EUA e Brasil. O destaque latino-americano não deve causar espanto: apesar do machismo da região, foi no continente que se gestou um dos movimentos feministas mais bem articulados do ponto de vista internacional.
Mais do que hora da academia se abrir para essas perspectivas.
quinta-feira, 17 de abril de 2008
Política Social e Democracia na América Latina
“Quando pobre recebe dinheiro do governo, é clientelismo. Quando rico recebe dinheiro do governo, é política industrial”. Ou assim eu disse, num ótimo debate que tivemos semana passada na ONG em que trabalho. O objetivo era discutir democracia na América Latina e convidei uma colega do doutorado a expor sua pesquisa sobre política social em diversos países do continente.
Nosso ponto de partida foi a difusão dos programas de transferência de renda voltados para a população mais pobre. Começaram no México e agora estão presentes na Argentina, Chile, Bolívia e Brasil, com modificações em cada país. O Bolsa Família, apesar das críticas que recebe internamente, tornou-se uma das políticas públicas brasileiras mais respeitadas no exterior, ao lado do programa anti-AIDS.
O centro do nosso debate foi se políticas como essa aprofundam a democracia, melhorando a situação de famílias muito pobres, ou se reforçam os laços de dependência e clientelismo com relação às autoridades. Comentamos que no Brasil os beneficiários de programas sociais com freqüência agem como se recebessem favores do governo e não encaram tais medidas como direitos de cidadania.
Um dos pontos mais acirrados da discussão foram as “condicionalidades”, isto é, as ações que os beneficiários precisam executar para receber os recursos dos programas sociais. No Brasil, muitas dessas condições são na realidade o exercício de direitos, como manter os filhos na escola e levá-los aos postos de saúde para serem vacinados.
Disse que essa perspectiva revelava uma visão autoritária e paternalista que nós, iluminados cidadãos de classe média, muitas vezes temos de nossos compatriotas mais pobres. Acreditamos que sabemos o que é melhor para eles, que supostamente não têm tal discernimento, e portanto deveriam nos obedecer, quiçá com “obrigado ioiô, vosmecê é muito bom para mim”.
Comparamos o debate com o que ocorre na Argentina, onde a rejeição às condicionalidades é fortíssima. Alguém perguntou por que e arrisquei uma resposta: “Na Argentina, há um histórico de sindicalismo forte e de um padrão de vida alto para os trabalhadores. Um operário especializado da indústria automobilística tinha sua casa, seu carrinho e seu horizonte era que o filho cursasse a universidade. Esse não é o perfil de alguém que se sentirá confortável em receber ajuda governamental para não passar fome. A tendência é que ele veja esse benefício como algo humilhante.”
Bem diferente do Brasil, claro, onde uma história de pobreza extrema, sobretudo na zona rural, criou outro ambiente, outras disposições.
Nas ciências sociais, usamos a expressão “Ratchet effect”, efeito catraca, para descrever uma política que consegue tanto apoio que seu cancelamento se torna impossível. É como ultrapassar a roleta no metrô ou no ônibus – não há como desfazer o movimento. Embora muitas pessoas de classe média manifestem sua ojeriza ao Bolsa Família, nenhum candidato a um cargo importante conseguiria se eleger se falasse contra o programa. No máximo se arriscaria a criticar certos aspectos e prometer a expansão dos benefícios.
Para um pesquisador, é frustrante a falta de informações e de transparência das principais políticas sociais da América Latina. Acredito que elas desempenham papel importante na consolidação da democracia e da melhoria da vida de milhões de pessoas muito pobres, mas também sei dos muitos problemas que esses programas enfrentam. Porém, preciso de mais dados ara avaliá-los como é necessário.
quarta-feira, 16 de abril de 2008
O Ataque aos Biocombustíveis
Uma das conseqüências da crise dos preços dos alimentos é um ataque massivo aos biocombustíveis, que tem deixado o governo brasileiro em posições difíceis nos fóruns diplomáticos. Dependendo da fonte que se utilize, as estimativas são que a produção de biocombustíveis é responsável por entre 10% e 30% do atual aumento da comida, na medida em que as terras cultiváveis são reservadas para a cadeia energética e não para os alimentos.
Há consenso de que isso ocorre no caso do programa do governo americano, que produz etanol a partir do milho, com impactos inflacionários que atingem também a carne de frango e os ovos.
No entanto, é questionável que os biocombustíveis sejam um fator decisivo no aumento do preço do arroz e do trigo, os outros gêneros cujo valor mais cresceu ao longo do último ano.
O governo brasileiro tem se esforçado para provar que o programa nacional, baseado na cana-de-açúcar e em oleaginosas (soja, mamona) não é o vilão que está sendo pintado. Os diplomatas argumentam que preocupações com os alimentos estão sendo usadas para mascarar interesses protecionistas, sobretudo para favorecer programas de etanol a base da beterraba, como o da União Européia. A entrada de um grande competidor no mercado, como é o Brasil, sempre provoca receios e distúrbios.
É da UE que vem a oposição mais ferrenha. Um painel de cientistas que aconselha a instituição fez um apelo para a Europa abandone sua meta de ter 10% de suas necessidades de transporte cobertas por biocombustíveis até 2020. Governos nacionais – Alemanha, França, Reino Unido – anunciaram o cancelamento de medidas de incentivos ao etanol.
Preocupações semelhantes também surgiram na América Latina. O Brasil ficou isolado na conferência regional da FAO, órgão das Nações Unidas que trata de agricultura e alimentação. Argentina, Bolívia, Cuba, Uruguai e Venezuela alertaram sobre os riscos de que a produção de biocombustíveis agrave a situação dos preços de alimentos.
Às preocupações com os alimentos e aos interesses de proteção comercial, se somam os questionamentos ligados ao impacto dos biocombustíveis sobre o Meio Ambiente, em particular pelo aumento do desmatamento e pela queima da cana - a foto que abre o post foi tirada em São Paulo, principal produtor brasileiro.
terça-feira, 15 de abril de 2008
Petróleo e política no México
Nestes tempos de preços da energia em alta, petróleo e política estão ainda mais explosivos na América Latina. No Brasil, o anúncio precipitado da Agência Nacional de Petróleo sobre a descoberta do que pode ser (mais um) mega campo fez disparar as ações da Petrobras e de suas parceiras no empreendimento, a Repsol e a BP. No México, a proposta de reforma da Pemex foi o estopim para uma onda de protestos contra o presidente Felipe Calderón, que culminou na ocupação do Congresso Nacional pela oposição.
Quem lidera o movimento é a Frente Ampla Progressista, cujos parlamentares fazem até greve de fome, e travaram toda a pauta legislativa em reação ao que chamam de tentativa de privatizar a Pemex. A paralização preocupa o governo, entre outras razões porque bloqueia o debate sobre reforma eleitoral que deveria estar encerrado antes das eleições do próximo ano.
O PRD, principal partido da Frente Ampla, conta também com as "Adelitas" - militantes femininas, que tiram seu nome das mulheres que tomavam parte nos combates e mobilizações da Revolução Mexicana.
O que desatou a fúria da oposição a Calderón? O presidente apresentou projeto para reformar a Pemex, abrindo áreas do setor petrolífero ao capital privado. A batalha pela nacionalização do petróleo foi um dos principais conflitos políticos do México no início do século XX. Os Estados Unidos chegaram a ocupar militarmente a cidade de Vera Cruz, durante a Revolução Mexicana (e a I Guerra Mundial) para defender suas empresas petrolíferas. Depois, em 1938, o presidente Lázaro Cárdenas, um dos mais estimados líderes revolucionários, nacionalizou o setor. A disputa se estendeu por anos - Washington só aceitou a decisão do México na Segunda Guerra Mundial, quando era necessário conseguir apoio militar contra o Eixo.
A escala de operações da Pemex é muito maior do que a da Petrobras ou do que a da PDVSA, pois a estatal mexicana tem o monopólio sobre a exploração, refino e distribuição do petróleo - é dona de todos os postos de gasolina do país! Contudo, esse gigantismo causou e causa muitos problemas ao México. Nos anos 70, o mau gerenciamento dos recursos dos hidrocarbonetos foi tão terrível que levou à crise da dívida externa em 1982. Atualmente, o México é um dos maiores produtores de petróleo do planeta, mas precisa importar 40% da gasolina que consome, por não ter capacidade de refino. Além disso, as condições climáticas turbulentas de seu golfo, com freqüentes furacões, têm exigido tecnologia mais avançada do que aquela que a empresa consegue desenvolver.
O tipo de medida proposta por Calderón não difere do que o governo brasileiro fez com a Petrobras nos anos 90. Só que há três poréns no caso mexicano. Primeiro, o tema do petróleo consegue ser ainda mais sensível por lá do que no Brasil, constando inclusive com cláusulas especiais que o liberam de várias exigências do Nafta. Segundo, o clima político de liberalização econômica da década anterior foi substituído pelo nacionalismo, sobretudo no que diz respeito aos recursos energéticos. Terceiro, Calderón tem sério problema de legitimidade - fraudar eleições é feio - e qualquer gesto polêmico que faça, fragiliza ainda mais sua já controversa administração.
segunda-feira, 14 de abril de 2008
Pão, Brioches e Nacionalizações
“Nas padarias de Caracas, é mais fácil encontrar brioche do que pão. Livres do congelamento de preços, os brioches, croissants, enroladinhos e outros farináceos com recheio garantem aos padeiros rentabilidade, mesmo se eles adquirem a farinha de trigo no mercado paralelo, para driblar o desabastecimento. Congelado em três bolívares fortes o quilo, o pão é item raro nas prateleiras. “
A excelente reportagem de César Felício foi publicada pelo Valor no dia 3 de abril e ajuda a entender o novo ciclo de instabilidade política e econômica que começou na Venezuela. Chávez enfrenta problemas e sua popularidade caiu para 37%. O presidente reagiu anunciando duas medidas de impacto: a nacionalização da maior siderúrgica do Caribe e das três principais produtoras de cimento.
A alta dos preços do petróleo inundou a economia venezuelana de recursos que bem ou mal chegaram à população. O resultado foi um enorme aumento do consumo e da demanda por todo o tipo de produto. Embora seja um quadro positivo, também tem seu lado ruim: o país sofre da pior taxa de inflação da América Latina e uma das mais elevadas do mundo. O governo Chávez reagiu impondo controles de preços a 130 produtos considerados essenciais. O resultado foi que muitos produtores preferiram segurar seus estoques e um mercado clandestino tem florescido, enquanto faltam gêneros essenciais nas prateleiras. O problema se agrava com a alta do preço global de alimentos.
A Venezuela importa uma grande quantidade do que consome. Uma maneira de combater a inflação seria abrir o mercado para os produtos estrangeiros. A política chavista é contraditória nesse aspecto. Mantém a taxa de câmbio artificialmente baixa – 2,15 bolívares fortes por dólar, enquanto o câmbio paralelo chega ao dobro. Com isso, os importadores são prejudicados e relutam em disponibilizar suas mercadorias. Ademais, há grande quantidade de controles e regulações que dificultam a vida de quem quer comprar produtos no exterior. Para lidar com elas, em geral são necessários bons contatos no governo e com os sindicatos.
Chávez tem reagido às dificuldades econômicas com discurso que propaga conspirações e ameaças à “Revolução Bolivariana”. Em geral, a resposta governamental é assumir o controle dos setores problemáticos. Isso ocorreu com o leite, com a nacionalização de um das principais distribuidoras do produto. E agora acontece o mesmo com a siderurgia e o cimento.
No primeiro caso, Chávez alegou que a siderúrgica Sidor havia desrespeitado direitos trabalhistas e que por isso voltaria ao controle estatal – ela fora privatizada em 1997. A briga com a indústria de cimento vem da incapacidade desse setor de lidar com a demanda crescente da construção civil da Venezuela. A venda de material de área aumentou 49% desde 2007, mas a produção subiu apenas 31%.
Há falta de pessoal qualificado na Venezuela, tanto no setor público quanto no privado. Muitas empresas brasileiras que operam no país levam seus próprios técnicos, não só de nível superior, mas até de ensino médio especializado. Difícil acreditar que as medidas de Chávez resultem em ganhos para o desempenho das companhias nacionalizadas. Até a própria produção de petróleo enfrenta problemas, devido á falta de investimentos da PDVSA em infra-estrutura.
Os conflitos econômicos e os políticos se alimentam mutuamente. No fim de semana Chávez celebrou o sexto aniversário da mobilização popular que o levou de volta ao poder, após o breve golpe de 2002. Com certeza, muitos manifestantes da “Semana do Bravo Povo” se lembram de que o líder da intentona militar foi o presidente da principal federação empresarial do país e que sua primeira medida foi dissolver o congresso.
sexta-feira, 11 de abril de 2008
Quando um Crocodilo Engole o Sol
A maioria de nós luta na vida para manter a ilusão de controle, mas na África essa ilusão é quase impossível... Na África, você não vê a morte do auditório da vida, como um espectador, mas sim nos bastidores, esperando apenas a sua vez de entrar. Você se sente perecível, transitório. Você se sente mortal. Talvez essa seja a razão por que na África parece que se vive mais vigorosamente. O drama da vida lá é amplificado pela proximidade constante da morte... As pessoas amam com mais intensidade lá. O amor é a maneira de a vida esquecer que é finita.
Peter Goodwin
É raro encontrar um livro sobre política africana contemporânea no Brasil, por isso foi uma agradável surpresa a publicação de “Quando um Crocodilo Engole o Sol”, do jornalista Peter Goodwin (clique no link para baixar o primeiro capítulo). Natural do Zimbábue, ele narra a história do colapso do país na última década, tendo como contraponto a decadência financeira e de saúde de seu pai e de sua mãe, com direito a uma revelação surpreendente sobre a origem da família. Os Goodwin deixaram a Europa após a Segunda Guerra Mundial e migraram para a então Rodésia como parte de uma leva de brancos pobres que se estabeleceu no que era uma razoavelmente promissora colônia britânica.
A maior parte dessa população comprou terras baratas e foi cultivar tabaco, mas os Goodwin são profissionais liberais – o pai, engenheiro, a mãe, médica. Tiveram três filhos no país. A família sofreu os efeitos da guerra civil, quando os negros lutaram e venceram o regime de minoria racial semelhante ao apartheid, liderado por Ian Smith. Uma das filhas dos Goodwin morreu no fogo cruzado entre o Exército e a guerrilha. Os outros dois, Peter e Georgina, viraram jornalistas cada vez mais críticos do regime estabelecido por Robert Mugabe (foto) e acabaram tendo que se exilar nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Peter Goodwin é bom repórter e descreve os conflitos do Zimbábue atual: a insanidade da hiperinflação de 100.000% ao ano (só para comparar, no auge da loucura brasileira o índice foi próximo a "apenas" 3.000%), a repressão de Mugabe à oposição democrática, o flagelo da AIDS, a ascensão de uma elite corrupta e, sobretudo, as perseguições orquestradas pelo governo aos fazendeiros brancos. Esse é o aspecto político que mais ocupa espaço no livro, e é também seu ponto frágil.
Goodwin narra com precisão os sofrimentos de seus amigos – como ele, brancos de classe média alta e educação européia. São 5% da população. Mas os únicos negros descritos em detalhe no livro são os empregados dessas pessoas: jardineiros, cozinheiros, auxiliares tratados “quase como da família” e que recebem favores dos patrões. Invariavelmente, terminam traindo os chefes.
Impressiona como Goodwin se recursa a perceber o fosso de ressentimento que existe entre os dois grupos étnicos e insiste em tentar pintar um quadro idílico de um Zimbábue multirracial que só não se concretiza pela torpeza de Mugabe. Evidente que o ditador semeia no campo fértil dos ódios acumulados durante o período colonial, e manipula com habilidade esses sentimentos para se manter no poder. Afinal, é um país com 80% de desemprego, e com milhões de pessoas famintas, com raiva e uma expectativa de vida inferior aos 40 anos.
Podemos nos interessar por um país por diversas razões. O Zimbábue entrou no meu mapa por conta de amigas (negra e branca, esta descendendo de judeus bálticos que fugiram da turbulência da Rússia revolucionaria) que nasceram lá e que conheci na África do Sul. Como tantas de suas compatriotas de classe média, emigraram para a nação vizinha, cuja economia necessita de mão-de-obra qualificada. Ambas me falaram maravilhas sobre as belezas naturais do país e me garantiram que preciso conhecê-lo quando a ditadura acabar.
Os observadores internacionais nos dizem que Mugabe fraudou as eleições para garantir sua ida ao segundo turno. A campanha segue em clima tenso e com mais ataques aos fazendeiros brancos e à oposição. O cenário é pouco promissor, mas sigo na esperança de que um dia tomarei um vôo para Harare e confirmarei a opinião das minhas amigas.
quinta-feira, 10 de abril de 2008
A Margem que falta para sermos rio
Em minha casa, meu pai - que era e é poeta - deu o nome de Jorge a um filho e de Amado a um outro. Apenas eu escapei dessa nomeação referencial. Recordo que, na minha família, a paixão brasileira se repartia entre Graciliano Ramos e Jorge Amado. Mas não havia disputa: Graciliano revelava o osso e a pedra da nação brasileira. Amado exaltava a carne e a festa desse mesmo Brasil.
Assim o escritor moçambicano Mia Couto fala sobre a influência da literatura brasileira na África de língua portuguesa.
O tema me interessa desde que entrevistei o romancista angolano Pepetela, em meu tempo de repórter cultural, numa Bienal do Livro.
Tanto em Angola quanto em Moçambique, os jovens escritores que se apaixonavam pela literatura nos últimos anos do colonialismo buscavam inspiração nos autores do modernismo brasileiro. Pepetela coloca na boca de um personagem de “Geração da Utopia” elogios rasgados a Jorge Amado, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, destacando o uso criativo que fazem da língua oral e das imagens poéticas do cotidiano. O oposto do que os escritores africanos viam como as tradições engessadas da literatura portuguesa, que lhes era ensinada à força no currículo imposto por Lisboa.
As semelhanças culturais entre o Brasil e os países africanos são imensas e ao falar de Jorge Amado Mia Couto frisa o quanto o escritor foi importante para fazer seus colegas de outro lado do Atlântico descobrirem (ou inventarem?) a si mesmos:
Essa familiaridade existencial foi, certamente, um dos motivos do fascínio nos nossos países. Seus personagens eram vizinhos não de um lugar, mas da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos nomes, gente com as nossas raças passeavam pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam os nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses, ali estava o cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós mesmos.
(...)
E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes soubéramos ter...Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil - tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade - nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio.
Muita água passou pelo Atlântico desde então e hoje penso que a literatura mais bela que se faz em português é a que nos chega de Angola e de Moçambique: de Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Pepetela e outros craques.
Esses escritores situam suas histórias entre Luanda, Maputo, Lisboa, Rio de Janeiro, Recife... A arte aponta caminhos para as ciências sociais: só teremos a compreensão plena do que significa a aventura brasileira como nação quando a contextualizarmos dentro das dinâmicas sociais, culturais e econômicas do mundo banhado pelas múltiplas expressões da língua portuguesa, em particular o Atlântico Sul.
O potencial do olhar ampliado para o Brasil pode ser medido pela alta qualidade do trabalho de quem deu o salto: a triologia africana de Antônio Olinto, os estudos sobre a África de Gilberto Freyre (como "Aventura e Rotina"), a história do tráfico negreiro escrita por Luiz Felipe Alencastro.
quarta-feira, 9 de abril de 2008
Colômbia: aniversário sem festa
“Cuando fue que el Perú se jodió?”, pergunta Vargas Llosa na abertura de um de seus melhores romances. Podemos repetir a indagação com relação à Colômbia e arriscar uma data precisa: 9 de abril de 1948, o dia em que o líder liberal Jorge Gaitán foi assassinado, detonando um período de conflito político armado que mesmo hoje, 60 anos depois, ainda não terminou. O link leva para excelente especial do jornal colombiano El Tiempo.
A Colômbia compartilha com os demais países latino-americanos história de desigualdades, pobreza e Estado frágil, embora esteja longe de ser a pior colocada nessas categorias. Há muitas discussões sobre por que a violência floresce com tanta força entre os colombianos e não, por exemplo, no Paraguai ou na Bolívia. Uma das respostas diz respeito ao tipo de estrutura política se gerou por lá, com intensa polarização entre dois partidos muito fortes e enraizados na sociedade, Liberal e Conservador. Leia os romances de García Márquez (em especial “Cem Anos de Solidão” e “Ninguém Escreve ao Coronel”) e você verá a longa história de guerras civis entre ambos.
No Brasil, o suicídio de Vargas levou a algumas horas de tumulto e quebra-quebra. Na Colômbia, o assassinato de Gaitán resultou numa rebelião popular, o Bogotazo, que praticamente destruiu a capital. Os distúrbios se espalharam rapidamente à zona rural e se tornaram guerra civil de dez anos que matou cerca de 200 mil pessoas, período conhecido como La Violencia.
A época deixou sementes de ódio e feridas não-curadas que se estenderam no tempo. Após a Revolução Cubana, a cultura do conflito radical que se solidificou no campo se transformou numa série de guerrilhas – FARCs, ELN, EPL – e em movimentos sociais armados, como os indígenas do Quintin Lame. Fora grupos urbanos, como o M-19. Aliás, um dos efeitos inesperados do Bogotazo foi a influência que teve sobre Fidel Castro, então líder estudantil. Ele estava na Colômbia para a cúpula da OEA e se juntou aos distúrbios saindo de lá bastante entusiasmado com a excitação da luta armada.
Não há muito o que comemorar na Colômbia de hoje, na guerrilha sem fim das FARCs e nos escândalos de corrupção envolvendo os paramilitares e o Congresso. O aniversário da morte de Gaitán e do Bogotazo será sem festa.
Pós-escrito: dica do Márcio Pimenta. Nesta quarta, às 21h, o History Channel exibirá um documentário sobre o Bogotazo. O canal tem tradição de ótimos programas sobre a Colômbia, portanto, vale a pena conferir!
terça-feira, 8 de abril de 2008
Os Protestos Globais por Comida
Em seu livro de memórias, "A Era da Turbulência", Alan Greenspan observa que a ascensão da China e da Ìndia contribuiu muito para manter os níves de inflação baixos na maior parte do planeta durante a primeira década do século XXI. A razão, claro, são os pequenos salários da mão-de-obra dessas duas gigantescas fábricas globais.
Mas agora a corrente começou a se inverter. Numa série de países asiáticos - China, Camboja, Filipinas, Taiwan, Vietnã - os preços do trabalho, da energia e dos materiais de construção estão subindo, levando a um impacto inflacionário internacional. Os casos mais graves dizem respeito ao aumento nos custos dos alimentos, que subiram 80% em três anos já renderam protestos de rua da Argentina à Ucrânia, passando pelo Egito, Indonésia e Taliândia. O Banco Mundial estima que 33 nações podem passar por distúrbios, a maioria na África e na Ásia.
Os países atingidos pelo problema estão implementando uma série de medidas para tentar lidar com a inflação: controle de preços, subsídios e até proibições de exportar alimentos. Para quem conhece a história econômica do século XX, parece um replay das políticas "implore-a-seu-vizinho" que precederam a grande depressão da década de 1930. O secretário-geral da ONU declarou que esta é a pior crise alimentar em uma geração.
Paul Krugman lista as causas do problema: a combinação do crescimento da demanda mundial por comida, em particular pela melhora na dieta dos chineses, o encarecimento dos combustíveis e da energia (com seu impacto para a agricultura) e condições climáticas adversas em grandes produtores de alimentos, como uma terrível seca na Austrália.
Krugman critica as políticas de biocombustíveis por estarem supostamente desestimulando a produção de alimentos. A afirmativa é polêmica, mas ele não está sozinho em sua opinião. O programa dos Estados Unidos de etanol baseado no milho é considerado um desastre, pressiona os preços de galinhas e ovos. As políticas brasileiras também entraram na berlinda. A União Européia recuou em diversas medidas de apoio aos biocombustíveis do Brasil. Diz a reportagem do Valor (só para assinantes):
Segundo avaliação da Comissão Européia, os biocombustíveis sofrem ataques de duas frentes. Do lado ambiental, vem se questionando o seu benefício no combate ao aquecimento global e teme-se que eles estimulem a devastação de florestas. Do lado social, eles estão sendo responsabilizados por parte da expressiva alta dos preços das commodities agrícolas, o que vem elevando a inflação em todo o mundo e ameaça causar fome em países pobres.
Mesmo sem a pressão asiática, a América Latina já abriga dois dos países com mais alta inflação do planeta: Argentina e Venezuela. Embora suas cifras ao redor de 20% anuais não se comparem ao período dramático do fim dos anos 1980, estão entre os poucos casos atuais de inflação acima de dois dígitos - um clube do qual também fazem parte Irã e Zimbábue.
Alguém imagina o que pode acontecer na Venezuela de Chávez se o aumento dos preços de comida levar à fome e ao desabastecimento?
segunda-feira, 7 de abril de 2008
Do Sendero às FARCs
Um colega de doutorado defendeu tese há poucos dias, tratado do tema do terrorismo na política internacional. Sua pesquisa incluiu um semestre no Programa de Segurança Internacional de Harvard e começamos a conversar sobre a idéia de escrever algo em conjunto, tratando dos problemas da América do Sul. Especificamente, pensamos em uma comparação entre o Sendero Luminoso no Peru e as FARCs na Colômbia. Por que o primeiro foi vencido manu militari pelo Estado, enquanto as segundas seguem atuando 40 anos após sua fundação?
O Sendero teve origem inusitada para um grupo armado: nasceu em plena transição para a democracia, realizando seu primeiro ataque no dia em que Fernando Belaúnde foi eleito para a presidência. Os senderistas conduziram campanha guerrilheira no Trapézio Andino peruano, em especial Ayacucho, e foram conquistando terreno até estar presentes em 25% dos municípios e cometer diversos atentados terroristas na capital, Lima. O auge dos confrontos ocorreu entre 1980 e 1993, atravessando os governos de Belaúnde, Alan Garcia e Alberto Fujimori. No banho de sangue morreram 70 mil pessoas, a maoria camponeses de origem indígena.
Muitos creditam a Fujimori a principal responsabilidade pela derrota do Sendero, mas a realidade é mais complexa. Em seu governo, competente trabalho de investigação policial conseguiu prender Abimael Guzmán, o líder do Sendero. A ironia é que a operação foi conduzida pela Direção Nacional Contra o Terrorismo, uma organização rival do Serviço Nacional de Inteligência, comandado pelo braço direito de Fumijori, Vladmiro Montesinos.
A operação foi liderada por Benedicto Jiménez Baca, um policial muito respeitado que teve vários conflitos com Fujimori e Montesinos – os capangas deste tentaram até roubar Guzmán da polícia e colocá-lo sob custódia do serviço de inteligência.
O Sendero era altamente personalista, a prisão de Guzmán desestruturou o grupo e o efeito foi ainda mais forte quando o próprio líder pediu aos senderistas que entregassem as armas. Não sei em que medida a prisão ou morte de Manuel Marulanda das FARCs teria o mesmo impacto.
Outra particularidade peruana era o enorme isolamento do Sendero com relação ao resto da esquerda. Boa parte dos assassinatos cometidos pelo grupo foram contra líderes de movimentos sociais que discordavam de seus métodos violentos. Amigas feministas peruanas, por exemplo, me contaram das dificuldades que tiveram com o Sendero, e também dos obstáculos em encontrar solidariedade internacional: as guerrilhas da América Central preferiam apoiar os seguidores de Guzmán.
Além da ação policial e do isolamento, os governos peruanos foram bem-sucedidos em criar uma força de contra-insurgência rural, as rondas campesinas, que se contrapuseram ao Sendero no elemento camponês em que o grupo deveria se sentir como “peixe na água”. As rondas haviam sido formadas espontaneamente como organizações de auto-defesa, mas foi só no governo de Alan García que o Estado as reconheceu e incorporou em sua estratégia de segurança.
Por fim, o Peru também realizou uma importante reforma judicial que deu aos magistrados poderes extras e medidas de segurança para poder julgar os membros do Sendero. As medidas só foram implementadas após anos de fracasso, nos quais muitos juízes eram intimidados ou subornados e soltavam os suspeitos. As rondas e as reformas judiciais foram criadas no governo Alan García, que precedeu Fujimori.
A luta contra o Sendero custou caro, muito caro ao Peru, em especial às pessoas pobres que caíram no fogo cruzado entre o grupo e o Estado. Guzmán está em prisão perpétua, Fujimori também foi preso após uma década como ditador e García voltou à presidência. Remanescentes do Sendero ainda atuam no país, mais como bandidos rurais do que qualquer outra coisa.
sexta-feira, 4 de abril de 2008
Legado das Cinzas
Os Estados Unidos falharam em criar um serviço de inteligência de primeiro nível e os fracassos atuais relativos ao 11 de setembro, à Al-Qaeda e ao Iraque são apenas a repetição mais recente de um padrão que data da década de 1950. Essas são as principais conclusões do livro “Legacy of Ashes – the history of the CIA”, do jornalista Tim Weiner, que ganhou o Pulitzer por sua cobertura sobre temas de segurança nacional para o New York Times.
Inteligência é um termo que cobre vários tipos de atuação da CIA: levantamento de informações, com freqüência por métodos ilegais (espionagem, tortura), análise de dados, combate à espionagem estrangeira (contra-inteligência) e operações clandestinas em outros países. O livro de Weiner é uma história muito crítica da CIA com relação a todos esses pontos, mas que enfatiza o último aspecto.
Até a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos tinham um minúsculo aparato de inteligência, que cresceu durante o conflito com a criação do Escritório de Serviços Estratégicos (OSS, na sigla em inglês), especializado em ações de sabotagem nos países ocupados pela Alemanha nazista. O presidente Truman decidiu acabar com o OSS, por temer que ele minasse as liberdades democráticas e virasse uma gestapo americana. Mas as pressões da Guerra Fria o levaram a recriá-lo sob forma mais ambiciosa em 1947: a CIA.
Weiner é impiedoso em listar os repetidos fracassos da agência em penetrar no bloco soviético e sua total falta de informação qualificada sobre o que ocorria na URSS, na China, na Coréia, no Vietnã e mesmo em Cuba, com conseqüências fatais para as crises nas quais os americanos se envolveram. Impressiona como a CIA nunca teve quadros suficientes com conhecimentos de línguas e culturas estrangeiras e como isso a levou a depender de aliados como a Grã-Bretanha e Israel. Sucessivos diretores da CIA tentaram enfrentar o problema, e nunca conseguiram. Um deles atribuiu a derrota à inexistência de pessoas com tais qualificações nos EUA.
A CIA foi melhor sucedida em esforços de manipulação de eleições (Itália, Japão, Chile) e organização de golpes de Estado (Irã, Guatemala, Indonésia, Chile). O ponto, diz Weiner, é que essa maneira de fazer política externa simplesmente não funciona, porque fomenta o anti-americanismo e leva ao surgimento de oponentes ainda mais radicalizados. O argumento é válido para casos como o Irã – onde a queda dos nacionalistas abriu caminho para os aiatolás – mas as estratégicas da CIA funcionaram bem em outros lugares, onde governos comunistas ou de esquerda foram trocados por ditaduras pró-EUA.
A história das operações clandestinas da CIA é razoavelmente bem conhecida, depois de anos de escândalos. O que me interessa mais é sua dificuldade em produzir análise qualificada. O caso da URSS é exemplar. O foco da inteligência em capacidades militares levou a agência a não perceber um pequeno detalhe: o de que a economia soviética desmoronava.
Weiner cita um relatório interno da CIA compara o impacto da queda da URSS para a agência com o do asteróide que teria extinto os dinossauros. A história da CIA nos últimos 15 anos é a da busca infrutífera, e às vezes desesperada, de novo papel num mundo de ameaças difusas, imprecisas e onde os presidentes americanos preferem com freqüência outras fontes de informação: o Pentágono, o Departamento de Estado ou mesmo a CNN...
Weiner pinta quadro sombrio da CIA pós-11 de setembro, incapaz de lidar com a Al-Qaeda, mentindo sobre a presença de armas de destruição em massa no Iraque, para agradar ao governo Bush, e recorrendo a torturas e prisões ilegais para tentar obter informações. Ele cita dados impressionantes sobre funcionários que deixaram a agência, muitos para ir trabalhar para empresas de segurança privada, como a Blackwater.
quinta-feira, 3 de abril de 2008
O Longo Caminho Rumo à Paz
Nesta quinta dei aula sobre missões de paz da ONU no Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército, ministrado na Escola de Comando e Estado-Maior. O curso é um dos pré-requisitos para alcançar o generalato, de modo que meu público foi muito qualificado: coronéis com experiência no exterior em missões de paz no Haiti, Timor Leste, Kosovo, Bósnia. É a segunda vez que palestro na instituição, sobre o mesmo tema, e sempre é muito bom.
Acredito que poucas pessoas no meio civil, sobretudo no ambiente universitário, têm noção de como o Exército brasileiro tem um conjunto de oficiais de primeiríssima categoria, lapidados por um processo de promoção muito competitivo, por treinamentos constantes e pelas vivências em operações em países estrangeiros. Um dos coronéis com quem conversei me chamou a atenção para a importância desse tipo de missão em capacitar oficiais, dando-lhes experiência profissional e visão de mundo mais ampla. Em sua época de cadete, segundo me contava, era raro encontrar um militar brasileiro com currículo forte no exterior.
O centro da minha aula foi a exposição sobre os novos modelos de missões de paz que a ONU implementou da década de 1990 em diante. Destaquei a abrangência dessas operações com relação aos modelos clássicos de Suez e do Chipre. Trocando em miúdos: as Nações Unidas saltaram de formato que ressaltava a presença de capacetes azuis entre Exércitos em conflito, para monitorar cessar-fogo acordado entre ambos, para paradigma que abrange enorme quantidade de tarefas: organização de eleições, auxílio humanitário, ações policiais, formulação e execução de políticas públicas e até a construção de Estados nacionais.
Expus as principais crises enfrentadas pela ONU sob o novo modelo (Somália, Ex-Iugoslávia, Bósnia) e tratei das críticas que os países em desenvolvimento fizeram ao caráter muito mais intervencionista adotado pelas Nações Unidas. Em seguida abordei os casos do Timor e do Haiti e debati com os alunos sobre quais podem ser as contribuições brasileiras aos processos de paz, em particular a ênfase em temas de desenvolvimento sócio-econômico e o fato de que o Brasil não tem um passado de potência colonial.
Outro ponto foi o levantamento das tendências contemporâneas nas missões de paz. Por exemplo, o fato de que 75% delas ocorrem na África. Se o Brasil quer exercer liderança internacional, terá que assumir responsabilidades no continente, eu disse. Seguiu-se um ótimo debate sobre Darfur, Angola, Zimbábue e a disposição da opinião pública nacional em arcar com os custos de participar nesse tipo de operação, quando o Brasil deveria ou não participar.
Minha apresentação foi bastante crítica da ONU. Repassei os principais problemas que a organização enfrenta nas missões de paz, desde a falta de coordenação entre os contingentes nacionais até a “síndrome do carro branco”, os desequilíbrios econômicos provocados em países pobres pela chegada de milhares de funcionários internacionais bem remunerados, em dólar. Sempre ocorre inflação e com freqüências dificuldades com a população local, muitas vezes em função da arrogância dos representantes das Nações Unidas. Vários exemplos semelhantes foram citados pelos oficiais e creio que descobrimos a admiração comum pelo excelente livro do general Lélio Silva, “Uma Missão de Paz na África”, que descreve sua experiência à frente das operações de paz em Moçambique e aborda vários dos pontos dos quais tratamos.
Concluímos também que, num cenário de fragilidade institucional, ganha força a figura do líder, como Sergio Vieira de Mello no Timor ou o general Augusto Heleno no Haiti. Pessoas comprometidas, dedicadas, com a habilidade para aprender na prática e adaptar a missão às realidades locais.
Muitas perguntas foram a respeito do futuro da ONU, em especial a partir dos resultados das eleições nos Estados Unidos. Sou cético com relação à possibilidade de mudanças radicais na organização, ou de reformas amplas como a entrada do Brasil no Conselho de Segurança. Acredito que o melhor caminho para a paz, ao menos no curto prazo, é o fortalecimento de organizações regionais. Foi consenso a importância da missão no Haiti para a cooperação militar sul-americana e estão no ar as expectativas (e dúvidas) para o Conselho de Segurança da América do Sul.
quarta-feira, 2 de abril de 2008
A OTAN segue para o Leste
A história das guerras de coalizão é a história das queixas mútuas entre os aliados.
Winston Churchill
A cúpula da OTAN que começa hoje será dominada por dois temas: a necessidade de mais tropas no Afeganistão, para evitar derrota humilhante da aliança naquele país, e as tensões que a ampliação da OTAN para os Bálcãs e o Cáucaso provocam com a Rússia. Ambos os assuntos provocam também divisões dentro da organização.
A OTAN foi criada no início da Guerra Fria como uma aliança militar contra a União Soviética, englobando EUA, Canadá, Turquia e boa parte dos países da Europa Ocidental. Quando o bloco comunista entrou em colapso, em 1989, muitos bons analistas acreditaram que a organização chegaria ao fim. Não foi o que ocorreu. Na realidade, ela tem se expandido para o leste e cresceu para um total de 26 países, incorporando várias nações da Europa Oriental (Polônia, Hugria, República Tcheca etc), as três ex-repúblicas soviéticas do Mar Báltico (Estônia, Letônia e Lituânia) e a queridinha dos destroços da ex-Iugoslávia (Eslovênia).
Além dos novos membros, a OTAN inventou para si mesma outras missões. Ela lutou sua primeira guerra no Kosovo, em 1999, bombardeando a Sérvia. E agora está no Afeganistão, tentando estabilizar aquele turbulento país.
O item mais controverso da cúpula é a iniciação de negociações com a Ucrânia e a Geórgia para que as duas ex-repúblicas soviéticas integrassem a organização. Quem impulsiona o desejo são os Estados Unidos, cuja política externa cada vez mais se choca com a Rússia, que sempre teve nesses dois países zona tradicional de influência. Aliás, ambos têm substanciais populações de origem étnica russa.
Alemanha e França se opõem: "O fato de que a OTAN pode ser derrotada no Afeganistão coloca a questão Ucrânia-Geórgia muito abaixo na lista de prioridades", diz Thomas Gomart, diretor de assuntos russos no Instituto Francês de Relações Internacionais em Paris. "Para nós, o futuro da OTAN não é a expansão. É o Afeganistão, Afeganistão. Afeganistão."
No país asiático, as coisas estão tensas para a OTAN. EUA, Reino Unido, Canadá e Holanda reclamam de fazem a maior parte das tarefas de combate, e que os demais aliados devem assumir a parte do fardo que lhes cabe. Há sinais de que isso pode ocorrer com a França, que sob Sarkozy iniciou remodelamento de sua estratégia de defesa. Os franceses devem voltar a fazer parte da estrutura de comando militar da aliança, da qual haviam se retirado nos tempos do general De Gaulle (embora continuem a integrar a OTAN, a coisa é mesmo complicada).
Saindo do Cáucaso e indo para os Bálcãs, também há disputas sobre a conveniência ou não de que Macedônia, Albânia e Croácia se juntem à OTAN. A questão mais séria é com o primeiro país, que tem longa rivalidade com a Grécia - entre outras coisas, porque "Macedônia" também é o nome de uma região grega, e Atenas sequer reconhece o direito dos vizinhos em adotá-lo!
E depois a integração sul-americana é que é complicada...
terça-feira, 1 de abril de 2008
Panelas contra Cristina
Quando morei na Argentina, me impressionei com o número e variedade de protestos sociais que ocorrem no país. Praticamente todas as vezes em que passei pelo centro de Buenos Aires havia uma ou mais manifestações em andamento, fossem dos ambientalistas de Gualeguaychú, dos veteranos da Guerra das Malvinas ou das vítimas do corralito. Me sentia na França do século XIX. À época, havia tensão no ar com respeito à manipulação dos índices da inflação pelo governo, das dificuldades com o controle de preços e da insatisfação com a crise energética. Me perguntei quanto tempo demoraria até que as pessoas fossem às ruas contra os Kirchner. Resposta: um ano. A presidenta Cristina Fernández (como prefere ser chamada) agora enfrenta protestos duplos, mas interligados, dos produtores rurais e da classe média.
O estopim da crise foi a decisão do governo de aumentar os impostos sobre a exportação de grãos (soja, trigo, milho e girassol), que passaram de média de 35% para 44%, sendo que os percentuais aumentam à medida que sobe o preço dos produtos no mercado internacional. No caso da soja, carro-chefe do agronegócio argentino, quando a tonelada ultrapassa US$600, as autoridades federais abocanham nada menos que 95% da diferença.
Os produtores reagiram à medida bloqueando cerca de 90 estradas em 11 províncias, e paralização no comércio de carne e leite, o que provocou problemas de abastecimento e escassez de alimentos em várias cidades, inclusive na sempre turbulenta Buenos Aires. Daí os panelaços da classe média contra o governo, e as manifestações de apoio a Cristina Fernández organizadas pelos movimentos sociais, como piqueteros.
Para quem estuda a política argentina, a crise impressiona pelo modo como repete temas recorrentes da relação dos peronistas com o setor rural e a classe média. Perón se envolveu em problemas semelhantes quando criou um mecanismo de compras que fixava preço máximo para os produtos agrícolas, que eram adquiridos pelo governo e revendidos ao mercado internacional por um valor mais alto. A diferença era usada para financiar projetos de desenvolvimento industrial e as políticas sociais do presidente.
Os produtores rurais nunca engoliram Perón, mas não tinham tanto a se queixar dos Kirchner. Os governos de Néstor e Cristina coincidiram com um boom internacional pelas commodities agrícolas e minerais que constituem 2/3 das exportações argentinas. A política cambial de manter o peso subvalorizado, em 1/3 do valor do dólar, faz a festa dos exportadores. A contrapartida foi alta de impostos (de 20% para 35%) , fundamental para estabilizar o país no turbilhão pós-crise de 2001. Mas que são insuficientes para que o governo cubra suas despesas, que aumentaram muito em função de políticas sociais e subsídos à indústria. Daí nova alta na carga tributária. Perón reloaded.
Os movimentos sociais de cada país, e em cada época, tem seu repertório próprio de modos de ação. Na Argentina dos últimos 70 anos, os mais comuns foram greves e comícios, fruto da fortíssima tradição sindical do país. A partir de meados dos anos 90, começaram os bloqueios de ruas e estradas, algo que nasceu nas chamadas “puebladas”, as rebeliões em cidades do interior duramente afetadas pelas políticas de Menem. Quando a onda chegou em Buenos Aires, virou tsunami: presidentes como De La Rúa e Duhalde caíram porque não conseguiram lidar com os protestos populares.
Não me parece que a crise atual seja tão grave, mas sempre é ilustrativo observar como faz diferença o estilo político dos peronistas, sempre mais conflituoso e pouco propenso a dialogar e ceder, com a tradição brasileira de “vamos sentar para conversar e encontrar um consenso entre elites que permita a supressão do conflito antes que ele chegue ao povo”. Meus amigos argentinos costumam me perguntar qual considero o melhor. A virtude, já diziam os gregos, está no meio. Mas bem que podíamos contrair um pouquinho do vírus dos hermanos!
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